Ray Clemence, um símbolo para Reds e Spurs

Não é fácil, para qualquer jogador de futebol, superar a marca de 300 jogos disputados por mais de uma equipe. Pode-se dizer, com tranquilidade, que a suprema maioria dos atletas sequer alcança tal marca por uma agremiação apenas. É preciso ser confiável, determinado e, claro, talentoso para conseguir tal feito. Todos esses adjetivos poderiam descrever Ray Clemence, goleiro que construiu seu nome junto do melhor time do Liverpool na história e que, posteriormente, seguiu para o Tottenham, continuando a fazer história.

Ray Clemence Liverpool Tottenham
Arte: O Futebólogo

Formando o maior goleiro da história do Liverpool


“Ray Clemence é, sempre sobra de dúvidas, o maior goleiro da história do Liverpool [...] Com sua vívida camisa verde, tornou-se uma instituição em Anfield”. É assim que o site oficial dos Reds recorda seu antigo arqueiro. 

Cabeludo e grandalhão (1,91m, em um tempo em que poucos jogadores superavam 1,90m), Clemence podia passar por um roqueiro, com seus mullets, quando começou sua trajetória de sucesso. Lançado aos profissionais ainda muito jovem, o goleiro deu seus primeiros passos nos gramados com a camisa do Scunthorpe United — atuando ao lado e sendo comandado por Keith Burkinshaw, jogador-treinador e figura que voltaria a ser importante tempos depois. 

Tinha 18 anos e a responsabilidade de salvaguardar a meta de um time que se encontrava na terceira divisão inglesa. Poderia ter passado despercebido, mas não aos olhos astutos do lendário treinador Bill Shankly. Reconhecido como o maior comandante da história dos Reds, trouxe Clemence para Liverpool em 1967, por uma pechincha: 18 mil libras. Ele, apesar de já ter tido experiências relevantes, só se tornou a primeira opção do treinador em 1969-70, aos 21 anos, depois de passar duas temporadas junto do elenco de reservas.

Clemence Liverpool
Foto: Liverpool Echo/ Arte: O Futebólogo

“Lembro-me da primeira vez em que o conheci [Shankly], quando assinei o contrato, em 1967. Parece uma eternidade agora, 40 anos depois, e me recordo que suas primeiras palavras para mim foram ‘Olá, filho. Como vai?’ tão simples…”, relatou o ex-goleiro ao site oficial do Liverpool, em fevereiro de 2010.

Essa conversa, entretanto, parecia que não aconteceria, segundo Ray relatou ao Daily Mail. No último jogo de sua temporada derradeira no Scunthorpe, o goleiro recebeu a notícia de que Shankly estaria lá para o observar. E foi tudo um desastre, com uma derrota por 3 a 0 para seus rivais do Doncaster, além de falhas do garoto. Entretanto, quando já havia aceitado um outro emprego, para complementar sua renda, recebeu a notícia de que seu clube havia acertado sua transferência para o Liverpool.

Grandes defesas rumo ao domínio europeu


Após viver dois anos no time reserva, alcançando o bicampeonato da Central League, Clemence finalmente deixou a sombra de Tommy Lawrence, com quem muito aprendera e que em 1970 sofria um forte declínio de forma. E logo vieram as noites de protagonismo. Defesas difíceis foram uma constante, mas a capacidade para decidir, quando o clube mais precisou, foi o que o distinguiu.

Sua primeira temporada completa como dono da posição foi a de 1971-72 e terminou sem conquistas. No entanto, logo no ano seguinte, o clube voltou a estar no topo. Com seu arqueiro na ponta dos cascos, venceu o Campeonato Inglês, superando o Arsenal. E não foi só isso, já que o Double acabou vindo com a conquista de uma Copa da Uefa especial para o goleirão.


Depois de passar por Eintracht Frankfurt, AEK, Dynamo Berlim, Dynamo Dresden e Tottenham, o Liverpool foi à final, encontrando um desafio poderoso: o Borussia Mönchengladbach, de Günter Netzer, Berti Vogts, Jupp Heynckes e Allan Simonsen. Na partida de ida, em Anfield, os Reds batiam os Potros por 3 a 0 quando os visitantes tiveram a oportunidade de diminuir a desvantagem. Mas o pênalti marcado e cobrado por Heynckes parou em Clemence. A partida de volta, 2 a 0 para os alemães, confirmou o título inglês, que teria tido outro destino caso aquele pênalti tivesse entrado.

Outro momento crucial durante a passagem de Clemence pelos gramados europeus foi a final da Copa dos Campeões, em 1977 — também contra o Gladbach. Se a vitória por 3 a 1 sugere um triunfo tranquilo dos liverpuldianos, a partida conta outra história. Era jogado o segundo tempo e os alemães haviam acabado de empatar a contenda quando o time recuperou uma bola e partiu em contragolpe. Da ponta direita, dos pés de Simonsen, veio um lançamento para Uli Stielike que saiu cara a cara com Clemence. Em um momento de tudo ou nada, Ray se sobressaiu e, logo depois, o Liverpool fez o seu segundo gol.

