1969-70: Quando o Cagliari levou o Scudetto e fez a festa na Sardenha

A história do futebol italiano indica o domínio absoluto de uma região sobre as demais. O norte do país, representado por Juventus, Internazionale e Milan, concentra uma maioria suprema de conquistas. Essa situação contrasta, frontalmente, com a vivida no outro extremo do mapa, refletindo o desenvolvimento econômico da nação. Ao sul, somadas as ilhas que compõem o território do Bel Paese, três títulos italianos são tudo o que se encontra. Dois deles por obra de um Napoli impulsionado por Diego Maradona. O outro, anos antes, colocou a Sardenha em festa.

Cagliari 1969 1970
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


A Sardenha no mapa (da bola)


Uma olhada no mapa do território italiano revela, além de sua famosa extensão continental na forma de uma bota, duas ilhas, Sicília e Sardenha. Não obstante, o mapa do futebol itálico mostra uma disposição diferente. A maior parte dos times que costumam disputar a Serie A se localiza a norte da capital do país, Roma. Tal questão não chega a ser surpreendente, considerando as diferenças, facilmente verificáveis, de desenvolvimento econômico no país.

É uma simplificação chamar o norte de industrializado e o sul de agrário. Porém, não deixa de refletir, em alguma medida, o que se verifica. Não é surpresa, pois, que a ilha da Sardenha só tenha conseguido se ver representada na elite do futebol italiano a partir dos anos 1960. Tal veio a ocorrer mediante o acesso do Cagliari, em 1964. O período, entretanto, não era dos mais animadores para o sul da Itália.

O país vivia um período que acabaria conhecido como “Milagre Econômico”, representado por um significativo desenvolvimento no pós-guerra. Porém, ele não alcançava a Itália de forma igual. Assim, um fenômeno comum à época foi o das migrações. Acima de tudo, sulistas procuraram no norte melhores condições de trabalho, renda e vida, em uma emigração massiva para a grande cidade. E tal não se daria sem alguma resistência.

Sardinia Map

O termo já havia sido cunhado, mas ganharia mais força na época. Terroni foi um nome, pejorativa e costumeiramente, utilizado no norte em referência ao emigrante do sul. O significado por trás seria algo como “ignorante”. Texto do NY Times confirma essa realidade, ao garantir que: “Na Itália, os nortistas há muito sustentavam que os sulistas — particularmente os sicilianos — eram um povo ‘incivilizado’ e racialmente inferior, obviamente africano demais para pertencer à Europa”. 

Era assim que boa parte do norte percebia o sul. Também dessa maneira o futebol dominante tratava o dominado. Ainda que a Sardenha não fosse o alvo preferido do preconceito, também por conta de sua importância no processo de unificação da Itália, unindo-se, voluntariamente, ao Reino do Piemonte nos anos 1840, estava na mesma região e, economicamente, enfraquecida. 

Nos anos 1960, o Cagliari parecia um retrato fiel de como sua região era vista pelos polos industrialmente mais desenvolvidos: como um nada. Isso ficaria claro a partir da fala do goleiro Enrico Albertosi, contratado junto à Fiorentina, em 1968: “Quando ouvi sobre o interesse do Cagliari pela primeira vez, eu não queria ir, porque em Florença sempre fazíamos piada de que a Sardenha era uma colônia penal”, registrou a revista When Saturday Comes.

É de se destacar que a questão da desigualdade persiste. Como comparação, em 2016, a região do Piemonte, onde se localiza Turim, tinha um produto interno bruto per capita na casa dos 30.900 euros, enquanto na Sardenha tal índice apontava o valor de 20.900 euros.

O incrível Gigi Riva


Se fosse possível atribuir a uma só pessoa os êxitos que viriam a se verificar em Cagliari, não há dúvidas, eles responderiam pelo nome de Luigi “Gigi” Riva. O portentoso atacante, de 1,80m e poderosa perna esquerda, viria a ser o rosto dos Isolani. Ele que veio do nada, tendo tido uma juventude tão traumática quanto possível, e que triunfaria à margem dos interesses do norte.

Riva foi contratado em 1963, junto ao Legnano, então na terceira divisão italiana. Aos 19 anos, chegava para tentar ajudar o Cagliari a alcançar seu primeiro acesso à Serie A. Deixava para trás a Lombardia e um passado dos mais complicados que se pode imaginar: perdera o pai aos nove anos; também a mãe, aos 16. Assim, acabou tendo em uma de suas irmãs, Fausta, sua principal referência. Coube a ela prover a coragem necessária para que o jovem atacante aceitasse a mudança para a Sardenha, ao troco de 37 milhões de liras italianas.

O projeto de artilheiro não demorou a se sentir em casa, acolhido por diversas pessoas no clube e caindo, rapidamente, nas graças do povo. Pudera: logo em sua campanha de estreia, marcaria oito gols, em 26 partidas. E, exceto por anos marcados por graves lesões, aquela seria a pior de suas temporadas. Logo, emplacaria um decênio sendo o maior matador rossoblù, liderando a artilharia do Cagliari, ano após ano.

