A dor e a glória de Vicente no Valencia

Ainda que não existisse o futebol, Vicente Rodríguez Guillén teria seu destino atado à cidade de Valência, local em que foi registrado seu nascimento em 16 de julho de 1981. Mas a parceria entre pé e bola — em seu caso, pé canhoto — fortaleceu essa relação. Atuar no Mestalla era um sonho para quem havia nascido no distrito de Benicalap e carregava o principal time da cidade no coração. Em seu caso, o desejo infantil acabou se tornando real e, apesar de grandioso, reservou fortuna e miséria, alegrias, mas também dores.

Foto: Professional Sport/Getty Images

Sonho alcançado por meio do rival


Não é um caminho incomum para um jogador de futebol aquele que começa em uma casa rival. Se as oportunidades são escassas nesse meio, o espaço para hesitações é mínimo. E assim, depois de se destacar em meio aos garotos com quem jogava bola na infância e início da adolescência, Vicente foi abordado pelo Levante. O ideal, claro, seria um convite do Valencia, mas que ousaria deixar a oportunidade passar? 

Então, todos os caminhos de sua trajetória começaram a se atropelar. Não sem motivo. Longe do prestígio que rondava seu clube do coração na primeira divisão, o talentoso jovem, reverenciado por suas qualidades no um contra um, e nas capacidades para marcar gols e assistir, estreou como profissional aos 16 anos. 

Foto: SRT/ Reuters
Era o finalzinho de 1997 quando o treinador José Enrique Díaz, sem ter muito o que fazer, lançou sua jóia aos leões. Já naquela altura o inevitável destino do time de azul e grená parecia selado. A 20ª colocação da segunda divisão somada à derrota, por 1 a 0, para o Leganés do hispano-brasileiro Catanha, colocou fim à passagem do comandante pelo estádio Ciutat de València. O dia do azar do técnico contrastou com a sorte de Vicente, que já representava as equipes de base da Espanha. Era, enfim, profissional.

Naquele malfadado ano, o garoto só jogou mais três jogos. Nada pôde fazer para evitar o descenso dos Granotas à terceirona. 

Aos poucos e em função das dificuldades vividas pelo Levante, Vicente ganhou mais tempo de jogo no ano seguinte. O menino de 17 anos fez também seus primeiros dois gols. As vítimas? Os modestos Gramenet e Bermeo. Os valencianos subiram novamente à segunda divisão. E, em 1999/00, ficou evidente demais que o time que deu oportunidade ao canhotinho transitava por vias estreitas demais para levar consigo um talento tão grande.

Aos 18 anos, Vicente já era titular absoluto. Disputou 37 jogos no ano e marcou sete vezes. Apesar de ter acabado de deixar as profundezas da terceira divisão, o time flertou com o acesso à elite, terminando em sétimo lugar, cinco pontos atrás do Villarreal, o primeiro que subiu.

O Valencia, atento à situação, não perdeu tempo. Desafiado pelo Arsenal e mesmo consciente de que tinha um belíssimo titular em sua ponta esquerda, o argentino Kily González, não hesitou. Desembolsou 4,2 milhões de euros e tornou o sonho do menino de Benicalap realidade. 

Diários de um privilegiado


Finalmente um membro do time de seu coração, Vicente começou a forjar uma idolatria. A reserva em boa parte de sua primeira temporada, a 2000/01, não impediu o garoto de mostrar suas credenciais. Ele foi às redes cinco vezes e ganhou sua primeira convocação à Seleção Espanhola na fase final da campanha. Naquele ano, o Valencia chegou à final da Liga dos Campeões, perdendo-a para o Bayern de Munique. Era a segunda vez seguida que tal destino se abatia sobre o time. 

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A vida do ponta esquerda mudou mesmo a partir de 2001/02, quando o treinador Héctor Cúper deu lugar a Rafa Benítez. Já titular, foi parte importante do time que voltou a conquistar o Campeonato Espanhol, o que não acontecia desde os anos 70 e que nem um craque e ídolo do tamanho de Mario Kempes conseguiu. 

Certo é que devia ser maravilhoso jogar naquele time. A companhia de jogadores como Pablo Aimar, Kily, Francisco Rufete, Miguel Angulo, Ruben Baraja e David Albelda — para mencionar apenas uns poucos — não era um privilégio pequeno. Aliás, no curso dos anos, dividiu espaço com mais uma porção de gente de altíssimo nível, como são os casos de David Silva, Juan Mata, David Villa e Joaquín.

Depois de um ano sem conquistas, Vicente e o Valencia viveram o aquele que é, possivelmente, o melhor de suas vidas. Com 22 anos, o craque dos Che foi brilhantíssimo. O clube conquistou outra vez o título nacional e venceu também a Copa da UEFA. Dificilmente tais glórias teriam sido alcançadas sem o contributo do ponta esquerda. 