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Recordado em Anfield Road por suas capacidades de antecipação, sobretudo em cruzamentos, comando da área e pela vontade de vencer, Clemence foi o homem que protegeu a meta dos Reds entre 1970 e 1981. Traduzido em números e conquistas, o goleiro esteve presente em cinco títulos ingleses, um da FA Cup, um da Copa da Liga, três da Copa dos Campeões da Europa, dois da Copa da Uefa e um da Supercopa da Uefa. Foram 665 jogos e 323 clean sheets.

Presença no Hall da Fama do Tottenham


Depois de viver um memorável ato final no Liverpool, conquistando sua última Copa dos Campeões (segurando o ataque do Real Madrid em Paris, para confirmar uma magra vitória por 1 a 0), Clemence partiu para uma nova aventura: aceitou o convite de um velho amigo: Burkinshaw. Ele comandava o Tottenham e aceitara pagar 300 mil libras pelos serviços do jogador.

O goleiro já tinha quase 33 anos e via a sombra de Bruce Grobbelaar crescer em Anfield. Por outro lado, o Tottenham sofria desde que o arqueiro Pat Jennings partira para seu grande rival, o Arsenal. Clemence se tornou o primeiro jogador da história a trocar os Reds pelos Spurs. Apesar de já não ser garoto, guardou as metas de White Hart Lane por longos anos, de 1981 até 1988.

Clemence Tottenham
Foto: Marcel Antonisse / Anefo / Arte: O Futebólogo
Durante seu período em Londres, seguiu a cartilha de seus dias de glória no Liverpool, vencendo. Os anos 80 foram especiais para o Tottenham, que acumulou boas campanhas e acrescentou algumas taças ao seu portfólio. Ray foi peça importante nos títulos da FA Cup de 1981-82 e na Copa da Uefa de 1983-84 (mesmo tendo ficado de fora da final, lesionado). Além disso, participou de temporadas com resultados sólidos em um disputadíssimo Campeonato Inglês — são os casos das quartas colocações em 1981-82 e 1982-83 e dos terceiros em 1984-85 e 1986-87.

Um momento de maior destaque individual terá sido a final da citada FA Cup de 1981-82. Com um elenco curto e convivendo com problemas de ordem quase diplomática durante a Guerra das Malvinas, o que levou ao temporário afastamento dos ídolos argentinos Osvaldo Ardiles e Ricardo Villa, o Tottenham chegou à disputa fisicamente em frangalhos. Na primeira partida, apenas empatou por 1 a 1 com o Queens Park Rangers, então na segunda divisão. Foi necessário um replay. Glenn Hoddle abriu o placar para os Spurs logo aos seis minutos e Clemence garantiu que sua meta não fosse vazada, confirmando o título.

Outro ponto vital de sua passagem foi a campanha da Copa da Liga Inglesa, também em 1981-82. Clemence assegurou a chegada do Tottenham à final sem sofrer um gol sequer. A bola só balançou suas redes no minuto 87 da decisão. No entanto, o jogo foi para a prorrogação e o Liverpool, justamente ele, marcou mais duas vezes, confirmando sua conquista.

A titularidade do goleiro só foi perdida para os problemas físicos no tendão de aquiles, em 1987-88. Disputou 330 jogos pelo Tottenham e depois passou a integrar a comissão técnica do clube. Tinha quase 40 anos de idade, marcados por excelentes serviços prestados ao futebol inglês. Por fim, em 2014, recebeu um merecido lugar no Hall da Fama do Tottenham.

A sombra de Shilton


Ray Clemence Peter Shilton
Foto: Desconhecido

Um capítulo um pouco menos feliz para o arqueiro é sua longa passagem pela Seleção Inglesa. Quem olha apenas para os 61 jogos em que representou os Three Lions pode achar absurda essa constatação, mas o fato é que Ray enfrentou uma dura concorrência e acabou perdendo a disputa. Após a aposentadoria do mito Gordon Banks, dois nomes despontaram como candidatos a o suceder: Clemence e Peter Shilton

Dois goleiros da mais alta categoria e de estilos diferentes, os jogadores se digladiaram durante anos pela titularidade da meta nacional. Shilton era mais baixo, mas tinha ao seu favor maior agilidade debaixo dos paus. Outro ponto importante era a diferença de exigência a que os goleiros eram expostos. Enquanto Ray esteve sempre bem protegido por uma forte retaguarda liverpuldiana, Peter penava mais com as camisas de Leicester City e Stoke City, era mais exposto aos ataques rivais, até finalmente partir para o Nottingham Forest.

Em 1977, quando Ron Greenwood assumiu o comando inglês decidiu revezar os arqueiros, que acabaram se tornando amigos: “Fomos colegas de quarto por sete anos”, contou ao Daily Mail. Na ausência de treinadores de goleiros, eram os concorrentes que se encorajavam durante os treinamentos, que, segundo relatos, tinham níveis de competitividade assombrosos.

Entretanto, em 1982, quando a Copa do Mundo da Espanha se aproximou, o treinador precisou escolher e o fez em favor de Shilton, que terminaria sua trajetória pelos Three Lions com 125 jogos e o recorde absoluto de aparições pelo selecionado.

Peter Shilton Ray Clemence
Infográfico: Daily Mail
Para Clemence, esse acabou sendo o único capítulo a lamentar. Por clubes, teve uma carreira irrepreensível. Foram centenas de jogos disputados e clean sheets alcançados, que fundaram uma relação de idolatria em Anfield e White Hart Lane que o tempo só faz reforçar.

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