Quando o narcotráfico colombiano entrou no caminho do Vasco em 1990

Aquela era a quarta vez que o Vasco da Gama disputava a Copa Libertadores da América. Até então, jamais havia conseguido ir tão longe. A chegada às quartas de finais e o sonho de conquistar a América foram vividos com intensidade. O curioso é que, insolitamente, o Cruzmaltino recebeu uma segunda chance, mas não a aproveitou. Era o ano de 1990, e o Gigante da Colina vinha de uma temporada de título nacional.

Vasco da Gama 1990
Foto: Placar/Arte: O Futebólogo

Bebeto era a grande referência de um time que buscava o mundo


O Vasco campeão do Brasileirão de 1989 era um time recheado de jogadores com passagens pela Seleção Brasileira. Não por acaso, ficaria lembrado como SeleVasco. O onze da decisão nacional tinha Acácio; Luís Carlos Winck, Quiñonez, Marco Aurélio e Mazinho; Zé do Carmo, Boiadeiro, Bismarck; Bebeto, Sorato e William. E o clube ainda tinha a experiência de Roberto Dinamite, Andrade e Tita em seus quadros.

Esse esquadrão era comandado por Nelsinho Rosa, que tinha em Alcir Portella, seu auxiliar, um profissional que conhecia o clube como poucos, sendo o terceiro homem que mais vezes vestiu a camisa do Cruzmaltino, nos tempos de atleta. Dentro das quatro linhas, trazido do rival Flamengo em uma transferência polêmica, Bebeto era o grande astro daquele time. Era o substituto de Romário, vendido ao PSV Eindhoven um ano antes.

Depois da glória nacional, parecia que o céu era o limite para os vascaínos, no início de 1990. Campeão invicto da Taça Guanabara, o time sonhava alto, como estampou a revista Placar, de 16 de março daquele ano: “De olho em Tóquio”. 

Naquela altura, Alcir já comandava sozinho a nau de São Januário. Mas, como o time estava “de olho em Tóquio” somente por ter vencido a primeira parte do Campeonato Carioca? Simples, explicou a publicação: “Só assim o treinador [...] poderia poupar alguns titulares para a segunda fase do plano: vencer a Copa Libertadores”.


A competição continental estava por começar e o Vasco dividiria grupo com Grêmio, Olimpia e Cerro Porteño. Era um grupo pesado. Mas o time carioca tinha motivos para acreditar no título. 

“A Libertadores já não me assusta”, garantiu Tita, campeão pelo Flamengo e o Tricolor Gaúcho, em 1981 e 83, respectivamente. A ideia era poupar jogadores na Taça Rio, já que um lugar na decisão do Carioca já estava assegurado, e ir com força máxima atrás da glória continental.

Uma primeira fase tão parelha quanto possível


As expectativas de dificuldades na fase de grupos da Libertadores se confirmaram. Os quatro integrantes do Grupo 5 perderam dois jogos. Mas só um ganhou três vezes, o Olimpia, líder. Cerro e Vasco saíram vencedores duas vezes, com os paraguaios se superiorizando nos critérios de desempate e ficando com o segundo posto. Porém, avançavam três equipes por grupo, uma fórmula estranha, em um torneio igualmente esquisito.

O árbitro colombiano Álvaro Ortega havia sido assassinado em 1989, por integrantes do Cartel de Medellín com atuação no ramo de apostas. Esse evento macabro teve como consequência a suspensão do Campeonato Colombiano daquele ano. 

Assim, o país não enviou representante para a disputa continental do ano seguinte. Exceto pelo Atlético Nacional, que ingressou na condição de campeão vigente, já nas oitavas de finais. Além disso, o Olímpia, sorteado para enfrentar o time que teria ficado em terceiro lugar no Grupo 2 (que conteria os times colombianos), garantiu passagem direta às quartas de finais.

VASCO DA GAMA COLO COLO 1990
Foto: Lance/Arte: O Futebólogo

Coube ao Vasco enfrentar o Colo-Colo, nas oitavas de finais. O time brasileiro só avançou nos pênaltis, depois de dois empates, 0 a 0 no Rio de Janeiro, e 3 a 3 em Santiago. Na altura, algumas coisas já haviam mudado em São Januário.

A primeira de duas batalhas de bastidores


O projetado título estadual não veio. Apesar de ter conquistado a Taça Guanabara, o Gigante da Colina fez uma campanha muito aquém de seu potencial na Taça Rio. Terminou em sétimo lugar, enquanto o Fluminense se sagrou campeão. O curioso é que coube ao Botafogo, vice nos dois turnos, um lugar direto na decisão, uma vez que, na soma das pontuações, era quem tinha a melhor campanha. Vasco e Flu fizeram uma semifinal e o Cruzmaltino chegou à final.

Na hora H, o Maracanã foi palco de mais um título do Botafogo, que, com gol de Carlos Alberto Dias, venceu pela margem mínima, 1 a 0. Na primeira de duas batalhas de bastidores, o então vice-presidente do departamento de futebol do clube de São Januário, Eurico Miranda, tentou impugnar o título do Fogão. A questão debatida foi uma alteração no regulamento que havia sido votada no curso da competição, durante a parada para a Copa do Mundo de 1990.


