Eduard Streltsov: as glórias, o gulag e o mito de um craque russo

Para muita gente, o nome do maior jogador russo de todos os tempos é indiscutível. Quem viu não hesita em aclamar as qualidades de Eduard Streltsov. Seus feitos foram enormes — comparáveis apenas à habilidade com a bola nos pés e à força de sua personalidade. Com uma história que nunca foi convincentemente explicada, o craque perdeu o que deveria ter sido o auge de sua carreira. Mas era tão bom que teve tempo de se recuperar e forjar um mito.


Eduard Streltsov Russia
Foto: Reprodução/ Diário AS


Jogador mais jovem a marcar gols na história do campeonato soviético (com pouco mais de 16 anos). Artilheiro máximo do certame, com 17 para 18 anos, e o mais moço a marcar um hat-trick em uma estreia com a camisa da seleção — que massacrou a Suécia, por 6 a 0, em 1955. Ao lado de outros grandes nomes, como o do goleiro Lev Yashin, campeão olímpico em 1956. Tudo isso antes dos 20 anos. O início de carreira de Streltsov, que no futebol de clubes só defendeu o Torpedo, foi avassalador.

A vitória olímpica acabou sendo particularmente importante pelo que representou. Em 1952, a URSS havia sido humilhantemente eliminada na primeira fase pela Iugoslávia, liderada por Marechal Tito, comunista não-alinhado com Moscou. Quatro anos mais tarde, a geração de Eduard deu o troco, vencendo a disputa e batendo exatamente os eslavos na final. 

Streltsov CCCP
Foto:  BOTASHEV M./ SPUTNIK
O craque foi fundamental para o êxito. Na prorrogação da partida semifinal, a URSS perdia para a Bulgária, quando o atacante empatou o jogo, oito minutos antes do final do encontro. Quatro mais tarde veio o tento fatal, de Boris Tatushin, que confirmou a vitória e o acesso à decisão.

Streltsov era um desses gênios que surgem de tempos em tempos e que os russos tanto sofrem para formar. Mas era também genioso. Como é de se supor, o atacante passava jogos sendo caçado por marcadores que não faziam ideia de como o parar. Isso, evidentemente, descambava muitas vezes para a violência e Eduard não só aprendeu a apanhar, como a bater, acumulando repreensões e expulsões. E esse acabou sendo apenas um dos traços de sua personalidade.

Em 1957, ajudou o time a ser vice-campeão soviético. Um ano depois, todavia, a situação começou a se complicar verdadeiramente para o russo. Narrou o jornalista inglês Jonathan Wilson, em Behind The Curtain, que: 

“Poucos dias antes de uma viagem da URSS à China, em janeiro de 1958, ele [Streltsov] se envolveu em uma briga com a polícia, próxima da estação de metrô de Dínamo. Ele foi condenado por hooliganismo e sentenciado a três dias na cadeia [...] Ele foi ainda retirado do elenco da URSS e somente conseguiu seu lugar em um grupo inicial de 40 jogadores para a Copa do Mundo após oferecer desculpas públicas”.

Durante a preparação para o Mundial da Suécia, porém, Streltsov acabou deixando a concentração com dois de seus companheiros, convidado a uma festa. A farra terminou na cama com uma jovem, Marina Lebedeva, que acabou o acusando de tê-la estuprado. Seu julgamento foi brevíssimo. Ele acabou por confessar, pretendendo, assim, ver sua reprimenda diminuída, possibilitando sua presença na Copa do Mundo — e a verdade é que, confissão à parte, ficou longe de ser confirmada a agressão sexual.

A história não terminou. Dias depois da acusaçáo, Lebedeva escreveu uma carta pedindo o fim dos procedimentos contra Eduard. Não negou a existência do atentado a sua dignidade, mas ofereceu seu perdão ao craque. De nada adiantou. Streltsov foi condenado a 12 anos de prisão e enviado a um gulag.

A questão é que o fato também não fazia sentido quando colocado à luz de seu comportamento habitual. À obra do citado jornalista britânico, Valentin Ivanov, seu ex-companheiro no Torpedo Moscou, disse que “na vida, ele era muito bom e gentil”.

Há outra teoria que também tenta explicar o que se passou. Alegadamente, Streltsov teria recebido uma proposta insólita da Ministra da Cultura. Ela teria projetado um casamento entre o atleta e sua filha. Tal ideia teria sido veementemente rejeitada pelo atacante — que, aliás, já era casado. Os defensores da inocência do craque sustentam que, a partir disso, um alvo foi colocado em suas costas. 

O prestígio de uma família bem colocada na estrutura de poder soviético não seria exposto sem que houvesse uma reprimenda à altura. Nunca deixaram o ar as suspeitas de que o convite para a festa fatal foi premeditado.

Streltsov wall
Foto: RFN/ Toke Theilade
Lebedeva, por outro lado, praticamente desapareceu da vida pública. Contudo, foi vista em 1997, sete anos após o falecimento de Eduard, deixando flores e chorando em seu túmulo (Streltsov morrera em 1990, aos 57 anos, vítima de câncer de garganta). Isso em nada ajudou a explicar uma história que parece condenada a ser contada em suas várias versões até o fim dos tempos — perenemente inconclusiva.

Houve também quem tenha sustentado a teoria de que a perseguição ao craque começara com sua recusa a se transferir para o Dínamo de Moscou, então o time da KGB.

Streltsov pereceu no primeiro gulag a que foi enviado. Apanhou muito, ao ponto de ser transferido. Aos poucos, todavia, seu apaixonante talento com a bola nos pés foi facilitando sua vida. Sua libertação acabou acontecendo muito antes do previsto, em 1963. Porém, ele havia sido banido do futebol para sempre. Passou a trabalhar em uma fábrica e praticar o esporte amador. Mas ele era evidentemente bom demais para tal nível. 

Um ano depois, diante do clamor popular, o banimento foi suspenso e o craque voltou ao Torpedo. Ainda havia tempo para recuperar a melhor forma física e desfilar futebol de alto nível. Assim ocorreu. 

Os gramados deram a Streltsov a redenção, após o obscuro e mal explicado período de sua vida. Liderado por seu novo velho craque, o time venceu o campeonato soviético de 1965 e a Copa da URSS em 1968. Voltou à seleção. Foi eleito o melhor jogador soviético dos anos de 1967 e 1968. Parou em 1970, com distinção — lembrado, além da polêmica que o afastou do futebol, pelos gols, lances de efeito, pela personalidade forte e, acima de tudo, pela capacidade para renascer das cinzas.

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