Capitão sem faixa: os anos de Sami Hyypia na defesa do Liverpool

“Eu não tinha qualquer expectativa ou objetivos quando cheguei, só pensava em trabalhar duro e ver o que aconteceria”. Com essas palavras, o finlandês Sami Hyypia confirmou ao Guardian o que era a realidade daquele fim de maio de 1999. Naquele momento, o obscuro zagueiro do Willem II, um grandalhão de 1,93m e 25 anos, abandonava o anonimato. Para o bem ou para o mal, não mais passaria despercebido. Contratado pelo Liverpool, ganhava uma chance de ouro, apesar das desconfianças.

Legend Sami Hyypia Liverpool
Foto: Liverpool Echo/Arte: O Futebólogo

A confiança de quem importa


Depois de passar, com relativo destaque, pelas equipes de base da França, o treinador Gérard Houllier era o responsável técnico pelo Liverpool desde 1998. O gaulês vivia a oportunidade de superar o fantasma do fracasso que foi não conseguir levar seu país à Copa do Mundo de 1994, mesmo com uma geração que continha craques da estirpe de Éric Cantona, Jean-Pierre Papin e David Ginola. Foi ele quem deu o sinal verde para a chegada do beque finlandês, que custou £2,6 milhões.

Aquela contratação tinha várias nuances que a tornavam singular e suspeita. Diante da falta de confiança que os beques de então inspiravam, a direção do Liverpool estava aceitando todo tipo de indicação. Assim, um câmera que trabalhava em Anfield, ciente da necessidade do time, sugeriu ao vice-presidente de então, Peter Robinson, a contratação daquele ilustre desconhecido. A ideia colocou a comissão de Houllier para trabalhar e observar o finlandês, que, por fim, foi considerado apto à missão. 


Inicialmente, foi preciso superar as críticas. Na janela de transferências daquele verão europeu, os Reds foram às compras com vontade. Foram seis contratações. O alemão Dietmar Hamann foi o principal negócio, enquanto aquele finlandês acabou sendo a contratação mais discutível e mais barata. Logo na estreia do Liverpool na Premier League 1999-00, o Independent não perdoou a vitória marginal ante o Sheffield Wednesday, 2 a 1:

“Ele [Houllier] deveria ter sido melhor aconselhado a ir atrás de mais qualidade do que quantidade e a comprar mais perto de seu novo lar, porque seus melhores jogadores foram todos ingleses”.

Aquela partida também representou a estreia de Hyypia. Contando com a confiança de Houllier desde o princípio de seu estágio em Melwood, o zagueiro atuou ao lado de Jamie Carragher, compondo uma dupla que acabaria ganhando as páginas dos livros de História. Mas, antes, outra parceria importante, com Stéphane Henchoz.

Entendimento telepático


As dúvidas a respeito de Hyypia começaram a se dissipar muito rapidamente. O beque foi titular do Liverpool em absolutamente todos os jogos de sua primeira Premier League. Em apenas uma ocasião não completou os 90 minutos. Com Carragher atuando majoritariamente pela lateral direita, Sami contou com a parceria do suíço Stéphane Henchoz no miolo da zaga. 

Charity Shield Sami Hyypia
Foto: Liverpool Echo/Arte: O Futebólogo
Com os dois em grande nível, como se atuassem juntos há anos, os Reds não chegaram a conseguir disputar o título nacional, mas alcançaram um feito notável. Quarto lugar à parte, o time obteve a melhor defesa da competição, concedendo apenas 30 tentos nas 38 rodadas disputadas. Mais tarde, o entrosamento da dupla chegou a ser ressaltado pelo próprio finlandês em entrevista ao Sky Sports:

“Devo admitir: me sinto mais confortável a respeito do meu papel quando Stéphane está junto a mim. Quando ele está fora, é necessária uma comunicação maior com quem estiver ao meu lado, para garantir que tudo aconteça suavemente. Com Stéphane, não preciso dizer uma palavra para garantir o funcionamento. E nem ele precisa. De fato, nós sequer precisamos pensar sobre isso. É automático que nós saibamos exata e instintivamente onde o outro estará e quem fará o quê”.

Os beques atuaram juntos por cinco temporadas e meia. Ambos formavam parte da espinha dorsal do time de Houllier, que permaneceu em Anfield Road até o fim da campanha de 2003-04. Apesar disso, neste último ano a parceria foi sendo encerrada. Engana-se quem pensa que a forma dos zagueiros caiu. O problema foi a constância das lesões que se abateram sobre o suíço — sua aposentadoria precoce, aos 33 anos, devendo-se em grande medida a essa questão.

No fim da passagem de Henchoz, uma outra situação importante se desenhou na carreira de Hyypia. Com a chegada do lateral irlandês Steve Finnan, Carragher ganhou influência no coração da defesa, renovando o setor e garantindo ao beque finlandês outra grande parceria.

A braçadeira pode ficar em outro braço


Mesmo se a titularidade absoluta de Hyypia desde o princípio de sua passagem por Merseyside não fosse suficiente para dar a dimensão de sua representatividade no Liverpool, ainda haveria outros argumentos significativos nesse sentido. Na temporada 2001-02, conforme o capitão Jamie Redknapp perdia espaço, também vítima de muitos problemas físicos, a braçadeira de capitão foi sendo entregue ao finlandês. Ele acabaria assumindo-a, em definitivo, na campanha seguinte.

