Como o Wolverhampton influenciou a criação da Copa dos Campeões da Europa

Boa parte dos grandes eventos de todos os tempos teve seu início impulsionado por alguma circunstância extraordinária. Basta ir aos livros de História para confirmar ser esta uma realidade. Nesse sentido, o futebol registra uma dívida importante com o Wolverhampton. Não fossem os Wolves, talvez a Copa dos Campeões da Europa nunca tivesse sido criada. Com otimismo, pode-se pensar que sua gênese teria demorado mais. Eram os anos 1950, e os ingleses inauguravam os holofotes do estádio Molineux.

Wolves Honved 1954
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Eles deram o futebol ao mundo, mas já não eram o país do futebol


Essa é uma história repetida muitas vezes: a Inglaterra inventou o futebol. Foi nas Ilhas Britânicas que se estabeleceu o primeiro livro de regras do dito esporte. Também foi lá que foi fundada a primeira competição de clubes, a FA Cup. Não se olvida, além disso, que, não fossem as viagens marítimas partindo do país, dificilmente o futebol teria se popularizado, mundo afora, da forma como veio a ocorrer.

Tudo isso garantiu à nação fundadora um status de “país do futebol” — mesmo que, durante competições como o Campeonato Interbritânico, as derrotas para os vizinhos, especialmente para a Escócia, tenham começado a se verificar desde logo, em 1883-84. Foi diante desse cenário que, anos mais tarde, a Inglaterra se negaria a se filiar à FIFA, deixando de participar das três primeiras edições da Copa do Mundo, em 1930, 1934 e 1938.

Quando, enfim, os Three Lions jogaram um Mundial, ficou evidente o atraso do futebol jogado na ilha. Sorteada para o Grupo 2 da Copa do Mundo de 1950, disputada no Brasil, a equipe conseguiu apenas uma vitória, em três partidas. Em especial, a derrota para os Estados Unidos da América, em Belo Horizonte, no estádio Independência, uma espécie de ironia do destino, balançou as estruturas do futebol inglês

Belo Horizonte EUA Inglaterra
Foto: Arquivo EM/Arte: O Futebólogo

Outro choque, este de proporções ainda mais difíceis de mensurar e de produzir uma cura, aconteceria em 1953. No dia 25 de novembro, Inglaterra e Hungria subiram ao gramado do estádio Wembley. A partida, que passaria a ser conhecida como Match of the Century (“Jogo do Século”, em tradução livre), acabou com uma vitória acachapante dos magiares. Contando com os pés encantados de jogadores como Ferenc Puskas, e praticando um envolvente jogo de passes, os húngaros bateram os donos da casa por 6 a 3.

Entretanto, qual a relação do histórico inglês com o Wolverhampton e a fundação da Copa dos Campeões da Europa?

Luzes, câmera, ação


Em 1954, o Wolverhampton inaugurou uma novidade empolgante — e cara — no estádio Molineux: holofotes. A partir de então, os jogos disputados em sua casa poderiam acontecer à noite. Apesar de não ter sido o primeiro time inglês a promover a instalação de luzes em sua casa, antes dele o Arsenal já havia colocado em parte do estádio, e o Southampton já havia feito o implemento total, tratava-se de algo incomum para a época.

Aquele era também um momento especial na história dos Wolves. Comandados por Stan Cullis, centre half de sucesso no clube entre os anos de 1934 e 1947, os lobos haviam vencido a FA Cup de 1949 e acabavam de alcançar a glória máxima. Em 1953-54, conquistaram o título da primeira divisão inglesa pela primeira vez em sua história. Tal era um marco acima de qualquer suspeita, sobretudo tendo em vista que o clube fora um dos fundadores da liga, em 1888.

Wolves Stan Cullis
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Aproveitando-se de sua projeção recente e da empolgação que carregam as coisas novas, o Wolverhampton decidiu causar um rebuliço no mundo do futebol. Para testar suas novas luzes e arrecadar fundos para pagar os investimentos feitos, da ordem das 10 mil libras, convidou uma série de times importantes para a disputa de amistosos no Molineux. 

Times como First Vienna, Racing Club de Avellaneda, Celtic, Spartak de Moscou, Maccabi Tel Aviv e Budapest Honved viajaram à Inglaterra. E os resultados foram amplamente favoráveis aos donos da casa, que ainda praticavam um estilo de jogo de bolas longas, ao melhor estilo kick and rush, mas também passaram por uma revolução física implementada por Culis. O ponto alto dessa série de disputas acabaria sendo a vitória contra os soviéticos do Spartak e, claro, o triunfo ante os famosos magiares.

Revanche e autoproclamação


No dia 13 de dezembro de 1954, já não havia quem amasse o futebol e não soubesse do que se tratava o futebol húngaro. A sensação de que o vice-campeonato mundial naquele ano havia sido injusto era sentida mundo afora — com garantida exceção na Alemanha. A Hungria era o suprassumo do futebol. E os ingleses, ainda sofrendo as dores da demolição sofrida um ano antes, sabiam disso. A disputa entre o campeão da Inglaterra e o melhor time magiar era a chance de a Inglaterra renascer na cena mundial do futebol.

