Quando um combinado rosarino bateu a Argentina e criou um mito

Figuras lendárias são parte intrínseca da história do futebol. Não há discussão. Nesse sentido, poucos países conceberam tantos nomes com tamanha expressão quanto a Argentina. Se for para ficar nos mais evidentes, sempre se pode falar em Alfredo Di Stéfano, Diego Maradona ou Lionel Messi. Mas este rol comporta muitos outros expoentes. O que dizer, por exemplo, de René Houseman, Ricardo Bochini ou de José Sanfilippo? E de Tomás, El Trinche, Carlovich, o homem que conduziu um esquadrão rosarino ao triunfo ante a Albiceleste?

Tomás Carlovich
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


A essência do futebol de bairro


Em 2018, Tomás Felipe Carlovich, ou simplesmente Trinche, completou 70 anos. Ou 72, já que existem registros conflitantes a respeito de seu nascimento. Passaram-se aproximadamente 30 desde as últimas vezes em que pisou em gramados de futebol profissional. Porém, engana-se aquele que imagina as relvas de La Bombonera, do Monumental de Núñez ou do estádio Mario Alberto Kempes como palcos de suas façanhas. Foram canchas mais modestas as que registraram seus dotes.

Aquele descendente de croatas nasceu em Rosário e foi lá que, junto de seus irmãos, começou sua saga como jogador de futebol. Embora o pai não tenha sido picado pela mosquinha do futebol, os filhos não passaram imunes aos encantos das quatro linhas. E, desse modo, projetou-se a imagem de um jogador que, segundo quem viu, seria uma mistura de Fernando Redondo e Juan Román Riquelme, como assinalou seu biógrafo, o jornalista Alejandro Caravario.

A questão é que muito pouca gente pode trazer à tona as memórias daquele tempo que durou entre os anos 1960 e 80. Nos jornais, são igualmente escassos os registros daquele homem que atuou apenas cinco vezes em partidas da primeira divisão argentina — umas pelo Rosário Central, clube em que foi lançado, outras pelo Colón, de Santa Fé.

Trinche Carlovich Colón
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
A elegância de seus movimentos faria contraste com a simplicidade do homem que não gostava de treinar e nem de viajar. Não por capricho ou preguiça, já que não abandonava o futebol de bairro. 

A capacidade para controlar o tempo e a velocidade da bola com a perna esquerda, a zurda, seria sua grande arma. Já sua marca registrada responderia por doble caño. Algo tão singelo e complexo quanto um drible duplo por debaixo das pernas de seus pobres marcadores. Já a personalidade seria a de um tipo reservado, mas não apático.

Quem pôde mesmo desfrutar do futebol do Trinche foram os torcedores do Central de Córdoba, clube pelo qual passou quatro vezes, e do Independiente Rivadavia. E, em que pese certo anonimato em relação ao grande público, não há dúvidas a respeito do seu estatuto como expoente do futebol argentino. Rápida pesquisa confirma essa realidade, mediante as vozes de gente como César Menotti, Maradona, Jorge Valdano, José Pekerman ou Jorge Sampaoli. 

“Sua lenda é um lugar comum em Rosário. Ele é o símbolo de um futebol romântico que praticamente não existe”, falou outrora Valdano.

O amistoso que eternizou sua história


Famoso ex-jogador do Racing Club de Avellaneda, Vladislao Cap havia sido contratado como o treinador da seleção argentina às vésperas do Mundial — sendo auxiliado por José Varacka e Víctor Rodriguez. Há quem diga que não fazia ideia do que estava se passando. Assim, decidiu fazer uma pequena série de amistosos antes da viagem à Alemanha. 

O ano é 1974 e um Trinche já conhecido em Rosário, por seus feitos nas canchas de bairro e com a camisa do Central, recebe um chamado inesperado. Em 17 de abril, uma pré-seleção de jogadores argentinos viaja a Rosário para enfrentar um combinado de jogadores locais. 

Fica determinado que os treinadores de Newell’s Old Boys e Rosário Central, Juan Carlos Montes e Carlos Timoteo Griguol, respectivamente, convocarão um time para o selecionado nacional enfrentar. Assim, é formado um grupo de jogadores dos maiores rivais rosarianos, com um acréscimo especial: Carlovich.

Com aquela entidade mitológica em meio a outros 10 nomes altamente competitivos — dentre os quais se destaca a figura de Mario Kempes — o orgulho nacional é colocado em causa. O placar final registra 3 a 1 para os donos da casa, mas o que se conta é que a Argentina não viu a cor da bola. Sobretudo enquanto o Trinche, que ofertou uma assistência, esteve em campo.

Argentina Rosario 1974
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
E o mito tem ainda um capítulo a mais, embora exista quem o negue: Cap teria pedido expressamente para os comandantes adversários substituírem o tal camisa 5 que tanto trabalho dava a seus homens (gente como Alberto Tarantini, Houseman e Daniel Bertoni). O pedido tinha justificativa, já que os argentinos vinham em forte baixa, reconhecidos pela violência de algumas de suas equipes recentes e pela ausência no Mundial de 1970.

Naquele dia, venceu o estilo rosarino, uma espécie de contraposição urgente ao futebol que vinha reinando no país. Via-se, ali, a retomada do lado estético do futebol argentino, contra o cinismo de clubes como o extremamente vencedor Estudiantes de La Plata de Osvaldo Zubeldía, na transição dos anos 1960 para os 70. 

Foram aproximadamente 30 mil os presentes no Coloso del Parque, cancha do Newell’s Old Boys que atualmente responde por estádio Marcelo Bielsa; 30 mil pares de olhos a registrar a magnificência do tal Carlovich — em especial os momentos em que aplicou o doble caño sobre Francisco Pancho Sá e o da já citada assistência.

Não há imagens televisivas deste dia. Fotos são escassas. Por sua vez, memórias são fartas e legitimam o mito. Tomás Felipe Carlovich foi estrela do futebol argentino. Porém, um astro de cintilar muito próprio, peculiar. Restrito a alguns poucos. E, ainda assim, eternizado por conta dos feitos de um dia em que esteve no foco do futebol argentino. Atuando contra sua nação, mas defendendo seu universo particular: Rosário, o lugar de que saiu poucas vezes e para onde sempre retornou.

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