O acidente do Alianza Lima que arrefeceu uma rivalidade histórica

Acidentes aéreos não são comuns, e, quando acontecem, provocam marcas indeléveis. Pudera, dado o caráter fatal que normalmente os acompanha. Nestas ocasiões, a comoção costuma ser grande, sobretudo em função das inevitáveis casualidades. O desastre que acidentou o time do Alianza Lima, em 1987, provou isso. Sinistro à parte, a queda daquele Fokker F27 levou ao estreitamento de relações entre peruanos e chilenos — ao menos no contexto de dois dos mais populares times de futebol desses países.

Alianza Lima Potrillos
Foto: La República / Arte: O Futebólogo

Esperança com os Potrillos do Alianza Lima


A década de 1980 revelou o começo de um incômodo período de vacas magras para os Blanquiazules da capital peruana. Embora seja um dos clubes mais vencedores no Peru, o Alianza Lima não conquistou nenhum título nacional daqueles dez anos. O jejum se estendeu duramente. A glória de 1978, a 17ª da história da equipe, só voltaria a ser experimentada em 1997. No entanto, essa abstinência poderia ter sido menor.

Quando se avizinhava o raiar dos anos 90, a luz que se mostrava parecia indicar o fim do túnel. Além de contar com selecionáveis como o experiente goleiro José González Ganoza (tio de Paolo Guerrero), aquele time do Alianza Lima projetava um grande número de jovens talentos. O maior deles, por certo, respondia pelo nome de Luis Antonio Escobar Aburto, El Potrillo. O garoto, cujo apelido virou referência ao time, vinha acumulando marcas assustadoras. Havia estreado como profissional aos 14 anos e, pouco depois, fora convocado para as equipes sub-16, 19 e principal do Peru ao mesmo tempo. Era tido como o sucessor de Teófilo Cubillas — o maior nome peruano da história.

Além deles, Carlos Bustamente, 22, e José Casanova, 23, faziam parte de uma geração de talentos que começava a ganhar espaço na Seleção Peruana e prometia manter vivo o sonho nacional de reviver a força dos anos 70. Talvez a grande prova disso tenha sido o fato de que, disputados 18 jogos, o time liderasse o campeonato nacional, em 1987. Aliás, aquela equipe contava também com um grande nome no comando: Marcos Calderón, o treinador da Seleção Peruana no título da Copa América de 1975 e no Mundial de 1978.

“Todos mis muchachos, muertos”


Inconsolável, o presidente do Alianza Lima, Agustín Merino, não sabia o que fazer. Quem teria agido diferente? Em 8 de dezembro de 1987, chegara a mais nefasta das notícias. A bordo de um avião Fokker F27, da Marinha peruana, os Blanquiazules deixaram Pucallpa rumo à capital. Na bagagem, traziam o triunfo contra o Deportivo. Apesar disso, as malas nunca chegaram ao Aeroporto de Lima, terminaram no mar. A 10km do destino, o avião caiu. Dentre 44 pessoas (27 das quais membros da delegação aliancista), apenas o piloto sobreviveu.

Gradas Alianza Lima
Foto: El Comercio / Arte: O Futebólogo
O acidente nunca foi esclarecido. Diversas foram as versões contadas daquele dia em diante. A tese assumida como a mais crível foi a de que houve problemas no trem de pouso da aeronave, que teria sido preparada para um pouso de emergência que nunca aconteceu, em virtude da perda de comunicação com a torre de controle do aeroporto. No entanto, em 2006, uma investigação promovida por um programa de TV local teve acesso a documentos da Marinha que apontaram a existência de falha do piloto. A caixa preta nunca foi encontrada.

As tentativas de explicar o ocorrido acabaram ganhando status de teorias da conspiração. O piloto, Edilberto Villar Molina, jamais falou à imprensa. Familiares acusam a Marinha de ter impedido que ajudassem nas buscas aos corpos, que teriam tardado. 

Outra versão indica que o avião trazia, além da tripulação e dos passageiros, uma enorme carga de cocaína e que já se sabia, de plano, que seria abatido pelos fuzileiros navais peruanos. Nada oficial. Houve, ainda, corpos que nunca foram encontrados, como o do jogador Alfredo Tomasini. Segundo o depoimento do piloto às autoridades, o atleta citado teria sobrevivido em um primeiro momento, perecendo em sua tentativa de seguir com vida até o resgate.

