O hat-trick perfeito de Peter Crouch

Ele nunca passou despercebido. Era diferente. Possivelmente, os únicos lugares em que representasse um padrão seriam as quadras de vôlei ou basquete. No futebol, passaria como um goleiro e, ainda assim, um arqueiro enorme. Não foi fácil aceitar sua peculiaridade quando ficou decidido que seu futuro o aguardava nos gramados — como atacante. Com 2,01m e pouco mais de 70 quilos, Peter Crouch desafiou modelos para viver uma carreira especial. Dentro das quatro linhas, superou a desconfiança, como devem se recordar os torcedores de Liverpool e Arsenal.

Peter Crouch Liverpool hat-trick
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo

Minha vítima favorita


Crouch nasceu em uma cidadezinha encravada no noroeste da Inglaterra, ao sul de Manchester e ao norte de Stoke-on-Trent: Macclesfield. No entanto, cresceu em Londres, depois de viver alguns de seus primeiros anos exilado em Cingapura, levado pelas obrigações profissionais de seu pai. Depois de passar por clubes pequenos, não profissionais, da Grande Londres, deu seus primeiros passos no Brentford, aos 10 anos. 

Conforme ia crescendo (literalmente), Peter passou a chamar atenção. Foi assim que viu Chelsea e Millwall se acercarem, oferecendo mais que contratos: melhores hipóteses de desenvolvimento como atleta durante sua adolescência. Seu destino acabou sendo o Queens Park Rangers e, depois, o Tottenham, de onde só saiu quando já havia se tornado profissional.

O jovem flertou com diversas camisas londrinas, isso sem falar no fato de ter nascido no seio de uma família de torcedores do Chelsea, de quem, segundo o Mirror, chegou a ser até gandula — embora tenha sustentado sua torcida fiel pelo QPR. Uma coisa é certa: Crouch sempre passou longe do Arsenal. E, ainda que o jogador nunca tenha dito nada a respeito de uma possível antipatia pelos Gunners, os fatos falam por si.

Apenas o Blackburn sofreu tanto com o centroavante quanto o Arsenal. Ainda que o recorde coletivo de Crouch seja ruim, com 15 derrotas em 27 jogos, seus números individuais são positivos, tendo anotado nove gols — ou um a cada três jogos contra os alvirrubros. Uma dessas circunstâncias aconteceu no dia 31 de março de 2007.

Um jogo projetado para ele


Peter Crouch vivia um bom momento em sua carreira. Depois de rodar por QPR, Portsmouth, Aston Villa, Norwich e Southampton, vestia a camisa do Liverpool desde 2005, mesmo ano em que estreara pela Seleção Inglesa. Embora viesse ficando de fora do time titular em algumas ocasiões — o que se justificava em função da exigência específica de cada jogo, com o atacante disputando a titularidade contra o veloz Craig Bellamy — o gigante era uma arma especial para determinados encontros.

Crouch England
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo
Ele estava retornando de um período fora, em que havia sido submetido a uma cirurgia no nariz, mas existia confiança de que poderia fazer a diferença.

Naquela tarde do fim de março de 2007, em Anfield Road, os liverpuldianos levaram ao campo um par de bons assistentes de perna esquerda dominante, Mark González e Fábio Aurélio; e um destro de ótimo cruzamento, Jermaine Pennant — isso sem falar nos ótimos passadores Steven Gerrard e Xabi Alonso. Era mais que provável que Crouch fosse procurado.

Do outro lado, o treinador do Arsenal, Arsène Wenger, confiava em uma dupla de zaga muito forte fisicamente, mas não exatamente alta, com William Gallas (1,82m) e Kolo Touré (1,78m). A vantagem de Crouch era enorme. Nem mesmo o goleiro Jens Lehmann (1,90m) competia em estatura. As hipóteses do clube londrino não duraram sequer cinco minutos.

O hat-trick perfeito


O Liverpool batalhou por uma bola na ponta direita de seu ataque. O lateral Álvaro Arbeloa recuperou-a e passou de calcanhar para Pennant, que devolveu magistralmente, de letra, para a ultrapassagem do ala. Ele cruzou rasteiro e encontrou o pé direito de Crouch. O gol atordoou os londrinos, que passaram a fazer um jogo desinteressado. Foi pouco depois de Júlio Baptista desperdiçar a chance de empatar, que Peter voltou à carga.

Pela esquerda, Aurélio e González vinham se entendendo muito bem. E veio desse flanco um cruzamento perfeito. O brasileiro lançou da intermediária uma bola que fez a curva necessária para ficar à feição para Crouch. Pobre Abou Diaby. O meio-campista do Arsenal, de 1,91m, subiu com o goleador apenas para sair na foto do cabeceio, que atingiu o ângulo superior esquerdo de Lehmann. 2 a 0.

Se Emmanuel Adebayor perdia ocasiões de gol para os Gunners, o mesmo não se podia dizer de seu igual do Liverpool. 


Quem também estava on fire era Fábio Aurélio. Quando eram decorridos 15 minutos da etapa final, o lateral foi até o lado oposto cobrar uma falta. O levantamento, perfeito, encontrou o zagueiro Daniel Agger. Era o 3 a 0 do time da casa. Eventualmente, o Arsenal até marcou seu gol de honra, quando Tomás Rosicky cobrou escanteio, Touré desviou e a bola chegou até Gallas. Tudo para dar mais brilho à estrela da tarde.

Qualquer reação que pudesse ser ensaiada pelos londrinos foi freada a nove minutos do fim do jogo. Pennant foi lançado pela ponta direita e cruzou. Crouch matou a bola, entortou Touré e afundou o goleiro Lehmann, com um chute poderoso de canhota. Era o 4 a 1, a consumação de um dos eventos mais raros do mundo da bola, o “hat-trick perfeito”: três gols, um de pé direito, outro de canhota e mais um de cabeça.

“Você simplesmente não se importa com a forma como ele vem, mas foi um bom hat-trick. Estou satisfeito. É um momento especial”, disse Crouch à BBC depois do jogo.

O futebol é para todos


Crouch Stoke
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo
Em maio de 2019, Crouch foi um dos protagonistas do programa A Royal Team Talk: Tackling Mental Health, transmitido pela BBC. Lá, relatou ter sofrido muito durante a adolescência e parte de sua carreira por ser “diferente”. Em outras palavras, por ser um verdadeiro gigante. “Eu pensava que por causa da minha aparência havia um estigma definitivo contra mim e que eu nunca seria o Plano A, sempre o Plano B”, lembrou. 

Seja como escolha principal, ou não, Crouch fez uma carreira digna. Voltou a Portsmouth e Tottenham. Passou anos no Stoke City e foi ao Burnley. Leva duas Copas do Mundo no currículo. É, ainda, um dos 25 jogadores que, até o final da competição de 2018-19, havia anotado 100 gols ou mais na Premier League. São 108. Diferente, sim. Também muito eficiente e, à sua maneira, memorável.

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