Gigi Riva Cagliari 1970
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Como não poderia ser diferente, houve oportunidades de saída. Desde o princípio da interminável fase goleadora do atacante, a Juventus esteve atenta aos seus passos. Foram muitas as lucrativas ofertas feitas pelos préstimos do Rombo di Tuono, o Trovão, como ficaria conhecido. Todas rejeitadas, pelo clube ou pelo jogador. 

Também a Internazionale buscaria sua contratação, em 1969. Os milaneses acabariam fechando com seu parceiro de ataque, Roberto Boninsegna, cedendo Angelo Domenghini e Sergio Gori aos ilhéus.

“Eu poderia ter ganhado o triplo. Mas a Sardenha me tornou um homem. Era a minha terra. Naqueles tempos, nos chamavam de pastores e de bandidos pela Itália. Eu tinha 23 anos e a grande Juventus queria me cobrir de dinheiro. Eu queria o Scudetto para a minha terra. Nós conseguimos, os bandidos e pastores”, diria Riva a respeito de uma proposta feita pela Juve, em 1967.

Riva acabaria se tornando o maior ídolo do Cagliari em todos os tempos. Ele é quem mais gols marcou pelos Isolani, 164 em 315 partidas. Sua tradicional camisa 11 acabaria aposentada pelo time em que encerraria a carreira em 1976. Também pela Itália, ele deixaria marca expressiva, sendo o maior goleador da Azzurra, com 35 tentos marcados, em 42 jogos. Riva carrega, ainda, a marca de ter sido o primeiro jogador do Cagliari chamado à seleção.


Formando um time vencedor


O fato é que, para entrar de vez no mapa da bola e eternizar Riva, o Cagliari precisou vencer. Desde o acesso, em 1964, o clube sardenho não fez feio na primeira divisão. Em suas primeiras quatro temporadas, terminou em sexto, décimo primeiro, outra vez em sexto e, por fim, em nono. Em 1966-67, o time também teve em Riva o artilheiro do campeonato. Não era nada mau para um estreante.

A formação de um time talhado para o sucesso começaria pelas mãos de Arturo Silvestri, treinador escolhido para uma reconstrução. E o comandante encontrou sucesso. Recebendo o time na terceira divisão, em 1961, o entregou em condições de absoluto conforto, em 1966. Seu trabalho foi reconhecido, a partir de uma oportunidade conferida pelo Milan. E a troca de comando seria boa também para o Cagliari, que fechou contrato com Manlio Scopigno, ex-Bologna.

O “Filósofo”, como ficou conhecido, herdou uma equipe que já continha peças importantes. Além de Riva, o brasileiro Nenê já estava no clube desde 1964 — contratado junto à Juventus, em uma época em que praticamente não havia jogadores negros no Calcio. Ao sul-americano se juntavam os defensores Mario Martiradonna e Comunardo Niccolai (cujo nome é uma homenagem à Comuna de Paris), o volante Pierluigi Cera e o meio-campista Ricciotti Greatti. Os demais seriam escolhidos por Scopigno.

Nenê Cagliari
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O curioso é que clube e treinador chegaram a se separar em determinado momento. Contratado em 1966, Scopigno permaneceu até 1967, sendo substituído por Ettore Puricelli, mas retornando uma temporada depois, na ausência de uma evolução do time. Foi ele também o responsável por treinar o time em uma aventura nos EUA. 

Em 1967, a United Soccer Association convidou times do mundo a representar um novo clube em um torneio local. Sob o nome de Chicago Mustangs, o Cagliari terminaria a Conferência Oeste em terceiro lugar, atrás de Los Angeles Wolves e San Francisco Golden Gate Gales, ou, trocando em miúdos, Wolverhampton e ADO Den Haag. 

No retorno à Sardenha, depois de apelos da torcida e de uma transferência mal-sucedida para a Internazionale, Scopigno fez um de seus negócios mais importantes, a mencionada troca envolvendo Boninsegna, que seguiu para a Inter. A operação teria ainda um efeito colateral. Com a chegada de Domenghini, Nenê foi deslocado da ponta direita para uma função de armação, mais centralizado — mudança que seria fundamental para os planos do treinador. “Sem ele, dificilmente o Cagliari teria obtido esses resultados”, diria, no funeral de Nenê, ninguém menos do que Riva.

Albertosi Cagliari
Foto: Silpress/Silvano Galassi/Arte: O Futebólogo

Para completar a defesa, em 1968, Scopigno buscaria o líbero Giuseppe Tomasini no Brescia e o defensor, pelo lado esquerdo, Giulio Zignoli, no Bari. Faltava um goleiro de confiança. Assim, o clube trouxe o selecionável italiano Albertosi, da Fiorentina e que vencera duas vezes a Coppa Italia naquela década, além de uma Recopa Europeia e de uma Copa Mitropa. Junto ao arqueiro, desembarcou na Sardenha Mario Brugnera, que ainda não sabia, mas seria vital.

