Bayern: Construindo a maior hegemonia da Europa

O futebol alemão se divide em dois períodos, um anterior e outro, posterior, à fundação da Bundesliga — o campeonato nacional nos moldes atuais. Tal fato aconteceu em 1962, com a primeira edição se iniciando no ano seguinte. Até então, havia futebol do país, mas não existia uma competição unificada. Eram disputados torneios regionais e, ao final, os melhores colocados de cada um deles se digladiavam pelo posto de campeão.

Nessa época, o Bayern de Munique era só mais um clube no cenário alemão. Ainda que tivesse chegado ao lugar mais alto no pódio em 1931-32, tal fato se mostrou isolado. No país, as forças mandantes eram Nürnberg (com oito glórias) e Schalke 04 (sete) — com Borussia Dortmund, Hamburgo, Lokomotiv Leipzig e Greuther Fürth mais atrás, com três conquistas cada. Os bávaros sequer disputaram a duas primeiras edições da Bundesliga, ficando à sombra de seu rival local, o Munique 1860.

Bayern 1974
Foto: Reprodução FC Bayern/Arte: O Futebólogo


Do nazismo à base


Há, entretanto, um adendo que precisa ser feito: o Bayern era um clube de bases judias. Quando o holocausto se iniciou, a equipe tinha um presidente e um treinador judeus. Além disso, como noticiaram os ingleses do Guardian, dois dos dezessete fundadores do clube eram também judeus. Isso acabou por condicionar um período de perseguições, que certamente não contribuiu para a obtenção de melhores resultados durante um longo período.

“O Bayern foi desacreditado como um clube judeu pelos nazistas, mas resistiu [...] Em 1934, jogadores do clube estiveram envolvidos em uma briga com os nazistas. Dois anos mais tarde, o ponta Willy Simetsreiter deixou clara sua posição sendo fotografado com Jesse Owens [ex-atleta negro dos EUA], que havia enfurecido Hitler, vencendo quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim.

O lateral Sigmund Haringer escapou por pouco da prisão por chamar uma parada nazista de ‘teatro infantil’, e o capitão, Conny Heidkamp, com sua esposa, esconderam os troféus do Bayern quando outros clubes apresentaram um apelo ao Reischmarschall Hermann Göring para doar metal para os esforços da guerra. O ato mais simbólico de desafio ocorreu em Zurique, em 1943. Após um amistoso contra a seleção suíça, os jogadores do Bayern se perfilaram para cumprimentar o exilado [Kurt] Landauer [ex-jogador e presidente do clube] nas arquibancadas”.

Kurt Landauer
Foto: Reprodução FC Bayern/Arte: O Futebólogo

O acesso à divisão de elite veio apenas em 1965 e, logo na estreia, em 1965-66, o Bayern fez uma temporada memorável. Não era para menos: o jovem elenco treinado pelo também iniciante treinador iugoslavo Zlatko Čajkovski (que vinha de bom retrospecto com o Colônia) tinha peças de incontestável talento e que seria fundamentais para elevar o status do time. Dentre os jogadores que o clube alinhava havia pelo menos três que veriam, após, seus nomes eternizados na história do futebol germânico e no Bayern.

Aos 20 anos, Franz Beckenbauer podia ainda não ser o Kaiser, mas já estava em vias de se transformar nele; lá atrás, debaixo dos paus, Sepp Maier, 22, mostrava as credenciais que o fariam conhecido por seus reflexos de felino; e, na frente, Gerd Müller, também 20, anotava os primeiros tentos que lhe renderiam a reputação de Bomber. Este, aliás, era o único que não havia sido formado nas categorias de base bávaras, até então sempre olhadas com carinho diante das algumas dificuldades econômicas pelas quais passava o clube.

Na primeira campanha na Bundesliga, o Bayern terminou a competição na terceira posição, três pontos atrás de seu rival, o 1860. Mas não foi só isso. O clube conquistou a Copa da Alemanha, vencendo o Meidericher SV, na finalíssima, em que Beckenbauer fechou o placar: 4 a 2. O êxito nacional levou o clube à disputa da Recopa Europeia do ano seguinte — apenas a segunda competição internacional disputada pela equipe, que anteriormente jogara a Copa das Feiras de 1962-63.

