O histórico Espanha e Malta que levou a Fúria à Euro 1984

A Euro 1984 é lembrada como um dos melhores momentos da história da Seleção Espanhola antes do período mágico vivido no início do século XXI. Na oportunidade, a Fúria ainda encarnava as características que a afamavam. Era um time mais batalhador que virtuoso. No entanto, o vice-campeonato europeu só foi possível por conta de uma exibição histórica na rodada final das eliminatórias. Foi com a conhecida “garra espanhola”, lembrada pelo periódico Mundo Deportivo na manhã posterior ao jogo, que uma desvantagem de 11 gols foi tirada — às custas de uma fraca equipe maltesa.

Santillana Spain Malta
Foto: Diario AS/ Arte: O Futebólogo


Um cenário de missão impossível


Na última rodada das eliminatórias para o Campeonato Europeu, Espanha e Holanda batalhavam fortemente pela classificação no Grupo 7. Ele contava, ainda, com as presenças de Irlanda, Islândia e Malta. 

O desfecho, contudo, reservou emoções apenas para holandeses, espanhóis e malteses. Isso porque os representantes dos Países Baixos haviam goleado os fraquíssimos insulares por 5 a 0 e esperavam apenas um jogo final entre estes e a Espanha, para confirmar sua classificação. Era muito provável que a Laranja avançasse, já que, embora uma vitória da Fúria os levasse a um empate em pontos, 13, a Holanda possuía uma vantagem de 11 gols de saldo. E, por mais que o adversário hispânico fosse Malta, eram demasiados os tentos que precisavam ser marcados.

Até ali, nenhuma equipe havia conseguido marcar tantos gols em uma partida eliminatória para o torneio europeu. E no período que sucedeu aquela partida, apenas a Alemanha, em 2006, conseguiria uma vantagem tão grande, ganhando por 13 a 0 contra San Marino. Era, evidentemente, uma missão impossível a que os comandados de Miguel Muñoz teriam de enfrentar. E sua importância não poderia ser maior, não só pelo que ocorria nos campos, mas também fora deles.

A Espanha sofria uma grave crise econômica, vivia um período em que a sombra do terrorismo pairava sobre o país e estava lidando com uma tragédia em uma boate de Madrid, ocorrida quatro dias antes. Quando o fogo se propagou, havia cerca de 600 pessoas no recinto, 82 das quais vieram a falecer, com outras 27 ficando feridas. O momento pedia um milagre, mesmo que somente servisse para dar alguma fugaz alegria ou como fuga da realidade ao povo.

Superando desafios


Malta Spain Santillana 12
Foto: Times of Malta/ Arte: O Futebólogo
Diante da evidente urgência do jogo, a Espanha foi logo ao ataque. No estádio Benito Villamarín, casa do Real Betis, em Sevilla, demorou 15 minutos para sair na frente. Enfim, o fez, com gol de Santillana, após cruzamento de Antonio Maceda. No entanto, as dúvidas já ali cresciam entorno da equipe, já que aos dois minutos havia sido marcado um pênalti favorável aos donos da casa, que o meio-campista Juan António Señor colocou na trave maltesa. Segundo o Mundo Deportivo, naquela partida, “o talento espanhol foi anímico”.

Certamente, trazer à tona o melhor da alma de cada um foi importante, sobretudo porque o inesperado aconteceu aos 24 minutos. Pela primeira e única vez naquelas eliminatórias, Malta marcou um gol fora de casa, empatando o jogo. A plástica do tento, possível apenas por um desvio que deixou o goleiro Buyo sem ação, reforçou o balde de água fria.

Mas a Espanha não se abateu, marcando o segundo e o terceiro tentos nos quatro minutos que se seguiram, ambos com Santillana. No entanto, foi só o que a Fúria conseguiu naquele primeiro tempo. Ninguém acreditava mais nas hipóteses espanholas. Fazer nove gols na etapa final não era factível. Porém, “a cabeça fria e a inteligência para canalizar o jogo pelos lados e não se deixar angustiar pelo relógio” tornou tudo possível, como viria a informar o MD.

Logo na volta dos vestiários, Hipólito Rincón fintou alguns adversários, entrou na área e conferiu o quarto tento hispânico. Seria ele, outra vez, quem marcaria o quinto, nove minutos mais tarde. Depois, coube a Maceda marcar mais dois, nos minutos 60 e 62. Imparável, Rincón conferiu o oitavo aos 63, em mais uma bela jogada individual, superando os beques rivais, invadindo a área e tocando na saída do goleiro John Bonello. Enfim, a Espanha passava por cima dos malteses como um rolo compressor. Até que retornou a tensão.

Spain Malta Euro 1983
Foto: Diario AS/ Arte: O Futebólogo

Um gol pela obra de Señor


Os espanhóis tiveram de aguardar 12 eternos minutos para voltar a ver as redes balançarem. Santillana marcou outra vez e inflamou o time, que logo anotou o 10º gol, pouco após o meio-campista Michael Degiorgio, justamente o autor do tento de Malta, deixar seus companheiros em lençóis ainda piores, com sua expulsão. Foi Rincón, mais uma vez, quem o anotou, três minutos mais tarde. 

O pulso ainda pulsava. Logo na saída de bola maltesa, a Espanha recuperou a bola, contragolpeou e viu Manuel Sarabia fazer o 11º. A essa altura, já não se temia a desclassificação, a Fúria estava a um passo do milagre, ou a um tento.

Com os nervos no lugar, a equipe seguiu martelando até que, em tempo, foi reparada uma injustiça. Señor fazia grande partida, mas poderia ficar eternizado pelo pênalti perdido. Então, aos 84, acertou um belo chute de fora da área para dar a classificação à Espanha: 12 a 1. A desvantagem de 11 gols estava pulverizada. Só era necessário impedir novas investidas dos visitantes, o que se conseguiu.


A repercussão não ficou em 1983


Esse jogo ganhou lugar eterno na memória do futebol espanhol. Não só pela enormidade do feito, mas também porque, na sequência, a equipe foi finalista vencida na Euro, derrotada pela anfitriã França. Também ofereceu alento ao povo espanhol, diante de tempos difíceis. No entanto, tal como se desenrolou, aquela noite não passou aos livros de história. Muitos anos mais tarde, voltou-se a mencionar o acontecimento, com novos e polêmicos dados.

Já na época se disse que os malteses teriam se vendido, o que nunca foi provado. Ainda assim, em 2018, o Times of Malta levantou novos questionamentos acerca do jogo. Teriam os atletas visitantes sido drogados? “Era como se estivéssemos bêbados”, disse Silvio Demanuele, um dos atacantes malteses daquele jogo. O ex-treinador do time, Victor Scerri, confirma que houve fatos estranhos durante o intervalo.

“Um cara baixinho entrou no vestiário vestido de branco com uma bandeja grande, com metades de limões [...] Eu perguntei ao médico: ‘Eles podem ter sido drogados?’ Porque eles perderam a cabeça no segundo tempo […] Não temos provas e não espero que a Espanha as faça… mas se isso ocorreu, o futebol está morto”, disse.

Na sequência, a Real Federação Espanhola de Futebol ameaçou tomar ações legais contra seus iguais de Malta, que estariam aviltando a “boa imagem do futebol espanhol”. Nada mais foi feito e a história segue sendo lembrado por seu caráter insólito e os atos de heroísmo dos destemidos atletas da Fúria.

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