1978: O ano em que o Brasil se rendeu ao Guarani

Eram épocas de vacas magras. Embora o Guarani viesse disputando a primeira divisão brasileira desde 1973, a margem para investimentos era minúscula. Não era possível fazer grandes contratações, nem, tampouco, assegurar os préstimos de um treinador de ponta. Também não se podia negar que o Bugre vinha mal nos confrontos ante a rival Ponte Preta, vice-campeã estadual no ano anterior. Entretanto, em 1978, havia o que explorar nas categorias de base. Com sorte e precisão, as coisas poderiam dar certo. Foi exatamente o que aconteceu.

Guarani 1978
Foto: Guarani/Arte: O Futebólogo


Prazer, meu nome é Carlos Alberto Silva


O murmurinho da imprensa presente no Brinco de Ouro da Princesa não indicava coisa boa. Quem era o jovem desconhecido que o Guarani havia escolhido para liderar o time no curso da temporada de 1978? Aos 38 anos, a única credencial que Carlos Alberto Silva carregava consigo era a graduação em Educação Física, pela UFMG. Uma passagem pela Caldense não agregava muita coisa ao vazio currículo do chefe bugrino, que substituía Milton Buzetto.

“Cheguei aqui, subi, assinei contrato, passei no meio de todo mundo e ninguém me conheceu. Para se salvar, a imprensa mandou [a notícia] para São Paulo que o Guarani tinha contratado um treinador que ninguém conhecia. O Zé Duarte disse: ‘Vocês vão me falar daqui seis meses o que ele é’”, recordou o comandante em entrevista ao portal Terceiro Tempo.

Aos poucos, o comandante foi revelando seu valor. Acima de tudo, demonstrando que era capaz de extrair o melhor do que tinha em suas mãos. A impossibilidade de contratar atletas de impacto, somada à sentida ausência do zagueiro Amaral, negociado com o Corinthians em uma tentativa de aliviar a pressão das apertadas contas do time campineiro, não eram sinais auspiciosos. Essa situação, contudo, motivou o chefe a pinçar garotos das categorias de base.

Carlos Alberto Silva Guarani 1978
Foto: Gazeta Press/Arte: O Futebólogo

De início, foram cinco os escolhidos. Dentre eles, um certo Antônio de Oliveira Filho. Quem? Careca. Aos 17 anos, o centroavante foi promovido aos profissionais do alviverde. Porém, o começo do trabalho foi realmente turbulento. Ao caráter incógnito do novo treinador, somaram-se uma série de resultados complicados no princípio. 

Antes do início do Brasileirão, no final de março, o Bugre fez sete partidas amistosas. Empates com Dom Bosco, Operário e Portuguesa geraram mais repercussão negativa do que as vitórias perante Francana, Santos, XV de Piracicaba e Olaria trouxeram alento. Resultados à parte, o importante naquele momento era encontrar um time e esse trabalho foi bem feito. 

Um time recheado de desconhecidos


Desde o princípio, o goleiro Neneca, o lateral direito Mauro, a dupla de zaga com Gomes e Édson, e o meio-campo com Zé Carlos, Zenon e Renato formou a espinha dorsal do time. Porém, havia espaços a preencher. A lateral esquerda era um deles. Em uma tacada sagaz, Carlos Alberto transformou o ponta direita Miranda em um homem hábil à exercer aquela função, com o time fazendo muito bom uso de sua veia ofensiva.

Também foi durante a preparação que o comandante definiu as posições mais carentes de reforços, as duas pontas. Logo chegariam Capitão, para a direita, e Bozó, para a esquerda. Aquelas foram contratações modestas, com a cara do resto do time. Enquanto o ponta direita veio do XV de Piracicaba, tendo chamado a atenção justamente no amistoso disputado entre as duas equipes, o homem do flanco canhoto foi trazido do Santos, clube em que tinha pouco espaço. E a verdade é que Bozó também só asseguraria a titularidade a partir da lesão de Macedo.

Guarani 1978
Foto: Murilo Borges/Arte: O Futebólogo

Exceto o veterano Zé Carlos, que já tinha conquistado tudo com a camisa do Cruzeiro, todos os outros contratados tinham passados um tanto quanto obscuros. O goleiro Neneca chegara do Náutico, carregando um recorde impressionante de 1.762 minutos sem sofrer gols; Zenon era uma importante, mas pouco conhecida, revelação do Avaí. Gomes e Édson vinham dos modestos Saad e São Bento, do interior paulista. E, além desses, jogadores como Careca, Renato, Mauro e Miranda representavam a força da base bugrina.

Curiosamente, enquanto o esperado era que o volante Zé Carlos fosse o capitão do time, a faixa foi entregue a Édson, um zagueiro sério, mas de estilo mais calado.

