Michel Platini e os anos de ouro do Nancy

Quando se pensa na figura do jogador Michel Platini, as imagens que logo vêm à mente o apresentam trajando duas camisas: a da Juventus e, naturalmente, a da seleção da França. Indo um pouco além, pode ser que alguém reclame uma lembrança dele defendendo o famoso verde do Saint-Étienne, com o qual foi campeão francês, em 1980-81. No entanto, serão poucos a vislumbrar sua figura com a camisa branca, marcada por detalhes em vermelho, do Nancy. Embora seja difícil afastar essa realidade, não se pode subestimar a grandiosidade dos feitos do jovem Platini no Stade Marcel Picot.

Platini Nancy
Foto: Quelle/Arte: O Futebólogo


Meio-campista franzino e artilheiro


Tudo poderia ter sido diferente. Em 1971, o filho mais famoso da pequenina Jœuf recebeu um auspicioso convite, e foi atrás de sua sorte. Uma breve viagem, de aproximadamente 30 km, levou o garoto de 16 anos aos portões de seu sonho. Na infância, o descendente de italianos adquirira apreço pelos grenás do Metz, justamente a agremiação que lhe oferecia a possibilidade de um futuro dentro das quatro linhas. Representando o clube local, Platini havia se destacado na famosa Coupe Gambardella, competição de base, justamente contra os Grenats.

Apesar disso, foi o azar quem deu as caras. Na data em que estava marcado seu primeiro teste, Platini se encontrava lesionado. Ainda assim, o Metz seguiu impressionado com o menino, apesar de o corpo franzino sugerir problemas. Foi dada uma segunda chance, só que ela foi ainda pior. Se o jovem mostrou êxito com a bola nos pés, o mesmo não pôde ser dito de seus exames. Um teste com um espirômetro o levou a desmaiar. Assim, considerando que Michel tinha baixa capacidade pulmonar e cardíaca, o Metz desistiu do prodígio.

Platini juntou os cacos e, em 1972, conseguiu a chance que buscava. Agora, o trajeto exigiu alguns quilômetros extras, um total aproximado de 85 km. Ele foi chamado a integrar as categorias de base do Nancy. E seu estatuto de aspirante durou pouco. Não fossem alguns problemas físicos, teria durado ainda menos. Certo é que, no dia 2 de maio de 1973, Platini fardou o traje dos Chardons como titular, fazendo sua estreia. E o debute foi com vitória ante o Nîmes, 2 a 1. 

Platini Nancy
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Até o final da temporada 1972-73, o menino faria mais três jogos. Em um deles, válido pela 36ª rodada, a França teria o primeiro vislumbre do que o futuro viria a revelar. Contra o Lyon, Michel foi o autor de dois tentos, no triunfo por 4 a 1. Entretanto, antes dos louros, houve mais momentos difíceis.

Da segundona ao topo


A primeira temporada completa de Platini no Nancy não foi das mais fáceis. No nível pessoal, o jovem meia perderia muitas rodadas com problemas físicos, destacando-se uma fratura no braço. A grave lesão aconteceu no final do campeonato. Era jogada a 34ª rodada, restando, pois, quatro desafios para o time que lutava contra rebaixamento. Sem seu postulante a craque, os Chardons venceram Lyon e Sedan, perderam para o Rennes e empataram com o Troyes. Um ponto a mais teria salvado o time do descenso.

O ano de muitas lesões e de apenas dois gols seria o pior da carreira de Michel Platini. E as dificuldades individuais e coletivas só serviram para impulsionar seu talento.

Inapelavelmente, o Nancy conseguiu o acesso à Ligue 1 logo na temporada seguinte, 1974-75. Em 32 jogos, o time venceu 17, empatou sete e perdeu oito. O mais assombroso foi o número de gols marcados, 73, de longe a melhor marca do certame. Os que mais chegaram perto dessa marca foram Valenciennes e Rouen, ambos com 59. Platini esteve em seu melhor. Desse total, ele foi responsável direto por 17 tentos — 30 na temporada completa, em 38 jogos. Era hora de voltar ao topo.

Nancy 1978
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A temporada 1975-76 seria a primeira a revelar, a sério, que aquele camisa 10 se tratava de talento de primeira prateleira. No retorno à elite, o Nancy ficou com a sétima colocação, e foi até as semifinais da Copa da França, caindo para o Olympique de Marselha. Mesmo tendo perdido algumas partidas, cumprindo o serviço militar, Platini se fez notar. Com expressivos 22 tentos, foi o quarto maior artilheiro da Ligue 1, acrescentando mais seis bolas nas redes rivais pela copa nacional. 

