Em 1980/81, nem um sequestro mudou os rumos da artilharia na Espanha

Os últimos atos do mítico treinador Helenio Herrera nos bancos de reservas do mundo da bola foram no Barcelona. Naquela que foi sua segunda passagem pelo futebol catalão, o argentino, naturalizado francês, tinha um time recheado de bons jogadores, gente que ia desde o Ballon d’Or de 1977, o dinamarquês Allan Simonsen, até o goleador máximo do futebol espanhol na temporada 1980/81, Quini - o protagonista de uma história insólita.


Barcelona Quini
Foto: FC Barcelona


Nascido nas Asturias, Enrique Castro González, o Quini, começou sua carreira no pequenino CD Ensidesa (que sequer existe hoje). Entretanto, foi no Sporting Gijón que obteve marcas soberbas e chamou a atenção blaugrana.

Um artilheiro que não se contesta


O maior artilheiro da história do clube rojiblanco em La Liga e que hoje dá nome ao estádio do time, desembarcou no Camp Nou como certeza de gols e não decepcionou. Quini era um bomber tão prolífico que sua chegada impactou a saída do austríaco Hans Krankl e ajudou a tornar a passagem de Roberto Dinamite pelo Barça um fiasco.

Sporting Gijón Quini
Foto: A. Vega
Quando chegou a Barcelona, Quini já tinha três artilharias do campeonato espanhol em seu currículo e mais duas da segunda divisão. Havia disputado a Copa do Mundo de 1978 e a Euro ‘80. Era impossível questionar suas capacidades à frente das balizas rivais. Assim acabou por ser o desenho de sua primeira temporada em azul e grená.

A estreia a marcar com a camisa do clube catalão aconteceu na segunda rodada do campeonato espanhol, no clássico local contra o Espanyol. Ao primeiro tento se somou um jejum de cinco jogos, terminado contra o Colônia, em partida válida pela Copa da UEFA. Entretanto, foi só a partir da 10ª rodada de La Liga que o artilheiro desencantou.

Entre a referida ronda e a 26ª, Quini balançou as redes 17 vezes, com dobletes contra Atlético de Madrid, o “seu” Sporting Gijón, o Osasuna e o Hércules. Não havia como duvidar de que os gols prometidos tinham deixado de vez as Astúrias e fixado residência na Catalunha.

Aquele foi um campeonato espanhol acirradíssimo. No final das contas, o título acabou indo para as mãos bascas da Real Sociedad. Contudo, apenas cinco pontos separaram a campeã do sexto colocado, o Betis (vale a menção ao fato de que à época, as vitórias garantiam apenas dois pontos ao clube ganhador). Nesse meio, o Barça acabou ficando em quinto lugar e com a melhor marca artilheira, 66 gols, número igualado pelo rival Real Madrid.

25 dias de agonia


Melhor sorte poderia ter acompanhado os catalães, não fosse um evento inesperado ocorrido em 1º de março de 1981. Quini havia acabado de marcar dois gols no Hércules e o Barcelona era o vice-líder do espanhol, dois pontos atrás do Atlético de Madrid. O que era para ser uma breve passada em casa após o fim do jogo terminou se tornando uma apreensão de 25 dias.

Quando o atacante se dirigia ao aeroporto para buscar sua esposa, que passara o final de semana em Gijón, duas pessoas armadas o abordaram. O grande artilheiro blaugrana havia sido sequestrado. 

Após se fazerem diversas conjecturas, com acusações que iam desde o grupo separatista basco ETA até membros do Partido Revolucionário Espanhol (que em tese estaria disposto a castigar a Catalunha, conforme narrou o AS) - reflexo de um complexo momento de transição política na Espanha, com o final do Franquismo -, os sequestradores acabaram aparecendo, requerendo o pagamento de resgate a um banco suíço, certos de que o sigilo bancário e a anonimidade seriam preservadas.

E assim foi feito. Mas, em 25 de março, data em que o dinheiro deveria ser depositado, o sigilo foi quebrado e os envolvidos identificados. A polícia acabou por resgatar Quini, que estava escondido em Zaragoza. Suas condições não eram as melhores, havia perdido peso e condicionamento físico, mas fora bem tratado, ninguém lhe fizera males maiores.

O retorno de Quini, o bondoso e implacável artilheiro da Espanha


Quini Barcelona
Foto: EFE
Os criminosos nada tinham a ver com o mundo dos delitos até então. Não possuíam ficha policial ou experiência com malfeitos. Eram uns pobres diabos que, em busca de obter “dinheiro fácil”, decidiram sequestrar o jogador. Em momento algum, passou-lhes à mente a ideia de causar quaisquer prejuízos que não os de ordem material ao atacante. 

Lembrado como um jogador de forte caráter, valente, mas, na mesma medida bondoso, Quini acabou se compadecendo com a situação de seus “algozes”. Como reportou o La Vanguardia, El Brujo - alcunha do atacante - perdoou os sequestradores, condenados a 10 anos de prisão, além do pagamento de uma indenização ao jogador. Este, por sua vez, recusou o pagamento.

“Creio que eram boas pessoas, que erraram, mas boas pessoas. Se portaram bem comigo, nunca me ameaçaram e sempre me disseram que sabiam que eu era uma pessoa decente e um bom jogador”, revelou o jogador na conferência de imprensa que concedeu após a libertação.

Quanto ao Barcelona e o campeonato espanhol… O título ficou distante. Após alguns dias de recuperação física e mental (recomendada pelos psicólogos do Barça), Quini voltou a jogar. Contra o Valladolid, em 05 de abril, passou em branco. Porém, antes do final do nacional, ainda faria mais dois gols, contra o Almería. Estes acabaram por ser os tentos que o colocaram à frente do saudoso Juanito, atacante do Real Madrid, na artilharia do certame.

Mais uma vez, coube a Quini, que fez 20 gols - um a mais que o goleador merengue -, a honra de receber o prêmio Pichichi (concedido ao melhor marcador do ano).

Um mês de ausência pode ter afastado o Barça da disputa do título, mas não conseguiu impedir que, em sua primeira temporada longe de casa, Quini mostrasse os motivos pelos quais havia sido contratado. 

Para o clube, o consolo veio na Copa del Rey, em junho de 1981. Ironicamente, o rival foi justamente o Gijón, ex-clube de seu goleador. E a vitória veio por 3 a 1. Adivinhe quem marcou duas vezes? Ele, Quini, o inabalável e destemido ídolo rojiblanco, falecido em 27 de fevereiro último, vítima de ataque cardíaco. Tinha 68 anos.

Comentários

  1. Não conhecia esse jogador, muito interessante a história, parabéns amigo!

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