“Montei o Guarani armando pilares. Precisava de um meio-campista que fosse representar a palavra do treinador, então peguei o Zé Carlos. Precisava de alguém que lançasse bolas a 70 metros, e eu tinha o Zenon, que fazia com uma maestria sem tamanho. Tinha um jogador excepcional taticamente, o Capitão”, recordou o treinador, na citada entrevista ao portal Terceiro Tempo.

Taticamente, o time acabou se encaixando em um 4-3-3 tradicional, formado por uma linha de quatro defensores, um volante à frente, Zé Carlos, um armador, Zenon, um ponta de lança, Renato, dois ponteiros e um centroavante, Careca. Mas, sobre a titularidade do jovem centroavante, é necessário recordar um momento decisivo. 

Início irregular, mas impulsionado pelo fim de um jejum incômodo


Em um Campeonato Brasileiro inchado, com 74 equipes (e que tinha como peculiaridade do regulamento o fato de que a vitória por três ou mais gols de diferença concedia um ponto extra ao vencedor), o Guarani passou a primeira fase no Grupo D, composto por 12 times, dos quais metade avançava.

O Bugre fez uma campanha irregular, com cinco vitórias, quatro empates e duas derrotas, que o levaram a terminar em quinto lugar. A estreia, contra o Vasco da Gama, já deu o tom da dificuldade: 3 a 1 para os cariocas, em pleno Brinco de Ouro da Princesa.

Apesar disso, uma vitória em especial moralizou o time. No dia 23 de abril, o Guarani recebeu a Ponte Preta e venceu, 2 a 1. Aquele triunfo colocou fim a um jejum de sete partidas sem vencer sua arquirrival. Mais que isso: foi a partir desse encontro que Careca, autor dos dois gols alviverdes, assegurou a titularidade — para não mais largar.


Vale lembrar: a Ponte Preta não era um time qualquer, levando a campo o talento de gente como Odirlei, Wanderley, Marco Aurélio e Dicá, além dos gols de Dario. 

Após a partida, a Folha de São Paulo narrou que “No Derby Campineiro, tudo é possível. Ontem, a Ponte Preta não contava com a entrada de Zenon. Apesar de anunciar durante toda a semana que ele não teria condições de jogo, o Guarani entrou em campo com força máxima, inclusive Zenon”. Surpreendida ou não, a Macaca não foi páreo para os homens de Carlos Alberto Silva.

Apesar disso, também não seria na segunda fase que o Guarani deslancharia. Mesmo que alguns times estivessem desfalcados, com alguns jogadores sendo cedidos à Seleção Brasileira para a disputa da Copa do Mundo.

Outra vez no Grupo D, agora com nove equipes, dentre as quais se classificavam seis, o alviverde de Campinas terminou na quarta posição, atrás de Vasco, São Paulo e Portuguesa. Seria na terceira fase que tudo mudaria. Primeira parada? Estádio Beira Rio, onde a soberba da imprensa gaúcha ofereceu ao Bugre o estímulo de que precisava para dar uma importante arrancada. 

Capitão, Careca e Bozó: ataque de circo? 


O Guarani estreou na terceira fase contra o Internacional e a imprensa gaúcha, liderada por Lauro Quadros, zombou dos visitantes. Sem qualquer cerimônia e fazendo uso de tom jocoso, sugeriu que um ataque com Capitão, Careca e Bozó só poderia ter saído de um circo. O certo é que o que se viu foi um espetáculo. Com toda a categoria de uma grande equipe, o Bugre puniu o Colorado na bola. O time de Falcão não viu o que o atingiu: 3 a 0 para os campineiros, gols de Renato, Bozó e Zenon.

“Eles deram muita sorte que choveu. Nosso time era leve. Dava pra ter levado 4 ou 5 a 0 fácil. Aquele comentário deixou o time mais forte ainda. Metemos três fora o chocolate. Todo mundo começou a respeitar mais a gente. Qualidade individual dos nossos jogadores era pau a pau com a dos grandes clubes”, lembrou Careca, em entrevista ao GE.

Quem reforça a ideia de um massacre bugrino é Zenon: “Acho que a equipe virou gente grande em julho de 1978, ao derrotar, no Beira Rio, o Internacional por 3 a 0. Foi o jogo mais importante da história do Guarani até então. Quando desembarcamos em Porto Alegre, os jornais debochavam da gente: ‘Time de Circo e Risos’ [...] Mas mostramos que tínhamos condições de chegar ao título”, falou à Placar, em 2005.


Dali em diante, a campanha campineira foi fortíssima. A exceção foi um empate contra o Goiás, porque se acumularam vitórias ante Santos, Botafogo-PB, Goytacaz, Botafogo de Ribeirão Preto e Londrina. Com a liderança do Grupo A assegurada, o time foi às quartas de finais. Sem maiores dificuldades, despachou o Sport, treinado por Hilton Chaves: 2 a 0 na Ilha do Retiro; e 4 a 0 no Brinco de Ouro.

