Como uma passagem pelo Rangers ajudou a moldar o futebol de Gennaro Gattuso

Perseguindo os adversários de perto, mordendo tornozelos — às vezes exagerando —, transpirando dedicação e deixando a alma em campo. Foi assim que Gennaro Gattuso alcançou notoriedade e se transformou em um dos grandes volantes de seu tempo. É claro: não era inepto com a bola nos pés, mas passava longe de ter as qualidades de alguns de seus contemporâneos. E, ainda assim, fez-se um gigante. A camisa do Milan é a que mais vestiu, mas não se sabe o que poderia ter acontecido sem um breve estágio pela Escócia.

Gattuso Rangers
Foto: News Group Newspapers Ltda/Arte: O Futebólogo

Um italiano perdido em Glasgow


Quantos jogadores italianos de alto nível atuaram no futebol escocês? Poucos. Apesar disso, trocar um clube modesto como o Perugia por uma potência escocesa do porte do Rangers não soa como uma insanidade absoluta. Especialmente, se o jogador em questão mostrar preparo para a disputa de um jogo forte e pesado. 

Que cenário poderia ser melhor para alguém como o sedento Gennaro, aos 19 anos? 

No entanto, era necessário descobrir aquele jogador que sequer tinha feito 15 partidas como profissional. Essa missão foi abraçada com louvor pelo treinador Walter Smith. O escocês descobriu as qualidades de Gattuso assistindo ao volante representar a Itália, no escalão sub-18. O curioso é que, conquanto não sejam muitos os atletas do Bel Paese a atuar na Escócia, em sua chegada, Gattuso se encontrou com o ex-juventino Sergio Porrini, além de um ex-companheiro de Perugia, Marco Negri.

O italiano não custou nada aos cofres dos Gers e logo ganhou a titularidade. Na liga escocesa, estreou já na primeira rodada da temporada 1997-98. Na ocasião, substituiu o zagueiro australiano Craig Moore. 

No quinto confronto, ante o Aberdeen, fez sua estreia como titular, ladeado por outros jogadores famosos no cenário internacional, casos de Brian Laudrup, Jonas Thern e Ally McCoist. E foi uma dessas personalidades que ofereceu o primeiro desafio àquele jovem inexperiente e ávido.

Rangers Rino Gattuso
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo


O estranho carinho de Gazza


Em 1997, Paul Gascoigne já era mundialmente conhecido por seu gênio com a bola nos pés e a falta de alguns parafusos na cabeça. Ainda assim, não era esperado o que acabou acontecendo. De volta aos vestiários depois de seu primeiro treino, Gattuso encontrou sua mochila fedendo, após tomar banho. Logo, descobriu que Gazza havia defecado em suas meias. Porém, o que poderia ser um contratempo terrível para um novato acabou sendo a porta de entrada para uma amizade.

Anos mais tarde, o italiano relataria anos que Gascoigne teria lhe dado uma coleção novinha de ternos, quando precisou, para manter uma tradição de longa data do Rangers. Curiosamente, em outra pegadinha do inglês. Gazza levou Gennaro a um famoso alfaiate de Glasgow e lhe disse para escolher sete ou oito ternos. Também deu garantias de que existia um acordo entre o estabelecimento e o clube, e que os pagamentos seriam descontados de seus vencimentos, em parcelas módicas.

Nada disso era verdade. Mas, engana-se quem pensa que se tratou de uma brincadeira de mau gosto. O meia britânico queria ajudar Gattuso e sabia que seria difícil convencê-lo a permitir. Quando o volante descobriu que teria que desembolsar mais de £10 mil, tudo já havia sido pago por Gascoigne. A amizade perduraria e renderia mais histórias curiosas. 

