Muito antes do VAR: a invasão que alterou um Kuwait e França

Não há dúvidas de que a Copa do Mundo de 1982 foi uma das mais inesquecíveis da história da competição. Os motivos que justificam tal afirmação são vários. Dentre eles, é provável que os mais evidentes sejam a presença de uma Seleção Brasileira paradigmática em termos de bom futebol e a redenção do italiano Paolo Rossi. Um outro fato curioso foi a primeira presença do Kuwait em Mundiais.


Foto: Getty Images


Superando as expectativas 


A classificação kuwaitiana ao certame coroou um time que venceu, pela única vez em sua história, a Copa da Ásia em 1980 e disputou os Jogos Olímpicos no mesmo ano. A eliminação, porém, veio rápida, com um empate e duas derrotas. A despeito disso, foi outra questão que marcou a passagem do país pelo principal palco futebolístico.

Nem o mais sonhador dos torcedores do país asiático poderia esperar que o Kuwait tivesse uma boa participação na viagem à Espanha. A lanterna em seu grupo era uma realidade palpável — e não seria vergonha alguma caso se confirmasse. Apesar disso, a campanha foi realmente digna. 

Os azuis foram sorteados para um grupo pesadíssimo. Em tese, o adversário mais fraco seria a Tchecoslováquia, que trazia consigo os gols de Zdeněk Nehoda, a categoria do ídolo cult Antonín Panenka e havia ficado com a terceira posição na Euro 1980. Junto aos eslavos, figuraram dois rivais históricos. A campeã mundial de 1966, Inglaterra, levava o talento de Glenn Hoddle e as defesas do goleiro Peter Shilton. Já a França contava com um dos meio-campos mais fantásticos de sua história, com Alain Giresse, Jean Tigana e Michel Platini.

Foto: Mondial
Do lado do Kuwait, o nome mais conhecido era, indiscutivelmente, o do treinador brasileiro Carlos Alberto Parreira, na medida em que todos os selecionáveis atuavam em seu país. É bom lembrar que, até então, o comandante não tinha conseguido as glórias que o fizeram famoso, sendo mais lembrado por ter sido um dos preparadores físicos da Canarinho na conquista da Copa do Mundo de 1970.

Em grupo difícil, um empate foi uma grande vitória


Por isso mesmo, foi com surpresa que, no dia 17 de junho, os catalães do Mundo Deportivo relataram que “uma decepcionante atuação da Tchecoslováquia permitiu ao Kuwait ser a enésima surpresa desse Mundial [...] O Kuwait mostrou desde o primeiro minuto que seu jogo era rico, variado e bem dirigido”.

Uma vitória teria sido a realização de um verdadeiro sonho, dado o fato de que o empate — marcado por um pênalti inexistente em favor dos europeus — já foi comemorado como tal.

Paralelamente, com o triunfo contra os franceses em seu jogo inicial, a Inglaterra havia chegado à liderança do Grupo 4, mas a verdade é que estava tudo aberto. Então, os kuwaitianos enfrentaram a França em Valladolid. Logo veio o balde de água fria. Aos 31 minutos, Bernard Genghini colocou Les Bleus em vantagem. Platini ainda aumentou o placar antes do final do primeiro tempo e Didier Six fez o terceiro pouco após o início da etapa final. Não pararia por aí.

Abdullah Al-Buloushi até diminuiu o placar, mas Giresse anotou o quarto pouco depois. O curioso foi que a defesa asiática parou de correr, dando ainda mais facilidade para o meia gaulês balançar as redes. Mas não ficou barato. Os goleados alegaram ter ouvido um apito do árbitro e por isso teriam renunciado à disputa pela bola. A princípio, as alegações de nada serviram, com o juiz confirmando o gol francês. Então, um novo protagonista entrou em ação.

Uma influência real


O príncipe Fahad Al-Ahmed Al-Jaber Al-Sabah, presidente da federação de futebol do Kuwait e irmão do emir do país, invadiu o campo reivindicando a anulação do quarto tento dos bleus. O árbitro ucraniano Miroslav Stupar acabou achando que a invalidação do gol era a medida mais correta e deu bola ao chão. Posteriormente, a FIFA acabou multando o dirigente e banindo o juiz de seus quadros, que integrava desde 1977.


A irresignação kuwaitiana pode ter evitado o gol de Giresse, mas não impediu que a França fizesse um quarto gol, anotado por Maxime Bossis. O placar de 4 a 1 praticamente eliminou os asiáticos da competição. 

Eles entraram no jogo final, contra os líderes ingleses (que haviam vencido os tchecos na segunda partida), sabendo que precisariam não só ganhar, mas tirar uma enorme desvantagem no saldo de gols, para empatar em pontos com os franceses — que empataram com os rivais eslavos um dia antes — e buscar a classificação.

A missão impossível acabou se revelando como tal. Entretanto, o Kuwait não deixou o Mundial pela porta dos fundos. Resistiu à força dos Three Lions e concedeu apenas um gol, anotado por Trevor Francis, à época atacante do Manchester City. Perdeu, mas saiu de pé e com a cabeça erguida. O desempenho no campo superou as expectativas, mas a verdade é que a intervenção de seu príncipe e dirigente acabou se tornando a principal memória kuwaitiana daquele inesquecível e quente verão espanhol.

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