Sofre o Leicester City com seu movimento de contracultura

O árbitro apita o final da partida e a torcida vaia. O Leicester City não vence há seis jogos na Premier League. Embora duas derrotas tenham sido fora de casa e uma outra, ainda que como anfitrião, tenha se dado perante o Manchester United, os zero pontos somados no King Power Stadium em jogos contra Southampton e Crystal Palace pesam uma tonelada. Diferentemente dos tempos vitoriosos, os Foxes agora praticam um jogo mais propositivo (em alguns momentos agradável ao espectador). Entretanto, as vitórias rarearam, o que custou o emprego do treinador Claude Puel.

Brendan Rodgers Leicester City
Foto: Reprodução - Leicester City/Arte: O Futebólogo


Não é mistério para ninguém o funcionamento do Leicester que conquistou corações na corrida para o título inglês de 2015-16. Era um time pragmático, com um marcador implacável, N’Golo Kanté, um talento endiabrado pelos flancos, Riyad Mahrez, e um goleador na ponta final, Jamie Vardy — além de outras presenças cruciais como a do goleiro Kasper Schmeichel. 

Entretanto, os maus resultados no ano seguinte levaram à demissão do treinador Claudio Ranieri. O último suspiro de sua filosofia de jogo aconteceu por intermédio de seu antigo auxiliar, Craig Shakespeare, que assumiu o time na sequência. Entre outubro de 2017 e o último domingo (24) foi o francês Claude Puel quem deu as cartas (de um jogo bem diferente).

Depois de um trabalho longevo e bem visto à frente do Nice, Puel foi mal no Southampton. E chegou contestado ao King Power Stadium. À época, a maioria dos analistas ingleses viu com reservas sua vinda: “A contratação de Claude Puel pelo Leicester City [..] será considerada decepcionante por muitos torcedores”, disse Phil McNulty, jornalista da BBC.

Jamie Vardy Leicester City Claudio Ranieri
Foto: PA/ Arte: O Futebólogo

Do 4-4-2 ao 4-2-3-1 (ou 4-1-4-1)


Sem Kanté, sem Mahrez desde o fim da temporada 2017-18 e com peças de outro perfil, Puel mudou o time. Trocou o característico 4-4-2 de Ranieri pelo 4-2-3-1 (às vezes variado em 4-1-4-1). Outrora talismânico para o time, o japonês Shinji Okazaki perdeu muito prestígio e sua posição. O segundo atacante deu lugar a um outro meia — hoje James Maddison. 

Na contenção, Wilfred Ndidi foi o escolhido para fazer papel semelhante ao que exercia Kanté, o de limpa trilho. Mas sem a mesma eficiência. O português Adrien Silva não se adaptou e saiu dos planos. Isso fez com que Nampalys Mendy, que retornou de empréstimo junto ao Nice, ganhasse espaço. Bom nos passes curtos, mas pouco efetivo na recuperação da bola e incapaz de criar uma jogada ofensiva sequer, tornou-se um problema.

Na janela de transferências do inverno europeu, Puel despachou Adrien para o Monaco e recebeu em troca, por empréstimo, Youri Tielemans. Bem mais criativo, o belga acresceu qualidade ao meio dos Foxes, mas isso não se refletiu em resultados imediatos.


Mais gente constrói o jogo


A cara do time também mudou pelos lados. Ricardo Pereira, lateral direito, e Ben Chilwell, o esquerdo, são muito ofensivos. O primeiro tem alternado grandes atuações com falhas clamorosas. Já o segundo tem sido mais eficiente, relegando o campeão Christian Fuchs ao esquecimento. 

Adiante, o ponta Rachid Ghezzal ainda não conseguiu ser um substituto à altura de Mahrez, embora tenha características semelhantes. O único absoluto por ali é Demarai Gray, já que Marc Albrighton — outro antigo titular de Ranieri — também perdeu parte de seu espaço. Gray é habilidoso, mas oferece bem menos ao coletivo. Também por isso, o clube resgatou o garoto Harvey Barnes, que, emprestado, se destacava pela ponta esquerda na segunda divisão, pelo West Bromwich. Talentoso e aplicado, rapidamente se encaixou e se mostra uma boa solução.

E, como dito, há Maddison. A criatividade do time tem se centrado em sua figura. É ele quem tem mais visão de jogo, capacidade de controle e decisão, além de um pé direito calibrado — não por acaso lidera a estatística de criação de ocasiões de gol na Premier League, com 75. Todavia, seu contributo defensivo também é escasso. Avançado, Vardy seguiu sendo a referência, mas a proposta de jogo do time não o tem atendido tão bem. As bolas em profundidade que o consagraram diminuíram drasticamente.


