A tragédia que moldou o maior craque inglês

O ano de 2018 marca o aniversário de 60 anos de uma das maiores tragédias que já acometeram um clube de futebol, em todos os tempos. Ainda que não tenha sido tão fatal quanto o acidente de Superga, que vitimou um time inteiro do Torino, ou não some mais mortes em relação à desgraça que se abateu sobre a Chapecoense, o Desastre de Munique deixou cicatrizes incuráveis no time do Manchester United; transformou também, para sempre, a vida do maior craque inglês de todos os tempos, um dos poucos sobreviventes.


Bobby Charlton Young
Foto: Getty Images


Desde abril de 2016, o nome dele está eternizado nas arquibancadas do estádio Old Trafford. A homenagem se deu em função do aniversário de 60 anos da estreia do jogador pelos Red Devils. Trata-se de uma honraria concedida àquele que, já faz algum tempo, é tratado como Sir, mas nunca conseguiu deixar de se perguntar: “por quê eu? Por quê eu sobrevivi?”, como revelou em sua autobiografia, parcialmente reproduzida pelo Telegraph.

O número de pessoas do círculo íntimo da convivência de Bobby Charlton que atesta que ele nunca mais foi o mesmo após a tragédia é grande, o que inclui seu irmão e também ex-atleta Jack Charlton. Como haveria de ser diferente? Naquele 1958, o Manchester United era um dos times mais promissores do planeta. Comandado por Sir Matt Busby, um elenco jovem e talentoso havia conquistado o Campeonato Inglês, em 1956/57, após brilhar nas categorias de base. Era a época dos Busby Babes. Charlton, talvez o mais promissor da equipe, tinha 19 para 20 anos.

A consequência da glória nacional foi o carimbo no passaporte para a disputa da ainda incipiente Copa dos Campeões, que apenas começava a desenhar a hegemonia do Real Madrid. De cara, os ingleses atropelaram seus vizinhos irlandeses do Shamrock Rovers, por 9 a 2 no placar somado dos dois jogos. Na sequência, vitimaram o Dukla Praga, após uma vitória por 3 a 0 e uma derrota por 1 a 0. Tudo caminhava bem, quando se desenhou o confronto seguinte, válido pelas quartas de finais.

A promissora vitória por 2 a 1, na primeira partida contra o Estrela Vermelha, em casa, mantinha em alta as esperanças em Manchester. Na oportunidade, Charlton marcou seu primeiro gol na competição, ajudando os Red Devils a encaminhar sua classificação à fase seguinte. A volta, contudo, seria dura: em Belgrado, um caldeirão esperava os ingleses. Além disso, a logística não era simples. Não era possível viajar de Manchester à capital da Iugoslávia sem fazer ao menos uma parada para reabastecimento. Diante disso, Munique acabou sendo uma escala necessária.

Na ida, tudo correu perfeitamente bem. Naquele gelado 05 de fevereiro, o United abriu uma vantagem por 3 a 1 contra os anfitriões e até cedeu o empate. No entanto, colocou a classificação na bagagem de volta para a Inglaterra. No dia seguinte, começou a viagem de retorno, com a esperada parada em Munique. 

Recovery Bobby Charlton
Foto: Getty Images
Após o sucesso no primeiro trecho, com combustível no tanque, o avião se preparou para deixar a Baviera. O piloto tentou uma vez, mas parecia que não estava tudo bem - a aeronave não estava respondendo da forma esperada. Na segunda vez, novamente se notaram anomalias. Diante disso - e de uma nevasca -, foi anunciada a decisão de adiar a viagem para o dia seguinte. Porém, o piloto confiou que o problema poderia ser contornado. Na arrancada, não se levaria o motor ao limite, o que levaria a uma demora maior para se alcançar a velocidade necessária para a decolagem. Porém, a extensão da pista permitiria o sucesso da tentativa, pensou o especialista. Veio a terceira tentativa.

O avião saiu da pista, se chocou com uma grade e uma casa, e explodiu. 20 pessoas morreram no ato, três mais tarde. Oito atletas faleceram, dois sobreviveram, mas não mais voltaram aos gramados e outros sete seguiram adiante, dentre eles Charlton. Fisicamente, praticamente saiu ileso. Psicologicamente, nunca mais foi o mesmo. Não é que tenha desenvolvido quadros de depressão ou de outras enfermidades ligadas ao lado emocional. Cresceu em si a responsabilidade de fazer valer sua segunda chance na vida, honrando a memória de seus companheiros e amigos.

“Eu não disse muito na volta para casa, e tinha que me convencer, na companhia dos meus, de que o futebol poderia, novamente, ocupar o centro da minha vida. É claro que logo eu saberia disso. O que demoraria um pouco mais para entender é que nada mais seria tão simples”, relatou.

À sua maneira, Charlton ergueu a cabeça e foi à luta. Com sua habilidade e capacidade para marcar gols ajudou o Manchester United a conquistar mais dois títulos ingleses, passado um período de reconstrução da equipe. Também foi o grande astro inglês na conquista da Copa do Mundo de 1966, e além de um título da FA Cup, levou os Red Devils à conquista da Copa dos Campeões, exatas dez temporadas após o fatídico acidente. O clube acabou sendo o primeiro inglês a levantar o cobiçado troféu, uma honra que coube ao capitão, Bobby.

England Bobby Charlton
Foto: Getty Images
Conforme o tempo foi passando, Charlton foi deixando de ser um jovem talentoso e se confirmando uma referência, dentro e fora dos campos. A elegância em campo andando lado a lado com a decência e o caráter fora dele. Em um time que tinha o charme do controverso George Best e o talento de Dennis Law, cabia a Bobby a missão de ser líder, exemplo. Tal papel foi exercido com a distinção de um gentleman

Uma carreira que poderia ter terminado em Munique se findou com 758 jogos disputados e 249 gols - durante anos o craque foi o líder de tais estatísticas, superado recentemente por Ryan Giggs e Wayne Rooney, respectivamente. Por muitos anos foi seu também o recorde de tentos marcados pelo English Team.

A sorte de estar sentado no lugar certo na hora errada, como o ícone costuma dizer, o levou a viver uma trajetória inesquecível, marcante para jogador, clube e nação. Se hoje o Manchester United é a potência que é, muito se deve a Charlton e ao acidente que acabou mudando tudo. É impossível prever o que teria acontecido na carreira do craque na ausência do sinistro. O que se pode dizer, baseado em relatos e em sua carreira, é que durante o tempo em que esteve em campo, Bobby foi um exemplo. A vida lhe deu uma segunda chance e ele a agarrou. Sem a leveza e o sorriso de antes, mas com o respeito a tudo o que o desastre significou.

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