Nas semifinais, o Guarani conseguiu ir à desforra contra o Vasco. Se nas fases anteriores havia sido derrotado uma vez e empatado em um segundo encontro, agora não deu chance para o azar. Em casa, venceu por 2 a 0, Orlando (contra) e Renato marcando; em São Januário, Zenon anotou duas vezes, e Dirceu descontou para o Cruzmaltino, 2 a 1. O Guarani estava na final, enfrentando o Palmeiras de Emerson Leão, Marinho Peres e Jorge Mendonça.

Vale mencionar que, entre a vitória contra o Santos e o jogo de volta contra o Vasco, o Guarani disputou sete partidas, não sofrendo gol em nenhuma delas. Se a linha de frente costuma chamar a atenção quando se pensa no Bugre de 1978, é certo que não se pode subestimar a influência da defesa e de seu goleiro, Neneca, que passou 778 minutos sem conceder um tento sequer.

Tirando Leão do sério e colocando o Guarani na prateleira dos campeões


A decisão do Brasileirão começou a ser jogada no dia 10 de agosto, no Morumbi. O Verdão, comandado por Jorge Vieira, levou a campo Leão; Rosemiro, Marinho Peres, Alfredo e Pedrinho; Jair Gonçalves, Toninho Vanusa e Jorge Mendonça; Sílvio, Toninho e Nei. Por sua vez, Carlos Alberto Silva lançou o que tinha de melhor: Neneca; Mauro, Gomes, Édson, Miranda; Zé Carlos, Zenon e Renato; Capitão, Careca e Bozó.

Um momento foi emblemático para a decisão. Eram decorridos 26 minutos do segundo tempo quando Careca provocou Leão. O goleiro não deixou barato, agrediu o jovem atacante, foi expulso e deixou o time em maus lençóis, com um pênalti para tentar defender. Sem alterações disponíveis, o Palmeiras viu Escurinho vestir a camisa de goleiro, calçar luvas e tentar parar o chute de Zenon, que estufou as redes e determinou o placar final: 1 a 0 Bugre.

“Não dá para falar muito aqui, não. O Leão naquela época fazia uma cera danada, ficava quase cinco minutos com a bola no chão. Eu fui tipo perturbar ele. Encostava nele no escanteio para provocar, tirar atenção. Nem cheguei a cair no lance. Com a bola na mão ele só fez o movimento com o cotovelo. A agressão aconteceu. Não imaginava, porque ele já era experiente”, falou Careca à EPTV Campinas.


Três dias mais tarde, em Campinas, coube a Careca sentenciar o Verdão: 1 a 0. Quando José Roberto Wright apitou o fim de jogo, não havia como duvidar mais: Carlos Alberto Silva havia passado da condição de ilustre desconhecido para a de ídolo. 

“Guarani, campeão do Brasil”, estampou a Folha de São Paulo do dia seguinte. “Jogar futebol é simples, e o Carlos Alberto sabe disso e não complicou as coisas com esquemas e outras coisas”, falou Zenon ao mesmo periódico. “Foi com essa tranquilidade que chegamos até o título”, garantiu Zé Carlos, por sua vez.
Folha de São Paulo Guarani Campeão Brasileiro 1978

Para o treinador, todo lágrimas, a conquista teve um sabor ainda mais especial. Não para provar sua competência, mas ante uma questão de foro íntimo, que vinha sendo sufocada. Carlos Alberto Silva havia perdido o pai pouco tempo antes, e, na ocasião do título, aproveitou um momento de júbilo para extravasar a dor que vinha carregando no peito.

Enquanto Zenon foi escolhido o craque do torneio, Carlos Alberto Silva acabou laureado o melhor treinador do certame. Já Neneca foi o arqueiro menos vazado. O detalhe é que apenas Renato disputou todas as partidas bugrinas. Fora os titulares, também não se pode deixar de mencionar a importância que tiveram peças como Manguinha, Alexandre ou Adriano.


A história não se apaga


Esse time ainda viveria mais uma página importante, em 1979. Classificado à Copa Libertadores da América, o Bugre fez uma campanha notável, tendo o melhor ataque da fase inicial e chegando às semifinais. No final das contas, foi superado pelo Olimpia, no Grupo B, perdendo a chance de enfrentar o Boca Juniors na decisão, mas acabou com a quarta colocação. Nada mal para um estreante.

Aos poucos, o time se desintegraria. Zenon e Renato sairiam em 1980, assim como Carlos Alberto Silva, que partiu para o São Paulo. A vez de Careca viria em 1982, também rumando ao Tricolor Paulista. Porém, a memória não se desgasta com o passar do tempo. 

O tradicional onze de 1978 vive na ponta da língua de todo torcedor, assim como o carinho por seus ídolos. De outro modo, o treinador vitorioso, que retornaria mais algumas vezes ao Brinco de Ouro, não teria sido homenageado com um busto idealizado pelos próprios torcedores. Lendas. É isso que os integrantes daquele Guarani representam para o clube, até hoje o único campeão brasileiro do interior.

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