A ajuda do Colo-Colo 


Após o ocorrido, o Alianza Lima teve de lidar, com a maior rapidez possível, com a necessidade de se remontar. Cinco de seus jogadores haviam sobrevivido, por não terem viajado àquela partida — incluindo Juan Reynoso, de 18 anos, que estava lesionado, representara o Peru na Copa América daquele ano e terminaria a carreira com mais de 80 jogos pelo país. A eles se juntaram jogadores das categorias de base e dois reforços veteranos, porém vitais: Teófilo Cubillas deixou a aposentadoria para ser jogador-treinador, além de César Cueto, outro membro da histórica seleção alvirrubra dos anos 70.

Alianza Lima
Foto: El Comercio / Arte: O Futebólogo
E não foi só isso. O momento mais emblemático do renascimento aliancista foi o da solidariedade dos chilenos do Colo-Colo. Compadecido com a situação do clube peruano, o Cacique, por meio de seu mandatário, Peter Dragicevic, agiu rápido. No mesmo dia do acidente, contatou seu igual do Alianza e ofereceu o empréstimo de alguns de seus jogadores. Assim, o goleiro José Letelier, o defensor Parco Quiroz, o meia Francisco Huerta e o atacante René Pinto seguiram para lima.

“Havia muita dor, muito pesar. Era preciso lidar com os corpos dos companheiros. A cada cinco ou dez dias, iam aparecendo restos, roupas ou relógios dos passageiros do Fokker”, recordou Huerta à reportagem do The Clinic.

Mais que um gesto histórico de solidariedade


O gesto do Colo-Colo, por si só, já seria digno de nota. Mas há ainda uma outra questão de contexto a ser mensurada. 

Peru e Chile alimentam uma rivalidade poderosa desde o século XIX. Juntos da Bolívia, protagonizaram a Guerra do Pacífico, provocada pela exploração do salitre no Deserto do Atacama. O conflito superou os quatro anos e registrou mais de 30 mil mortes. A consequência fundamental foi a anexação de parte do território boliviano pelo Chile, nomeadamente da província de Antofagasta, deixando aquele país sem acesso marítimo.

Originalmente, o conflito se restringia a Bolívia e Chile, no entanto, uma aliança assinada em 1973 levou o Peru a ter de assumir parte na contenda. “A derrota provocou a mutilação e a sangria do Peru. A economia nacional perdeu seus dois principais recursos, paralisaram-se as forças produtivas, caiu a moeda, fechou-se o crédito exterior”, indicou Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina. As marcas deixadas por esse tipo de acontecimento não se apagam rapidamente, o que aumenta a nobreza da atitude do Colo-Colo.

Esportivamente falando, o ato também foi valioso. Embora o Alianza Lima tenha perdido o título nacional, terminou em uma honrosa segunda colocação.

Amizade eterna


Muro Colo-Colo Alianza Lima
Foto: Andina / Arte: O Futebólogo
Reportagem da Gazeta Esportiva, reproduzida pela ESPN em 2016, deu voz ao coordenador geral do Alianza Lima, Alex Berrocal, que reiterou o impacto do Colo-Colo naquele momento.

"O Colo-Colo foi importantíssimo. Embora tenhamos recebido muito apoio após o acidente, as pessoas estavam um pouco reticentes. Quando o Colo-Colo agiu, e sem pedir nada em troca, ofereceu um exemplo de fraternidade, companheirismo e irmandade. Eles deram o empurrão que precisávamos para poder montar um time até o fim do campeonato e seguir adiante".

A amizade ali estabelecida foi conservada com o correr dos anos. Em 14 de fevereiro de 2018, o Colo-Colo recebeu o Alianza Lima para um amistoso. Na oportunidade, pouco mais de 30 anos após o sinistro acidente aéreo, os peruanos aproveitaram a ocasião para agradecer seus parceiros chilenos. O ato reiterou uma ligação que se fortaleceu com o passar dos anos. A amizade se estendeu, inclusive, para as torcidas organizadas das equipes.

Como dito inicialmente, as marcas que um acidente aéreo deixa não se apagam. No entanto, têm o condão de possibilitar atos de solidariedade únicos. No caso de Alianza Lima e Colo-Colo, o gesto em questão superou uma rivalidade antiga e ainda viva, construindo pontes que só se fortaleceram com o passar do tempo.

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