Em uma votação que necessitava de unanimidade não-alcançada, ficou determinado que a semifinal contaria pontos para o vencedor. Desse modo, o time que ganhasse entraria com a vantagem de jogar a decisão por um empate. Antes da finalíssima, o Botafogo foi recorrendo a todas as instâncias da Justiça Desportiva, até garantir um mandado de garantia, assegurando que, independentemente do que acontecesse na final, a Federação do Rio de Janeiro (Ferj) não proclamaria um campeão imediatamente.

VASCO BOTAFOGO 1990 O GLOBO

O Botafogo venceu no campo e deixou o gramado após o apito final. O Vasco esperava uma prorrogação e, com o abandono da Estrela Solitária — que entendia que o acréscimo de 30 minutos só seria devido em havendo empate no marcador —, considerou-se campeão. No fim, o título foi garantido ao time de General Severiano, tendo sido admitida a tese de que a mudança de regulamento só poderia acontecer por decisão unânime. 

Dessa vez, Eurico perdeu.

Outra vez nos tribunais, agora os sul-americanos


De volta à Libertadores, depois de superar os chilenos do Colo-Colo, o Vasco teve de enfrentar o Atlético Nacional, em um desafio de enormes proporções. A partida de ida, no Maracanã, terminou em 0 a 0. “Vasco pára nos pés de Higuita”, noticiou o Globo no dia seguinte. 

Das arquibancadas, Alcir ouviu gritos de burro. “No Chile, me chamaram de gênio quando mudei o time. Agora acham que eu sou burro. Tenho certeza de que se vencermos o Nacional vão me aplaudir de novo”, disse. O jornal não poupou críticas à performance do Cruzmaltino:

“O Vasco, pelo que exibiu ontem, deixa a dúvida no ar: será que é uma equipe preparada para, pelo menos, sonhar ser campeã do mundo? Tem jogadores habilidosos, técnicos, mas está muito longe de ser uma equipe de futebol. Falta harmonia, falta conjunto, falta tática e falta, sobretudo, a vontade, a determinação para superar essas deficiências”. 

Outro que soltou o verbo foi Roberto Dinamite, insatisfeito por ter sido substituído por Tato.

VASCO DA GAMA ATLÉTICO NACIONAL 1990
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Na partida de volta, uma semana mais tarde, já era ninguém menos que Mário Jorge Lobo Zagallo, substituto de Alcir, quem dava as ordens em São Januário. As expectativas eram enormes, tanto que o Globo colocou o novo comandante como a grande esperança do Vasco: “Torcida espera com euforia duelo entre Zagallo e Higuita”. 

Apesar disso, depois de uma viagem desgastante à Colômbia, que durou mais de 12 horas e foi marcada por seis revistas individuais da Polícia Federal colombiana, o Vasco, que segurou o 0 a 0 até os 40 do segundo tempo, sofreu dois gols em quatro minutos, voltando derrotado e desclassificado ao Brasil. “Havia uma escolta muito grande, e os soldados ficavam no vestiário. Não adiantava pedir para saírem”, disse Sorato anos mais tarde ao Extra.

Mas a eliminação não durou muito tempo.

VASCO ATLÉTICO NACIONAL  1990
Foto: Globo/Arte: O Futebólogo

Eurico Miranda mal havia retornado ao Brasil quando fretou um jatinho para Assunção, ladeado por um representante da CBF. O objetivo? A anulação da partida de eliminação. A alegação? De que o árbitro uruguaio Juan Daniel Cardelino havia sido ameaçado por pistoleiros ligados ao cartel local, antes da partida. E, dessa vez, o apelo do dirigente vascaíno foi acatado. Considerou-se haver provas suficientes da coação sofrida pelo árbitro charrua

No dia 06 de setembro, foi anunciado que o jogo entre Vasco e Atlético Nacional seria repetido. Dessa vez em Santiago.

O jogo, marcado para o dia 13 de setembro, levantou a mística do treinador Zagallo com o número, como fez notar o enviado especial Marcos Penido, d’O Globo. Outra vez, a viagem foi tumultuada, em um vôo marcado por muita turbulência, depois de um atraso de mais de duas horas. Apesar de toda a mobilização pelo novo jogo, o Vasco voltou a ser batido, dessa vez por 1 a 0, gol de Níver Arboleda. Como habitual, o periódico supracitado foi cáustico ao dizer que “os dirigentes do Vasco poderiam ter poupado seus torcedores de mais um vexame”.

O sonho de um fim de ano em Tóquio morreu em Santiago, em um jogo contra os colombianos do Atlético Nacional. 1990 terminou modorrento para o Cruzmaltino, com o time terminando o Brasileirão em 12º lugar na classificação geral. Passariam-se mais oito anos até que o Gigante da Colina, enfim, tomasse para si o continente.

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