Beckenbauer Bayern
Foto: Reprodução FC Bayern/Arte: O Futebólogo

Também não foi por acaso que Beckenbauer e Maier foram convocados por Helmut Schön para a disputa da Copa do Mundo de 1966. O primeiro não só foi titular como teve tanta importância que integrou o time da competição, após o polêmico vice-campeonato germânico. Ninguém se esquece da controvérsia a respeito de um gol da Inglaterra, rival na ocasião, em que a bola não teria entrado no chute de Geoff Hurst, na prorrogação.

Desenvolvendo um vício: vencer


O título da copa nacional foi o combustível de que os bávaros precisavam para começar uma evolução que nunca parou de acontecer, embora, inevitavelmente, tenha havido momentos de menor brilho no curso dos anos. Logo, em 1966-67, o time conquistou mais um título, levantando a taça da Recopa, batendo os escoceses do Rangers, com gol de seu touro e outro símbolo dos anos dourados do clube, o meio-campista Franz Roth — também cria da casa. O time logo começou a construir duas reputações: a de clube copeiro e a de possuir uma das mais prolíficas bases da Europa.

No mesmo ano, o Bayern emplacou mais uma conquista da Copa da Alemanha, o que se repetiria mais uma vez naquela década. O mais importante, entretanto, foi o time conseguir mostrar que podia ser mais do que copeiro.

Já sob o comando de Branko Zebec, outro eslavo (responsável por mudar a abordagem tática do time, deixando o ataque feroz de lado em prol de uma organização maior), o Bayern venceu a Bundesliga de 1968-69, além da Copa nacional. Logo, em 1970, o clube se encaminhava para forjar uma hegemonia. Para o comando da equipe, os bávaros buscaram o ex-auxiliar técnico da Alemanha, Udo Lattek, que na sequência colocou no mundo mais dois talentos incontestáveis: Paul Breitner e Uli Hoeness.

Bayern 1969
Foto: Reprodução Bundesliga/Arte: O Futebólogo

Vale fazer menção ao fato de que a ascensão do clube acompanhava a da cidade de Munique. Reconstruída após a Segunda Guerra Mundial, a capital da Baviera dava passos largos para deixar os terrores das décadas marcadas pelo Nazismo para trás e se preparava para ser o epicentro do planeta em 1972, quando receberia os Jogos Olímpicos, marcados por cenas que estarreceram o mundo, com um ataque à delegação de Israel.

O ambiente local era animador e propício para a construção de um clube de dimensões globais. Como disseram os alemães do Spiegel, o país deixava uma época de “perdas massivas para novos inícios” e Munique estava no centro disso.

Da Alemanha para a Europa


A trajetória bávara rumo ao topo continuou — e nunca parou. Após presenciar a ascensão do Borussia Mönchengladbach, que conquistou o título alemão em 1970 e 71, o Bayern dominou a cena nacional e europeia. Com um time titular consolidado, que qualquer torcedor da época e dos tempos vindouros é capaz de alinhar, os bávaros começaram a bater no time de Jupp Heynckes, Berti Vogts e Günter Netzer. Logo, veio o tricampeonato nacional, em 1972, 73 e 74, ano em que surgiu mais um talento inesquecível do clube, Karl-Heinz Rummenigge.

E, então, começaram as glórias continentais. Em 1974, o primeiro título da Copa dos Campeões veio após uma batalha de 210 minutos contra o Atlético de Madrid em Bruxelas. O primeiro jogo terminou 0 a 0 e foi para a prorrogação, quando Luis Aragonés abriu o marcador para os Colchoneros, seis minutos antes do final da partida. Mas, enquanto houve tempo, a luta bávara não cessou. Segundos antes do final, o zagueiro Georg Schwarzenbeck empatou o encontro. Veio o jogo extra e o ocaso madrilenho: 4 a 0. Hoeness e Müller foram às redes duas vezes cada. Essa conquista ajudou a cunhar outra reputação do Bayern — esta comum também à seleção alemã: a de clube de espírito imperturbável.


Em 1975, Roth e Müller, com um gol cada, tiraram as possibilidades de título do Leeds United; e, em 1976, foi um gol solitário de Roth que proferiu a sentença aos franceses do Saint-Étienne. Depois de Real Madrid, na década de 1950, e Ajax, no início dos anos 70, o Bayern passou a integrar o rol dos clubes que haviam conquistado três títulos consecutivos do maior torneio europeu de clubes.


