A ruína de Ruud Gullit na Major League Soccer

Adjetivar a trajetória profissional de Ruud Gullit no futebol, nos campos e bancos de reservas, é das missões mais ingratas que se poderia propor. Para todos os efeitos, embora seja abrangente, “incomum” serve à finalidade. Depois de uma carreira como atleta recheada de capítulos peculiares, o astro holandês decidiu seguir próximo ao esporte, mas como treinador — tudo começando aos atropelos, como jogador-treinador no Chelsea. Um de seus últimos trabalhos acabou sendo na MLS, liderando o projeto do Los Angeles Galaxy. O sucesso projetado à época de sua chegada não veio; a polêmica, sim.

Ruud Gullit LA Galaxy
Foto: Damian Dovarganes-AP-PA / Arte: O Futebólogo

Pompa e circunstância


Após passar dois anos em um hiato profissional, desde sua saída do comando técnico do Feyenoord, Gullit voltou à ativa em 2007. As expectativas eram enormes. Em franca expansão e conquistando cada vez mais apelo internacional — atraindo algumas das mais proeminentes estrelas veteranas do futebol mundial —, a MLS garantia mais um poderoso nome. Em Los Angeles, o holandês comandaria ninguém menos que David Beckham.

O contrato de três anos também era um forte sinal da confiança que se depositava em seu trabalho. Da mesma forma, o inigualável salário: dois milhões de dólares anuais. Como anunciou a agência de notícias Reuters, Ruud carregou consigo o desafio de tornar o futebol estadunidense “sexy”. A alusão data de 1996, quando foi convidado pela BBC a comentar a Euro 1996, descrevendo com tal termo as equipes que faziam a opção deliberada por um estilo de jogo fluído, elegante, e que privilegiava a estética.

“Estou muito satisfeito por estar aqui e farei tudo o que estiver no meu poder para ganhar. Mas é um grande desafio. As expectativas são muito altas, já disse aos atletas o que espero deles. Preciso de mais tempo para analisar o time, então ainda é cedo para dizer quais são minhas prioridades [...] Sempre gostei do azarão e estou aqui para enfrentar o mesmo desafio”, disse o treinador em sua apresentação.

Sua missão era clara e cristalina: possuindo a maior estrela da liga, era obrigação chegar, ao menos às fases decisivas da MLS. Seu antecessor, Frank Yallop, não conseguira conduzir o Galaxy aos playoffs da temporada anterior. 

O fracasso ficara sublinhado na partida final, contra o Chicago Fire, então treinado por Juan Carlos Osório e que tinha como estrelas o costarriquenho Paulo Wanchope e o mexicano Cuauhtémoc Blanco. Com Becks no banco de reservas, voltando de lesão, o time sucumbiu. Perdeu por 1 a 0, da pior forma possível: sofrendo gol nos acréscimos do segundo tempo. Uma vitória poderia ter levado os representantes de LA adiante.

Rusgas e deterioração do ambiente


Beckham, com quem Gullit nutriria um bom relacionamento, não era o único destaque com quem o treinador trabalharia. Apontado por muitos como o maior jogador da história do futebol norte-americano, Landon Donovan lá estava e, além dele, o lateral português Abel Xavier, ex-Everton, Liverpool e Roma e que estava no Middlesbrough. 

Lalas Beckham Gullit Galaxy
Arte: Marty Melville-Getty Images / Arte: O Futebólogo

No entanto, desde o princípio, problemas foram notados. O principal deles teria sido o desconhecimento de Ruud acerca das regras peculiares da MLS, como, por exemplo, o teto salarial imposto e que, à época, permitia apenas uma exceção, um Designated Player, David Beckham, no caso. Isso teria provocado enorme desconforto ao comandante. Mas houve outros problemas.

O livro The Beckham Experiment, do jornalista Grant Wahl, relata que o meio-campista Peter Vagenas, um dos rostos mais influentes do vestiário e que estava na equipe desde 2000, logo entrou em rota de colisão com seu treinador. Segundo ele, Gullit não treinava bolas paradas. A fúria do greco-estadunidense se revelou logo após a partida de estreia do time na MLS 2008 — derrota por 4 a 0 para o Colorado Rapids.

“Sabe… Talvez devêssemos treinar bolas paradas antes do próximo jogo”, teria dito, acrescentando que, tendo Beckham, um especialista no assunto, deixar de tirar vantagem de tais ações era simplesmente inexplicável. O autor do livro afirma que outros jogadores confirmaram que, em dois meses de pré-temporada, tais jogadas não foram treinadas.

Antes de a bola rolar, outro problema já havia se verificado. Gullit pedira e recebera a contratação do nigeriano Celestine Babayaro, com quem atuara no Chelsea. No entanto, o jogador, decepcionado com o nível do clube, tanto em termos profissionais quanto futebolísticos, adotou uma postura indolente e foi dispensado antes do início da temporada temporada — que foi um desastre absoluto. 

Ruud Gullit Los Angeles Galaxy
Foto: Getty Images / Arte: O Futebólogo
Uma tentativa falha de atuar em 4-3-3 que não extraia o melhor de suas estrelas — Beckham e Donovan — foi logo suplantada por um 4-4-2. Quando os dois conseguiam se conectar, coisas boas ocorriam, o que não foi regra. Nos 19 jogos em que liderou o Galaxy, Ruud acumulou oito derrotas, seis vitórias e cinco empates. Um desempenho pífio de 32% de aproveitamento. Antes do fim da temporada, diante de uma sequência de oito jogos sem vitória, pediu para sair. Foi substituído temporariamente pelo auxiliar Cobi Jones e, depois, por Bruce Arena.

Problemas pessoais?


A má relação com Vagenas só se deteriorou com o passar do tempo, o que não impressionou outros jogadores. Poucos dias após a saída de Gullit, o Bleacher Report deu voz a Abel Xavier, que havia sido dispensado no mês anterior: “É tudo sobre o relacionamento quando você vem trabalhar e dar duro pelo treinador. Eles [os jogadores] não lutam por ele [Gullit], não acreditam nele”. Outro que comentou sobre a breve e malfadada passagem de Ruud pelo futebol norte-americano foi Donovan:

“Houve momentos em que ele [Gullit] foi um pouco desrespeitoso e isso me incomodou. Pelo ponto de vista de Ruud, penso que foi difícil para ele. Se você tem uma certa forma de jogar futebol por 40 anos e vai a outro lugar em que não consegue os jogadores que você quer, não consegue fazer as coisas que quer, não tem um orçamento ilimitado, [...] isso torna as coisas difíceis”, disse ao Telegraph.

A única personalidade que foi simpática ao comandante foi Beckham: “É desapontador perder alguém que foi um bom treinador e uma boa pessoa”. O momento para o astro inglês também não era dos melhores, como confirmavam cartazes em jogos do Galaxy: “Vá embora, fraude”. Nunca é demais lembrar que a contratação de Gullit foi intermediada por Terry Byrne, amigo e, então, consultor de negócios de Beckham, e pela empresa 19 Entertainment, de Simon Fuller, parceiro comercial de longa data de David.

Beckham Go home Fraud
Foto: Gabriel Bouys-AFP / Arte: O Futebólogo
Já o treinador encontrou uma saída comum e pouco convincente para justificar sua saída. À Associated Press indicou que sua família não havia conseguido se ambientar a Los Angeles e que sua saída prezava pelo melhor interesse dos seus, agradecendo torcedores e clube por seu “fantástico apoio”. Por tudo o que se viu nos campos e se ouviu fora deles, o fracasso de Gullit na MLS pode até passar por problemas familiares, mas teve implicações muito maiores.

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