Essa acabaria sendo a temporada de sua estreia pela seleção francesa. O ano de 1976 ainda ficaria marcado pela disputa dos Jogos Olímpicos de Montreal e, ao final, pelo recebimento do prêmio de jogador francês do ano. Pelo Nancy. Algo que nenhum outro jogador repetiu — apenas o próprio, no ano seguinte.

A corrida pela Taça e a afirmação definitiva do artista


Em 1976-77, o desempenho da dupla Platini-Nancy seria ainda mais expressivo, com o astro (com apenas 21 para 22 anos) se consagrando vice-artilheiro da Ligue 1, somando 25 gols, em 38 rodadas. Isso mesmo, finalmente, o meia conseguiu disputar uma temporada completa. 

Apesar de tudo, até aquela altura, o jovem Nancy, fundado em 1967, não havia conquistado nada relevante, apenas o título da segunda divisão. De que outra forma Michel Platini poderia eternizar sua relação com o clube, assumindo a condição de artista eternamente aclamado, senão com uma taça?


Se a Ligue 1, com suas longas 38 rodadas, parecia um objetivo irrealista para os Chardons, a Copa da França se sugeria um desafio mais palpável. O próprio Nancy já tinha saboreado o gostinho de ser surpresa dois anos antes, quando foi semifinalista. Em 1977-78, a conquista acabaria vindo. Com protagonismo do astro maior. 

Primeiro, ficou pelo caminho o modesto Martigues. Depois, o Valenciennes. Na semifinal, o desafio contra o Sochaux, que eliminara o Marseille, parecia pesado. A derrota na ida, 1 a 0, confirmava isso. Contudo, atuando em casa, o Nancy não deu chances: conseguiu um humilhante 5 a 0. Já a final ante o Nice, no Parc des Princes, em Paris, confirmou o que se sabia: na França, não havia ninguém melhor que Platini. Fazendo o difícil parecer ridiculamente fácil, o astro recebeu bola vinda do flanco esquerdo, girou em cima de seu marcador, e tocou de leve para marcar o solitário, e suficiente, gol do título.


Na sequência da conquista, outra vitória: Platini acabou sendo convocado para a Copa do Mundo de 1978. Apesar disso, a campanha ruim da França renderia vaias a muitos dos chamados, no futuro que se seguiu. E foi em um desses cenários que as coisas começaram a ficar ruins para o craque. 

Em uma partida do início da temporada 1978-79, cobrado pelas arquibancadas francesas, Michel decidiu entregar tudo de si. Deixou o campo com uma lesão no tornozelo, que o afastaria das partidas da má campanha do Nancy na Recopa Europeia. Aliás, o time também terminaria fora do grupo dos dez melhores no Campeonato Francês pela primeira vez desde o acesso — mesmo que Platini tivesse marcado 12 gols em 19 partidas. 

Era a hora de ir embora. Na França, PSG, Marseille e Saint-Étienne o cortejavam. Fora do país, Bayern e Internazionale se somavam aos candidatos locais. No fim, ele acabaria firmando com os Verts, o que ficaria justificado anos mais tarde, em uma fala no pós-jogo de um Juventus, seu time de então, e Brescia: 

“Joguei pelo Nancy porque era o time da minha região e o melhor de Lorena, pelo Saint-Étienne porque era o melhor da França, e pela Juventus porque era o melhor time do mundo”, teria dito

Maradona Pelé Platini 1988
Foto: L'Est Republicain/Arte: O Futebólogo

O certo é que ele nunca rompeu os laços com o time que lhe ofereceu um lugar ao sol. Prova disso aconteceu em 1988, quando decidiu fazer um jogo de despedida do futebol. Platini convocou um selecionado francês a enfrentar um coletivo de craques do mundo. O palco? O lotado Stade Marcel Picot, casa do Nancy.

Em Futebol ao Sol e à Sombra, o uruguaio Eduardo Galeano presenteou o mundo com uma descrição do craque francês: “Platini foi a síntese do melhor do futebol francês: reuniu a pontaria de Just Fontaine [...] e a mobilidade e a astúcia de Raymond Kopa. Platini proporcionava, em cada partida, um recital de gols de ilusionista, desses que não podem ser de verdade, e também ofuscava o público com sua capacidade para organizar o jogo de toda a equipe”. 

O mais provável é que o escritor charrua tivesse absoluta razão. Por onde passou, Platini venceu. Até no modesto Nancy, onde tudo começou.

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