Daí em diante, o time até viveu épocas de menor prestígio, mas nunca passou mais de quatro anos sem conquistar um título — e a espera quadrienal só aconteceu duas vezes: entre as temporadas 1976-77 e 1979-80 e 1990-91 a 1993-94.


Fidelidade às pessoas e aos princípios


É claro que após a geração de ouro, que começou a ser construída nos anos 1960 e viveu auge em meados da década seguinte, houve momentos mais difíceis. Não é à toa que os bávaros só voltaram a vencer o principal torneio europeu em 2000-01, quando já mudara seu formato, passando a se chamar Liga dos Campeões.

Houve crises, em que se disse que o Bayern refletia a seleção alemã, sendo um clube com chegada às decisões, mas demasiado pragmático. Porém, sempre que recorreu às suas bases, a equipe obteve êxito. E, a partir de meados dos anos 2000, o time começou a se consolidar no rol dos três, quatro mais poderosos do planeta. Curiosamente, ou não, foi nessa época em que surgiram jogadores como Philipp Lahm, Bastian Schweinsteiger, Toni Kroos, Thomas Müller e David Alaba e o clube voltou a conquistar a Europa, em 2013.

Do lado de fora dos campos, no período entre 1994 e 2009, o clube foi presidido por Beckenbauer, sucedido por Hoeness, ex-diretor geral, que permaneceu no cargo até 2014, quando foi acusado, julgado e condenado por fraudes fiscais, na Alemanha. Porém, tão logo deixou a prisão, concorreu novamente à presidência do clube e foi reeleito, com 97% dos votos. Detalhe: o clube ainda teria em sua direção ninguém menos que Rummenigge.

Lahm Schweinsteiger
Foto: Bongarts/Getty Images/Arte: O Futebólogo

Outro ponto digno de menção é o fato de que o Bayern pode não ter começado a disputar a Bundesliga desde o princípio, mas nunca caiu. E, em seus passos mais recentes, voltou a olhar para a sua história. Apostou no treinador croata Niko Kovac, que defendeu as cores bávaras entre 2001 e 2003. Não deu certo, e ele acabou substutído. Por quem? Hans-Dieter Flick, jogador do clube entre 1985 e 1990. O resultado, dessa vez, foi imediato, com o Bayern vencendo todos os mais relevantes títulos da temporada 2019-20.

Dentre as principais ligas da Europa, o Real Madrid pode até ser o time com maior número de títulos, mas nenhum país experimenta uma disparidade tão grande quanto a Alemanha. Os 30 títulos nacionais dos bávaros dificilmente serão superados algum dia. O segundo maior vencedor do certame é o Nürnberg, com nove glórias. À parte disso, a supremacia também se dá porque o Bayern construiu um caminho sólido durante os anos, consolidou bases e princípios, que sempre deram resultados quando buscados.

A capital Alemã pode até ser Berlim, mas, quando o assunto são as vitórias no futebol, só se pensa em Munique.

Comentários

  1. O texto é muito bom, mas faltou falar mais detalhadamente das fases menos brilhante do Bayern: décadas de 1910, 1920, 1930, 1940, 1980 e 1990! Por exemplo a década de 1980, onde os bávaros ganharam estes títulos nacionais: 1980–81, 1984–85, 1985–86, 1986–87, 1988–89, 1989–90! Isso sem falar de três Copas da Alemanha 1981–82, 1983–84, 1985–86 e a Supercopa da Alemanha em 1987! Se a década de 80 for esquecida num texto como este, com certeza ficará incompleto as grandes fases do Bayern de Munique!!! Fora que a final da Copa dos Campeões 1986-87, perdida para o Porto, tinha no meio-de-campo Alemanha Ocidental Andreas Brehme, Hans-Dieter Flick, Lothar Matthäus e Rummenigge no ataque!!! Um timaço!!!

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    1. Obrigado pelo elogio! Quanto às décadas anteriores aos anos 1960, não entram no contexto porque quando falo na "construção da hegemonia", entendo que ela se inicia com a Bundesliga. Até mesmo porque o clube só tinha um título alemão até então (1932). Mas, você tem razão, poderia ter explorado mais sobre as décadas de 1980 e 90. Obrigado pela contribuição!

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