A vitória da Sardenha


Quando se desenhou a temporada 1969-70, já havia confiança de que o Cagliari pudesse chegar ao título italiano. Um ano antes, o time havia ficado em segundo lugar, à sombra da Fiorentina. Ainda assim, tratava-se de algo difícil de se imaginar. Afinal, aquela memorável campanha podia não passar de acidente e, ademais, o time teria pela frente o desafio da Copa das Feiras (precursora da Copa da Uefa).

“A Juve e os times de Milão têm tido a riqueza e os contatos para garantir que as coisas saiam à sua maneira por tempo demais. Se o Cagliari conseguir vencer a Serie A, imagino que será o primeiro título honesto do campeonato em anos”, falou Scopigno à época.

Logo, ficou claro que a Copa das Feiras não interessava aos Isolani. Escalando equipes mistas, o time até superou os gregos do Aris, mas logo caiu perante os alemães orientais do Carl Zeiss Jena. Apesar disso, o começo da campanha no Calcio revelou uma esquadra preparada para brigar pela ponta da tabela. Os Rossoblù só perderiam sua invencibilidade na 12ª rodada, após sete vitórias e quatro empates (dentre os quais partidas contra Inter e Juventus). 

Scopigno Cagliari
Foto: Reprodução - Goal/Arte: O Futebólogo

Mas, quando perdeu — 1 a 0 para o Palermo —, o time se viu em um momento decisivo. Scopigno ofendeu um bandeirinha e foi suspenso até o final da temporada. Sem seu comandante nos bancos, o time empatou mais duas vezes, antes de emplacar outra boa sequência, com cinco vitórias. Apesar disso, em meio à onda positiva, o time sofreu outro revés: Tomasini sofreu lesão grave no joelho contra a Sampdoria, na 16ª colocação.

A solução do treinador foi brilhante. Cera, o volante, ocupou a função do líbero, Brugnera entrou no meio-campo e o time não deixou a peteca cair. Até o término da competição, só perderia mais um jogo, contra a Inter, na 21ª rodada: “Ele [Cera] jogava no meio campo, então Tomasini se machucou e Scopigno o colocou na defesa. No meio-campo entrou Brugnera e ficamos mais fortes no ataque. Às vezes, os pontos de virada acontecem em oportunidades na necessidade”, disse Domenghini.

Concedendo míseros 11 gols em 30 jogos, o Cagliari conseguiu o título nacional. Riva acabou sendo o artilheiro da competição e o responsável por 50% dos gols do time, com 21 bolas nas redes adversárias. Líder absoluto desde a quinta rodada, o esquadrão rossoblù conquistaria a taça no dia 12 de abril, após vitória contra o Bari, na penúltima rodada. Enquanto Riva e Gori anotaram os dois tentos da vitória do Cagliari, Gian Piero Ghio e Giorgio Chinaglia, pela Lazio, garantiram a necessária derrota da Juventus.


Durante a decisão, o clima de expectativa na cidade era tão grande que a partida teve duas presenças inusitadas. Dois presos haviam escapado da penitenciária local, sendo recapturados dentro do estádio. A despeito disso, foi-lhes concedido o direito de assistir a partida até o final. Com a vitória assegurada, por mais de uma semana as ruas de Cagliari foram dominadas por falsos funerais alusivos aos times do norte. Era a hora de celebrar o triunfo do sul. 

Altos e baixos


A Sardenha voltava a ter papel de destaque no cenário nacional. Na sequência, Albertosi, Cera, Niccolai, Domenghini, Riva e Gori seriam chamados a representar a Seleção Italiana na Copa do Mundo de 1970. Apenas a Inter teve tantos atletas convocados.

Nada disso, entretanto, evitou o retorno das campanhas medianas, que voltaram a ditar o ritmo do futebol em Cagliari. Sem Riva durante boa parte da temporada — ele quebraria a perna a serviço da seleção italiana —, os Isolani terminaram a Serie A 1970-71 em sétimo lugar. Na Copa dos Campeões da Europa, chegaria a eliminar os franceses do Saint-Étienne, caindo, na sequência, para o Atlético de Madrid. 

Scopigno permaneceria até 1972, antes de se mudar para a Roma. Logo, Riva passaria a conviver com constantes problemas físicos. 


Em 1975-76, após duas temporadas de 10º lugar, o time acabaria segurando a lanterna e voltando à segunda divisão. Aquela também seria a última temporada de Gigi no futebol profissional. Desde então, foram muitos altos e baixos para a equipe, acumulando acessos e descensos. 

Ainda assim, seu status nunca mais foi aquele do princípio dos anos 1960. O Cagliari havia sido campeão italiano e feito da Sardenha a primeira região do sul da Itália a comemorar um título nacional. Eventos desse porte mudam a história de forma definitiva.

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