Mais posse, menos resultados


O aumento da posse de bola do time foi a marca mais facilmente percebida nesse momento. No ano em que foi campeão, o Leicester teve, em média, 44,7% de posse de bola por jogo. Esse número subiu dramaticamente, alcançando 49,9%. Virtualmente, os Foxes têm dividindo a posse com seus adversários

Ter a pelota tem significado criar muitas chances. Atualmente, o time é o quarto que mais oferece passes chave por jogo. O problema é que 39% de suas finalizações erra o alvo (sem contar as que são bloqueadas ou acertam a trave). E que 41% é de fora da área. Isso demonstra a imensa dificuldade que o time tem de penetrar na área adversária. A bola ronda o gol rival, mas entra na pequena área bem menos do que o desejável. 

Disso resulta o fato de que apenas 9% de suas finalizações se convertem em gols. Como comparativo, o Cardiff, primeiro clube além da zona de rebaixamento, tem 8,2%, enquanto o Liverpool, líder, converte 15%, e o Manchester City, vice, 16%

Infográfico: O Futebólogo
Outro problema recente tem sido a má forma individual de Vardy. Hoje, ele tem tido o mesmo tanto de oportunidades que na última temporada (2,1 contra 1,9), mas tem sido menos efetivo. É de se ressaltar que, em seu caso, todas as finalizações feitas foram de dentro da área rival. Apesar disso, ele tem sofrido com o tipo de oportunidade que recebe. Para Puel, o centroavante não se adaptou ao seu estilo de jogo:

“Jamie [Vardy] jogou muitos jogos em contra-ataque. Quando jogamos com um time afundado no campo, ele não tem esse espaço, ele precisa aprender, como seus companheiros, movimentos diferentes”, disse à BT Sport.

O setor defensivo até não tem ido tão mal — apesar de ser o 9º pior, sofre menos gols por jogo — 1,4 — do que na temporada 2017-18 (1,6).

Contragolpe ainda é solução


De fato, a qualidade das performances não vinha sendo de todo ruim. Recentemente, Maddison, Barnes e Gray vinham se entendendo no setor de criação. E, na sequência de resultados ruins que custou o cargo de Puel, das cinco derrotas, em três o time perdeu pela margem mínima. Não obstante, o esforço contracultural tem sido grande. O time propositivo do francês teve problemas para esquecer de vez as marcas do reativo Ranieri.

Harvey Barnes Leicester City Harry Maguire
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
O Leicester é o time que mais vezes marcou em contragolpes na Premier League. São sete gols. É também o terceiro que menos anotou tentos em jogadas construídas. Aliás, o desespero em momentos desfavoráveis é outra marca flagrante deste time dos Foxes. Não à toa, é — ao lado de Huddersfield e Everton —  o time que mais cruzamentos faz por jogo, 22.

O trabalho de Puel era ingrato. Romper com um estilo que foi vencedor não é das tarefas mais fáceis, sobretudo com a pressão por resultados, que foi aumentando a cada semana. A sequência de derrotas foi fatal: custou a Claude o emprego. Aliás, no primeiro jogo após a demissão do francês, o Leicester venceu o Brighton, 2 a 1. Adivinhem como? Tendo menos posse de bola e anotando um dos tentos em contragolpe.

Claude Puel Leicester City
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo
Havia pontos interessantes sendo trabalhados, como o desenvolvimento de jovens (Ndidi, Chilwell, Maddison, Gray e, agora, Barnes). Durante parte dos jogos, era até agradável ver o time jogar. Mas, conforme os gols adversários iam se acumulando e as derrotas se evidenciando, o time vinha se revelando perdido. Em alguns momentos, tentando as velhas táticas de contra-ataque, em outros aposta mesmo no chuveirinho. Mudar uma cultura, definitivamente, não é tarefa fácil. Não foi Puel o responsável por terminar o trabalho.

Brendan Rodgers, ex-Liverpool, e atualmente no Celtic, vem aí. Muda o comandante e, claro, muitas ideias. Mas o norte-irlandês, por seu histórico, dificilmente recuperará o estilo de Ranieri. Em entrevista antiga concedida à FA garantiu: "A [minha] filosofia de futebol é positiva [...] gostamos de jogar um futebol ofensivo e criativo, mas sempre com disciplina tática". No entanto, o treinador poderá acabar aproveitando o contexto. Em 2013-14, o Liverpool treinado por ele foi o time com a quinta maior posse de bola da Premier League — 54,7% — e, ainda assim, o recordista de gols em contragolpes, nove.

O esforço contracultural continuará, mas pode sofrer um bom desvio e acabar sendo menos radical. É o que esperam os torcedores do Leicester.

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