Nada menos do que sete jogadores daquela equipe húngara que vencera em Wembley atuavam no Honved. Por sua vez, os ingleses se viam representados pelo capitão Billy Wright. Mas a partida, que foi transmitida pela BBC a partir do segundo tempo, foi qualquer coisa, menos fácil. Com 14 minutos da etapa inicial, os magiares, e seu futebol envolvente, já impunham um placar de 2 a 0 aos anfitriões, cortesias de Sándor Kocsis e Ferénc Machos.

Então, um pouco de folclore e de realidade.

Conta-se que Stan Cullis teria ordenado que molhassem o gramado no intervalo. Na verdade, que o encharcassem. Assim, a partir de um pênalti polêmico cometido por Kóvacs em Jonny Hancocks, os Wolves diminuíram a desvantagem, que seria reduzida a pó com mais um gol de Hancocks e outro de Roy Swinbourne. Fim de jogo: Wolverhampton 3, Honved 2. 

Anos mais tarde, conforme reportou o Birmingham Mail, Swinbourne diria que: “Os Wolves nunca jogaram uma partida em que havia tanto orgulho envolvido”.


Empolgados, os jornais ingleses deram palavras ao seu contentamento. “O Wolverhampton deixou o futebol britânico orgulhoso sob o céu noturno”, garantiu o The Times. A seu tempo, o Daily Mail foi além: “Saudem os Wolves, campeões do mundo”. Também o Daily Mirror, em texto assinado pelo jornalista Peter Wilson, registrou sua aprovação: “Talvez eu não viva para ver um thriller melhor do que esse. E se eu vir outros tão empolgantes quanto eu posso não viver muito mais, de todo modo”.




Campeão do mundo? Houve quem discordasse


“Antes de declararmos que o Wolverhampton é invencível, deixemos ele ir a Moscou ou Budapeste. E há outros clubes internacionalmente renomados: Milan e Real Madrid, para citar dois. Um campeonato do mundo, ou, no mínimo, um europeu — maior, mais significativo e mais prestigioso do que a Copa Mitropa, e mais original do que a competição para seleções — deve ser criado”, disse Gabriel Hanot, então editor do l’Equipe, em resposta aos artigos dos jornais ingleses.

Estava plantada a semente para a criação da Copa dos Campeões da Europa. Hanot, junto a Jacques Ferran, um de seus mais influentes colegas, também havia acompanhado o desenrolar do Campeonato Sul-Americano de Campeões de 1948, vencido pelo Vasco da Gama, uma espécie de disputa precursora da Copa Libertadores da América, e havia gostado de seu conceito. 

Mas era preciso definir como se daria a contenda europeia — além do próprio fato de que alguém deveria promovê-la. Antes de definir que a competição contaria com os campeões nacionais, chegou-se a considerar a inclusão de outras equipes, baseando-se apenas em um critério de grandeza, por mais subjetivo que possa parecer. 

“Pensamos que a maior chance de sucesso era baseada na inclusão dos times de maior prestígio [...] Nosso único objetivo era tirar a competição do chão para ajudar a aumentar nossas vendas de meio de semana — nunca escondemos esse fato. Tendo concebido nosso bebê, nossa principal preocupação era achar alguém para adotá-lo”, disse Ferran, em fala reproduzida pelo site da UEFA.

Em 6 de maio de 1955, a UEFA adotou a criança e fundou a Copa dos Campeões da Europa. Curiosamente, a FA inglesa proibiu seus times de participar da disputa. Assim, a edição inicial, vencida pelo Real Madrid em 1955-56 e cuja final não por acaso foi disputada em Paris, não contou com o Chelsea, que era o campeão inglês vigente. No ano seguinte, entretanto, os protestos do Manchester United valeriam seu acesso, após vitória na queda de braço com a FA.

Real Madrid 1955
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

O primeiro título inglês só viria em 1968, justamente com os Red Devils, momento em que já se haviam verificado hegemonias de Real Madrid, Benfica e Internazionale. O sucesso da disputa não é colocado em causa, como viria a notar o jornal catalão Mundo Deportivo, por ocasião da conclusão da 20ª edição do certame, em 28 de maio de 1975:

“Indiscutivelmente, a Copa dos Campeões da Europa veio a cobrir uma lacuna competitiva de primeira linha no mundo do futebol, trazendo uma dose de prestígio e glória inesquecíveis na história do mais popular dos esportes do mundo [...] Poucas experiências como esta revitalizaram, projetaram, internacionalizaram e engrandeceram o esporte. O eco popular foi, por assim dizer, imediato, especialmente por parte das torcidas dos países fundadores da competição: Espanha, França, Portugal e Itália [...] A Copa dos Campeões da Europa, em 20 anos, e através de 1.113 encontros, praticamente não conheceu um estádio vazio e se pode calcular em 33 milhões o número de torcedores que foram testemunhas das páginas inolvidáveis de sua história”.

A disputa fundada em 1955 ainda não era o desejado torneio de clubes de alcance mundial, mas se firmou como um parâmetro de avaliação das capacidades dos grandes clubes europeus. Algo muito melhor do que uma sequência de amistosos. Com todo respeito ao Wolverhampton.

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