Liverpool FA Cup Hyypia
Foto: Liverpool Echo/Arte: O Futebólogo
No entanto, o estágio de Sami Hyypia como capitão do Liverpool durou muito pouco. Logo na temporada 2003-04, ela lhe foi tomada e entregue a um certo Steven Gerrard, cada vez mais maduro. Sem crise. Como um verdadeiro líder, o finlandês acatou a decisão de Houllier e tal assunto nunca assumiu proporções indevidas

“Decidi dar a braçadeira de capitão para Steven Gerrard. Stevie liderará o time nesta noite e no futuro. Pensei dura e longamente sobre isso. A decisão não deve ser vista como algo contra Sami [Hyypia]. Ele tem sido um bom capitão para nós, levantou seis troféus [...] Obviamente, falei com Sami e a resposta dele foi de típica classe. Ele respeitou a decisão. Não houve amargura ou ressentimento e sei que Sami reconhece que essa decisão foi tomada pelo time. Tenho três líderes em Stevie, Sami e Michael Owen, que são inspirações, cada um à sua maneira”, disse Houllier ao Sky Sports.

Hyypia voltaria a capitanear o Liverpool em várias situações pontuais e acabaria se tornando o terceiro na hierarquia liverpuldiana, atrás de Gerrard e Carragher.

Hyypia Liverpool 1999 2009
Arte: O Futebólogo

Ele ganhou quase tudo


Com a braçadeira, Hyypia viveu momentos de glória. Em 2001, levantou a famosa taça da FA Cup, contra o Arsenal. No mesmo ano — em que o Liverpool fez um treble —, também ergueu o troféu da Copa da Uefa, após o triunfo famoso ante o Alavés (um 5 a 4 histórico, decidido no minuto 117). Naquela temporada, só deixou de elevar a Copa da Liga, tendo visto Robbie Fowler o fazer. No entanto, duas temporadas mais tarde, ele teria a oportunidade de alçar mais essa taça. 

Com ou sem a tarja exibida em seu braço, Hyypia passaria imune às transformações efetivadas por Rafa Benítez, quando o treinador espanhol sucedeu Houllier. Sua condição de titular permaneceu intocada, garantindo ao zagueiro papel fundamental também no triunfo mais importante daquela década para o Liverpool.

Hyypia Goal Liverpool
Foto: Liverpool Echo/Arte: O Futebólogo
Em 2004-05, Sami jogou cada minuto da campanha dos Reds no título da Liga dos Campeões. Em quatro dos 13 jogos, voltou a ser o capitão. Além disso, sua presença foi também crucial nas quartas de finais, quando marcou um dos gols da difícil vitória contra a Juventus, 2 a 1. Depois de participar de um dos momentos mais incríveis da história do futebol, a remontada contra o Milan, na decisão europeia, o famigerado “Milagre de Istambul”, ele ainda venceu uma Supercopa da Uefa (2005) e outra FA Cup (2005-06). 

Lesões, ao final


A trajetória de Hyypia na cidade de Liverpool durou 10 temporadas. Em momento algum houve concorrente que ameaçasse sua titularidade. Nem mesmo as chegadas de Martin Skrtel e Daniel Agger colocaram em xeque a presença do finlandês. Seu obstáculo acabou sendo sua própria condição física. Com tempo de jogo limitado em seu último ano, apenas 19 partidas disputadas, mas ainda considerando ter alguns anos para um último desafio, Hyypia se despediu do Liverpool ao final da temporada 2008-09.

“Entendo as razões por trás da decisão de Sami [Hyypia], porque ele conseguiu um contrato de dois anos, então boa sorte para ele. Porém, por razões egoísticas, eu gostaria que ele ficasse mais um ano aqui, porque ele um jogador fantástico e é bom tê-lo por perto. Ele tem estado aqui durante todo o meu tempo no time principal e tem sido uma grande influência e um empregado magnífico — uma lenda [...] Eu tomei a capitania dele em 2003 e houve alguma controvérsia na época, mas não para Sami, que me apoiou incrivelmente desde o início”, disse Gerrard às vésperas da despedida do finlandês.


Em 24 de maio de 2009, na última rodada da Premier League, Sami deixou o banco de reservas. Ele substituiu Gerrard que, com reverência, pessoalmente colocou a faixa de capitão no braço do colega. O zagueiro teve seis minutos de jogo para se despedir. Ao final da partida, vieram as homenagens e as lágrimas — o reconhecimento a um jogador que chegou como ilustre desconhecido e foi embora com diversos títulos, 464 partidas disputadas e 35 gols anotados.

“Eu estava tentando manter Sami [Hyypia] no banco até o último minuto, mas não consegui porque os torcedores estavam me cobrando. Tendo trabalhado com Sami por cinco anos, sei que ele é um profissional fantástico. Espero que ele faça o mesmo na Alemanha e depois volte para nós”, disse Benítez após o jogo.

Hyypia ainda atuou por dois anos no Bayer Leverkusen, antes de abandonar a carreira e se tornar treinador. No futebol de seleções, ele se despediu também com a honra de ser o segundo jogador que mais vezes representou a Finlândia (atrás apenas de Jari Litmanen) e tendo sido eleito 10 vezes o melhor finlandês do ano. Afinal, o incógnito atleta do Willem II tornou-se conhecido, passando à eternidade pela seriedade de alguém que liderou sem precisar de holofotes.

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