O teatro dos sonhos de Ronaldo

Sobe a placa de substituições. Surgem os números 11 e 21 e o estádio, em transe, aplaude. Em Old Trafford, a torcida do Manchester United presta suas homenagens. Porém, o que se vê não é a saída de Ryan Giggs, o 11 dos Red Devils, para a entrada de Diego Forlán. Quem caminha em direção ao agasalho que o espera à beira do gramado é o brasileiro Ronaldo; trata-se do atacante do Real Madrid que acaba de destroçar o valente time mancuniano, em uma atuação para ser recordada por anos a fio.

Ronaldo Old Trafford Real Madrid
Arte: O Futebólogo

Pareando armas


No dia 23 de abril, em 2003, o Manchester United tenta um milagre nas quartas de finais da Liga dos Campeões. Os comandados de Sir Alex Ferguson, um sólido grupo de atletas experientes, sabem que a missão é difícil. Do outro lado estão os Galácticos: Zinedine Zidane, Luís Figo, Ronaldo… Eles já venceram o jogo de ida por 3 a 1, mas é justamente o gol solitário de Ruud van Nistelrooy que dá esperança.

Para poder atuar com dois jogadores mais ofensivos, mantendo a imprevisibilidade que vem dos pés de Giggs, Ferguson toma uma decisão contestável antes do apito inicial. David Beckham começa o jogo no banco de reservas. O United entra em campo com Juan Sebastián Verón na meia-cancha, substituindo o suspenso Paul Scholes, e Ole Gunnar Solskjaer no ataque. O esquema 4-5-1 utilizado na partida de ida dá lugar ao 4-3-3. O Manchester United ataca e é quem primeiro assusta, com Nistelrooy invadindo a área pela direita, fintando o zagueiro Iván Helguera, e forçando o goleiro Iker Casillas a fazer sua primeira boa defesa na noite.

Manchester United Real Madrid UEFA Champions League
Foto: Tom Jenkins/ Arte: O Futebólogo
Se os ingleses apostam em um ataque mais robusto, Vicente Del Bosque, o comandante espanhol, protege seu meio-campo. Embora saque Flávio Conceição, também tira Raúl González, apostando suas fichas na capacidade de controle de José Maria Gutierrez, o Guti, e em um velho conhecido dos Red Devils, Steve McManaman, ídolo do rival Liverpool. Lá atrás, Claude Makélélé carrega o piano.

Há destaque também no apito, já que o comando do jogo cabe a Pierluigi Collina, o icônico árbitro italiano. Apesar disso, em uma cena com tantos candidatos a protagonista, o Teatro dos Sonhos, como é conhecido Old Trafford, é forçado a perceber que, no futuro, aquela noite passará à eternidade pela obra dos pés de uma só figura. Ela desperta aos 12 minutos.

Não há tempo para respirar


A aposta de Del Bosque dá certo. Em contra-ataque, Guti recebe de Zidane e oferece um passe vertical a Ronaldo. O zagueiro Mikaël Silvestre não está em sua posição e Rio Ferdinand não chega a tempo de fazer o corte. Não consegue porque Ronaldo e a bola são tão íntimos um do outro que não é preciso dominar, o chute de perna de direita vai de primeira e conta com a falta de inspiração do goleiro francês Fabien Barthez.

Minutos depois, por acaso, Figo quase rouba a cena, mas dessa vez Barthez se recupera e manda a bola para escanteio. Giggs também tenta, em um louvável chute de perna direita, a menos boa. Porém, a pelota teima e sai rente à trave de Casillas. Aliás, o arqueiro merengue trabalha bem, mas não o suficiente para ser o homem da noite.

Ronaldo Rio Ferdinand
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo

A valentia também cobra seu espaço no enredo. Solskjaer tenta, mas é Van Nistelrooy quem empata o jogo. Porém, falta muito para o United — no mínimo dois gols para levar a disputa para os pênaltis. E o artilheiro holandês quase consegue outro tento, antes de Collina dar por encerrada a etapa inicial. Vendo seu reinado ser ameaçado, o herói da noite volta à carga.