Em 42 jogos, fez 14 gols. Detalhe: na final da competição continental, os valencianos venceram o Olympique de Marselha, de Didier Drogba, por 2 a 0. Um dos gols foi marcado por Vicente, de pênalti. O outro só foi possível com sua assistência para Mista. Na Espanha, a revista Don Balón lhe entregou o prêmio de melhor jogador espanhol da temporada. 

As marcas de um profundo sofrer


Mas aquela história de filme, em que o protagonista defendia por anos a fio a camisa de seu coração, ganhou contornos de drama no ano seguinte e nunca retomou os rumos do conto de fadas que se anunciava. Depois de representar — e ser titular em todos os jogos — a Espanha na Euro 2004, com a temporada 2004/05 surgiram as implacáveis lesões no tornozelo. A primeira delas em uma partida de Liga dos Campeões, contra o Werder Bremen.

No referido ano, só conseguiu disputar 17 jogos ou um total de 1.272 minutos. Muito pouco. E essa foi a tônica dos anos que se seguiram. Até começou bem a campanha de 2005/06, mas voltou a se lesionar na metade da temporada e acabou ficando fora da Copa do Mundo de 2006.


Os anos do Valencia também voltaram à normalidade, com boas campanhas mas sem a conquista de títulos. Em 2006/07, o canhotinho disputou 21 jogos, mas foi substituído 11 vezes. Naquele ano, pareceu ter chegado ao fundo do poço e causou um verdadeiro rebuliço nas dependências do clube. Cansado de ir e vir do departamento médico, declarou ter perdido a confiança nos doutores do time.

A crise acabou com o jogador sendo multado, depois de reforçar sua gratidão à equipe pelo apoio, mas a descrença nas capacidades de seu corpo médico e dizer que se trataria fora do clube. O que deveria ter sido o auge do jogador, com 25 para 26 anos, foi uma enorme desilusão. Para todo mundo, inclusive os torcedores que tiveram que se acostumar com as ausências de um de seus preferidos. 

Em 2007/08, viu de longe, sequer do banco de reservas, o Valencia conquistar a Copa del Rey, seu último título. 

Uma última e vã esperança


Foto: Getty Images
Ainda houve uma última esperança, porém. Ela se materializou em 2008/09. Embora já não tivesse as melhores condições físicas e nem fosse mais considerado um titular, Vicente finalmente conseguiu estar saudável na maior parte de uma temporada. Quase sempre vindo do banco, conseguiu a marca de 40 jogos e melhor do que isso: anotou 10 tentos. Minutos foram poucos, em média 40 por partida disputada, mas pelo menos o DM ficou longe.

Tristemente, a sorte durou pouco. Os dois anos que se seguiram trouxeram de volta a agonia de ver o time do coração de longe, sem poder fazer nada. No primeiro deles, só foi titular seis vezes, situação que se repetiu no seguinte. O fim de seu vínculo contratual com o clube então chegou. E as palavras que Vicente disse antes de sua despedida deixaram evidentes as marcas de sua constante dor:

“Gostaria de me despedir de outra forma, sendo titular e competindo e não estando três meses sem ser relacionado. Fico com tudo de bom que vivi nesses onze anos. Sou torcedor do Valencia e dei tudo de mim. Espero ser aplaudido”.

Como todo bom guerreiro, Vicente não fugiu à luta. Insistiu. Tentou a sorte por mais dois anos na segunda divisão inglesa. Com a camisa do Brighton continuou causando impacto positivo nas escassas chances que teve nos gramados. No primeiro ano, que lhe garantiu uma renovação de contrato, fez 19 jogos, marcando três gols e entregando nove assistências. 

Mas a perene permanência no estaleiro — somada a uma relação ruim com seu treinador, o uruguaio Gus Poyet — cobrou seu preço e o jogador preferiu pendurar as chuteiras, depois de jogar apenas 13 encontros na campanha seguinte. 

Longe dos campos, Vicente começou a se preparar para ser treinador. E, embora ainda não nessa função, retornou ao Valencia em 2016, como membro da diretoria de futebol da equipe. Com apenas 35 anos… Sua relação com o clube segue fortíssima.

É claro que o “se” não entra em campo, mas ficou eternizada uma dúvida: o que teria sido do menino de Benicalap se não fosse o infortúnio daquela noite em Bremen?

Comentários

  1. Sempre torci para o Valência e o jogador que eu mais admirava era o Vicente, tinha tudo para ser um grande craque, porém as suas contusões reduziram sua carreira em alto nível.

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