Paul Gascoigne Gazza Gennaro Gattuso Rino Rangers
Foto: Daily Record/Arte: O Futebólogo

Em 2018, McCoist, a real vítima da vez, revelou um outro acontecimento. Vivia-se a semana do Old Firm dérbi, contra o Celtic. E Gattuso, como habitual, treinava com máxima intensidade, apesar das sinalizações do treinador Smith para que abrandasse e se guardasse (e aos colegas) para o clássico. Sem entender quase nada de inglês, Gennaro pediu ajuda a Gazza, que falava um pouco de italiano, depois de jogar na Lazio.

Em algum momento, McCoist viu as travas de Gattuso sendo fincadas em seu peito e quase o tirando do dérbi. Farto daquilo, Smith interviu. Apenas para descobrir que Gascoigne tinha dito o contrário do desejado ao italiano, sugerindo que ele deveria treinar ainda mais forte.

“Isto aconteceu em uma terça ou quarta-feira, e estávamos a nos aproximar do dérbi de Old Firm, que ia ser no fim de semana. O Gattuso estava correndo, entrando com tudo. Um verdadeiro terrier. O Walter avisou: ‘Temos um jogo importante no fim de semana, jogamos com o Celtic. Temos de ter cuidado com essas entradas'. Então, o Gascoigne chega ao Gattuso e lhe diz que o treinador quer mais dele [...] Dois minutos depois, eu estava no meio do chão com seis travas espetadas no peito”, revelou McCoist, aos risos, ao TalkSport.

Valeu a experiência


Seja como for, na Escócia, Gattuso viveu sua primeira experiência fora da Itália e longe da família. Enfrentou um vestiário cheio de personalidades fortes e experientes e se sobressaiu. Sua cabeça sempre esteve determinada a fazer aquilo dar certo. 

“Não venho de uma família com boas condições. Meu pai é carpinteiro. Então, estou trabalhando para eles também. O Perugia agiu mal, nunca conversaram comigo, apesar dos meus pedidos. Jovens são explorados no Perugia [...]”, disse ao Corriere della Sera, à época.

Rino Gattuso Rangers Celtic
Foto: Stu Forster/Getty Images/Arte: O Futebólogo

O volante permaneceu na Escócia apenas até o início da temporada 1998-99. Smith havia se mudado para o Everton e seu substituto, o holandês Dick Advocaat, vinha o utilizando como lateral direito, para seu desagrado. Então, recebeu uma proposta da modesta Salernitana, que contava com figuras como a de Marco Di Vaio e havia conquistado um raro acesso à elite italiana. 

Foram pagas nove bilhões de liras e Gattuso voltou ao seu país, vestindo a camisa dos Granata por apenas uma temporada, antes de se transferir ao Milan.

Na Grã-Bretanha, Gattuso fez 51 jogos pelos Gers, marcou cinco gols e não conquistou títulos. Entretanto, ficou marcado por aquela experiência. Casado com uma escocesa de origens italianas, já falou várias vezes sobre sua passagem pela Escócia. Como em certa oportunidade, aos ingleses da revista FourFourTwo:

“Amei meu tempo no Rangers. Glasgow foi o lugar em que, pela primeira vez, comecei a pensar como um jogador profissional. Quando joguei no Perugia, no fundo, eu pensava que me faltava força mental para ir ao campo e jogar sem medo de errar. Mas quando cheguei na Escócia, foi tudo diferente. Entendi que podia fazer esse trabalho em um nível muito alto e tive sorte de jogar com alguns grandes jogadores como Brian Laudrup, Jonas Thern e Paul Gascoigne”.

O casamento entre Gattuso e Rangers foi curto, não representou um movimento comum, mas provocou marcas profundas no italiano. Em Glasgow, aprendeu a lidar com situações e pessoas diferentes. Testou-se. Entendeu que sua imensa dedicação poderia ser recompensada. Ao final de seu tempo nos gramados, acumulados os títulos por Milan e pela seleção italiana, só se pode concluir que, de um jeito não usual, Gennaro foi um sucesso. Sim, ele foi. E o Rangers tem parte nisso.

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