As equipes retornam dos vestiários e demoram apenas seis minutos para que o astro brilhe. Outra vez, quem aparece é Zidane na primeira construção — fazendo as vezes de coadjuvante de luxo. O francês encontra um espaço que só ele poderia descobrir e o potente lateral Roberto Carlos avança em direção ao espaço vazio. No meio da área está Ronaldo, que recebe o cruzamento e cumprimenta as redes. Outra vez, a segunda naquela noite. O gol também oferece outro dado à sentença que está sendo escrita: não haverão disputas penais.

Entretanto, o roteiro da noite é realmente dramático. Verón não faz uma boa temporada, mas é o responsável por cruzar uma bola que deveria chegar até Nistelrooy, mas para em Helguera. Ou melhor, no fundo do barbante, já que o zagueiro se atrapalha e marca. O tento, diga-se, tem o seu charme, desconsiderando-se o fato de ser contra. O United continua a castigar Casillas que segue fazendo o que pode. Primeiro, pára Solskjaer. Depois, Verón. E, quem não faz, eventualmente, leva, diz o ditado.

Eu resolvo


Então, Ronaldo sola. O brasileiro recebe a bola na intermediária, ajeita-a para que fique à feição, posicionada em ângulo ideal para uma finalização de perna direita. Fatal. Ele não precisa caminhar muito. Chuta dali mesmo, de fora da área. Barthez, que está adiantado, nada pode fazer, senão buscar a bola no fundo das redes. Ferguson age.


Beckham está em campo, rendendo Verón. “O Manchester United vai amassar o Real Madrid”, pensa o espectador, que acerta. Pouco depois de Nistelrooy ser parado pela trave, Del Bosque entende que precisa se proteger. É hora de tirar a estrela. Nasce o momento do contraste mais belo da noite. O torcedor local quer, mas não consegue odiar aquele que acaba de lhe impor três gols. Simplesmente, o aplaude. Está embasbacado com o que vê.

Santiago Solari vai ao campo para dar mais consistência ainda ao meio madrilenho. Atônito, Ferguson masca seu chiclete, à espera de um milagre. Ele não vem, mas não por falta de tentativas. Becks faz uma de suas especialidades e cruza a bola mais perfeita na cabeça de Solskjaer, que cabeceia para fora. E, se assistir não é suficiente, o inglês resolve que, embora pareça tarde, ainda há tempo para brilhar. De falta, outra de suas sublimes qualidades, empata o jogo: 3 a 3.

Ronaldo Old Trafford Real Madrid
Foto: Christian Liewig/ Arte: O Futebólogo
O torcedor mancuniano sabe que seu time está se esforçando e aplaude Beckham. De forma extremamente profissional, o astro não se apequena com a reserva, não se desmotiva, e segue em busca do impossível. Nistelrooy continua brilhante. Finta Helguera, e para em Casillas. Becks não desanima e aproveita o rebote, 4 a 3.

A luta dignifica coadjuvantes, mas os gols glorificam o protagonista


Nessa altura, McManaman já foi substituído pelo jovem atacante Javier Portillo. Do outro lado, Silvestre e o capitão Roy Keane também passam a assistir o final de jogo do banco de reservas, trocados por Phil Neville e Quinton Fortune. Para garantir que nada mais passará na partida, Del Bosque faz seu último movimento: tira Figo e põe o zagueiro Francisco Pavón. De fato, nada mais acontece.

O Real Madrid perde, mas avança. Nistelrooy e Solskjaer em momento algum aceitam a derrota. Beckham socorre e oferece grande suporte. Contudo, a noite tem dono. A peça, de grande elenco, vê uma estrela se sobressair. 

Os companheiros reconhecem: “Todos estavam impressionados com Ronaldo, relata McManaman ao Guardian. Os rivais também: “Ronaldo foi maravilhoso. Seu terceiro gol foi um tremendo chute, você não pode lutar contra alguém que produz momentos como esse”, afirma Ferguson. Ele, o protagonista, aceita o óbvio: “Nunca me esquecerei dessa noite”.


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