Os Three Degrees: um trio e uma luta históricos

Os anos 60 presenciaram o surgimento de um famoso trio de soul music nos Estados Unidos. Composto por Fayette Pinkney, Shirley Porter e Linda Turner, apareceu, em 1963, o The Three Degrees. Mais lembrado pela famosa When will I see you again, a tríade de vozes negras chegou ao topo das paradas na América e no Reino Unido; marcando seu nome na história da música. Poucos anos depois, em 1978, o futebol conheceu os seus próprios Three Degrees, importantes não só por suas qualidades técnicas, mas por aquilo que significaram dentro e fora de campo.


Three Degrees West Bromwich Albion Brendon Batson Laurie Cunningham Cyrille Regis
Foto: Divulgação/ West Bromwich Albion


Quem caminha hoje nas ruas de Londres se depara com uma cidade multicultural. Adentrar o transporte público da capital inglesa é estar na presença de brancos, árabes, indianos, negros, asiáticos, de pessoas das mais diversas tribos e estilos. Essa situação, contudo, não se verifica por todo o país e, certamente, em 1978 era ainda menos palpável. Até o referido ano, sequer o futebol conseguia refletir isso.

Entretanto, essa foi a época em que começaram a se somar os exemplos de resistência que seriam fundamentais para a evolução da sociedade inglesa em sua relação com o futebol e para a diminuição da discriminação e do abuso. Enquanto Viv Anderson se tornava o primeiro negro a vestir a camisa da Seleção Inglesa, no West Bromwich um trio também cumpria o seu papel. Começava-se, ali, a pavimentar o caminho para que jogadores como Sol Campbell, David James, Ashley Cole ou, mais recentemente, Marcus Rashford pudessem brilhar no English Team.

Brandon Batson West Brom
Foto: Rex
Naquele 1978, o lateral Brendon Batson chegou ao WBA para completar o trio formado ainda pelo ponta Laurie Cunningham e o centroavante Cyrille Regis. O primeiro nascera na caribenha Granada, o segundo era inglês de nascimento e o terceiro vinha da Guiana Francesa. Foram somente o segundo trio de jogadores negros a vestir, simultaneamente, a camisa de um clube inglês - anteriormente, o West Ham havia alinhado outros três. A parceria durou apenas uma temporada, já que Cunningham partiu com moral para o Real Madrid (foi o primeiro inglês a o fazer) ao final da temporada 1978/79, mas o que representaram ficou eternizado. A alcunha de Three Degrees acabou atribuída pelo treinador da equipe à época, Ron Atkinson.

Ser um futebolista negro no contexto inglês do final dos anos 70 era um desafio daqueles. Como o Guardian indicou em 2016, aquela geração precisava “se fazer de surda” para ignorar gritos como “Coon” ou “Zulu”, além de ignorar arremessos de todo tipo de coisa – incluindo-se bananas. Dentro do campo, os jogadores mostraram o que valiam. Em mais um ano de dominância do Liverpool e perseguição do Nottingham Forest, os Baggies terminaram o Campeonato Inglês com a terceira colocação, com o segundo melhor ataque e a terceira defesa mais sólida.

Regis foi eleito o jogador jovem do ano pela Associação dos Jogadores Profissionais – PFA e, junto a Cunningham, lembrado como um dançarino da bola, pela ginga e estilo de jogo, integrou a seleção do torneio. Este, por sinal, foi também o primeiro jogador negro a representar a Seleção Inglesa Sub-21.

Laurie Cunningham England
Foto: Bob Thomas/Getty Images
Nenhum dos três acabou tendo uma carreira proeminente com o English Team, mas deixaram sua marca no futebol inglês. Ao final de sua carreira, Batson teve um cargo executivo na PFA e ainda hoje segue firme na batalha para extirpar o racismo do mundo da bola. Em 2015, quando entrevistado pelo Express & Star, questionou: “Por que parece haver pouco envolvimento [negro] na direção [dos clubes] ou pouco interesse dos jogadores negros quando 25 por cento dos jogadores profissionais são negros?”. Uma pergunta pertinente e para a qual se tem muitas respostas, nenhuma delas plenamente satisfatória.

Em outra entrevista, dessa vez concedida ao Guardian, o ex-lateral também deixou claro o nível de hostilidade vivido naqueles tempos, o que incluía xingamentos vindos de sua própria torcida. “O que me chocou quando cheguei ao West Brom foi o volume [...] O barulho e o nível de abuso eram incríveis [...] Mas era tão comum, que você acabava se acostumando [...] Era um sinal dos tempos. Não me lembro de levar isso tão a sério ou chorar. Lidamos com isso. Não era um novo fenômeno para nós”.

O absurdo era tanto que os jogadores chegaram a receber ameaças de morte. Mas nada disso tirou deles a sensação de pertencimento ao esporte. Cunningham, talvez o mais perseguido, fosse porque era o mais talentoso ou simplesmente por ter se casado com uma mulher branca, acabou tendo um final de vida trágico e precoce. Aos 33 anos, quando defendia o Rayo Vallecano, faleceu em um acidente de carro.

Cyrille, por sua vez, é outro que deixou esse plano muito cedo. Aos 59, tinha problemas cardíacos e faleceu no último 14 de janeiro. Sua importância, contudo, foi ressaltada pela ocasião. Ex-atacante do Manchester United, Andy Cole revelou em seu Twitter que ficou “devastado” com a notícia e que “seu herói, seu pioneiro, o homem por trás da razão pela qual eu quis jogar futebol faleceu”. O atacante, como seus companheiros, tornou-se exemplo. Em memória à grandeza do ex-jogador, o Guardian arrematou:

Cyrille Regis
Foto: PA/Empic Sport
“Se você era mais ou menos da mesma idade do Regis, há alguma chance de que você tenha crescido amando a música de Marvin Gaye, Aretha Franklin, Otis Redding, John Coltrane e Jimi Hendrix. E, se era assim que você se sentia, era fácil conceber a chegada de jogadores negros, com o sentimento de que eles poderiam ter algo a adicionar ao jogo inglês”.

Não há sombra de dúvidas a respeito da contribuição do jogador negro no futebol. Se a intenção for mencionar apenas os craques que marcaram o esporte, pode-se começar por Leônidas da Silva, passar por Eusébio e George Weah e chegar aos dias de Neymar. Porém, ainda há alguma resistência em aceitar tal fato.

O racismo é real. É contra ele, um inimigo que parece muitas vezes invisível, que Brendon luta. É também pela memória da corajosa resistência de Regis e Cunningham que se deve brigar. Em breve, haverá uma estátua no The Hawtorns, casa do West Bromwich, em homenagem aos Three Degrees. Esta servirá para eternizar a gloriosa passagem do trio pelas West Midlands, mas também se prestará ao papel de lembrete constante do significado e da força de sua luta.

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