Do sono ao sonho: a transformação de Felipe Anderson

Um dos maiores riscos que o futebol oferece é a criação do rótulo. Uma aparente apatia, falta de intensidade, marcou o início da carreira do meia Felipe Anderson, com a camisa do Santos. As constantes críticas (construtivas, muitas vezes) do treinador Muricy Ramalho não ajudaram e a alcunha de jogador sonolento pegou. Foi necessária uma estadia prolongada na Itália para que o estigma começasse a ser quebrado e o jogador, que hoje se destaca na elétrica Premier League, mudasse de patamar.


West Ham Felipe Anderson
Arte: O Futebólogo

Evoluindo na Itália


“Às vezes, o Felipe desligava um pouquinho, ele sabe disso”, disse seu ex-treinador ao SporTV. O jogador mal tinha alcançado os 20 anos quando essa conversa começou. Suas qualidades, entretanto, ficaram evidentes desde ainda mais cedo. Com 17, o meia fez sua estreia no time profissional; três mais tarde já jogava na Lazio. 

Era um tempo de exigências enormes. O Santos vivia uma época vencedora — com títulos de Copa do Brasil, Copa Libertadores da América e Recopa— e tinha talento de sobra com Neymar e Paulo Henrique Ganso. As comparações não ajudaram Felipe Anderson a engrenar.

Nada disso impediu que o jogador conseguisse uma oportunidade no futebol europeu. Longe das expectativas excessivas, cresceu e amadureceu. Aos poucos, foi abandonando o centro do campo, caindo pela faixa esquerda. E foi se adaptando à dureza do futebol do Bel Paese. Depois de passar grande parte da temporada 2013/14 na reserva, terminou a campanha com a vaga de titular e não mais perdeu tal condição.

É verdade que atuou algumas vezes como “10” (sobretudo na temporada 2017/18, em que foi quase um segundo atacante, para se encaixar em um esquema com três zagueiros), e outras pela direita, mas se encontrou mesmo pelo flanco canhoto. A mudança foi importante para o jogador, que passou a ter mais liberdade para conduzir a bola e menos responsabilidade de entregar os passes à Ganso que lhe eram tão cobrados. Atuando por ali, também foi forçado a melhorar os aspectos físicos de seu jogo. Felipe ganhou corpo e velocidade. 

Lazio Felipe Anderson
Arte: O Futebólogo

No processo, adquiriu também consciência tática. Deixou de se esconder para se tornar o grande talismã da Lazio. Seu ex-treinador, Stefano Pioli, acredita que foi fundamental para o meia nunca perder a confiança em suas capacidades

Há jogadores brasileiros que perdem parte de suas qualidades individuais quando passam pelo processo de “europeização”. Com Felipe, o resultado foi o oposto: seus talentos foram potencializados. Hoje, marca gols, cria assistências, ajuda na recomposição defensiva, cobra bolas paradas, dribla e pressiona, com intensidade, o adversário na hora de recuperar a bola.

Se a Itália lapidou, a Inglaterra faz o polimento


Apesar de ter tido fases mais e menos boas na Itália (inclusive vivendo polêmica com o treinador Simone Inzaghi), Felipe Anderson passou a ser disputado. Durante muito tempo preencheu espaço no noticiário do Manchester United e, nesse meio-tempo, estreou pela Seleção Brasileira e foi campeão olímpico. Aos 25 anos, acabou se tornando a contratação mais cara da história do West Ham, comprado por £33 milhões. O rótulo de “Sleep Anderson” não chegou à Europa e há tempos não faz o menor sentido.


Em seu início de trajetória como jogador dos Hammers vai valendo cada centavo investido em sua contratação. Ele demorou muito pouco a engrenar e está em alta. 

É o artilheiro do time na Premier League com oito gols (alguns deles em belos chutes de fora da área). Também lidera a estatística de assistências, com três, ao lado de Mark Noble, Michail Antonio e Robert Snodgrass. É o terceiro jogador que mais finaliza por jogo, com 1,6 tentativas, e quem mais cria ocasiões de gols: 1,8*.

Defensivamente, é o terceiro atleta com mais desarmes por encontro (2,3). As dobradinhas que tem feito pelo lado esquerdo com os laterais Aaron Cresswell e Arthur Masuaku têm sido muito sólidas, sempre fechando bem a segunda linha de marcação, do esquema escolhido. E ele também está com o físico em dia, sendo o jogador de linha com mais minutos disputados na temporada (2136 minutos, em 25 jogos). 

Tais dados são significativos por si só, mas ganham outra dimensão quando colocados na dura realidade do West Ham — 12º colocado na EPL.

West Ham Felipe Anderson
Arte: O Futebólogo

O hoje é ótimo e ainda há o que melhorar


“Penso que o Felipe, antes de mais nada, é rápido e tem muita habilidade. Talvez o fato de ele continuar correndo muito com a bola seja a razão pela qual, no início, parecia que ele não estava fazendo as coisas tão bem. Mas eu sempre confio nele, sempre falo coisas diferentes para ele após os jogos e ele sempre ouve”, disse seu treinador, Manuel Pellegrini ao Independent.

Para muitos pode ser chocante perceber que Felipe Anderson tem apenas 25 anos. Já está em seu nono como atleta profissional, muito distante de um garoto alegadamente desligado. Se o futebol brasileiro não lhe ofereceu o tempo necessário para crescer e as condições para encontrar sua melhor posição, como dito, a Itália o lapidou e a Inglaterra o pule.

O meia não se transformou em um craque da categoria de seu ex-companheiro Neymar — o que nunca foi esperado, frise-se. Porém, não existem dúvidas quanto ao abismo que cresceu entre ele e Ganso. Ao final, a comparação se mostrou totalmente descabida, mesmo porque, em seu melhor, não disputariam posição. Jogariam juntos. Mas essa é uma realidade para um plano paralelo. No mundo real, Felipe Anderson não dorme no ponto. Superou críticas e dúvidas. Evoluiu, técnica e taticamente, e vive um sonho, atuando em uma liga de elite.

* Foi considerado um mínimo de cinco partidas. Dados via Whoscored.

Comentários

  1. Wladimir, parabéns! Sou suspeito para falar, afinal sou um grande fã de O Futebologo e grande fã do F. Anderson, mas este foi um dos melhores e mais completos artigos que já li sobre futebol. Assim como os próprios Hammers, Felipe tem muito a melhorar com Pellegrini, mas já é bom ver o West Ham pensar grande.

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  2. Muito bom o texto! Seria ótimo ver o Felipe com espaço pra fazer o que sabe na seleção (será que ainda pode jogar junto com Neymar?). Um abraço

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    1. Muito obrigado! Acredito que com a adaptação vivida pelo Neymar no PSG, atuando muitas vezes em uma função mais centralizada (claro, nada estático), é possível, sim. Na minha visão, a maior dificuldade do Felipe é a concorrência — Coutinho, Douglas Costa, Vinícius Jr. Richarlison, Éverton Cebolinha (cito porque foi convocado). Também coloco os que atuam à direita no páreo, porque se trata da seleção e, eventualmente, jogadores atuam em outros posicionamentos. Então, acrescente William, Gabriel Jesus (jogou pela seleção recentemente ali), Lucas Moura, David Neres, Malcom... Dá para colocar até o Paquetá, por ser multifunção.

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