O ano em que Parreira conduziu o Fenerbahçe ao fim de um incômodo jejum

É desnecessário discorrer longas linhas a respeito do tipo de rivalidade futebolística vivida nas ruas de Istambul. Por isso, não é difícil imaginar o tipo de pressão que o Fenerbahçe vivia em 1995. Fazia seis temporadas que os Canários Amarelos não venciam a Liga Turca. No período, foram dois os títulos do Galatasaray e quatro os do Besiktas. O Fener nunca havia passado tanto tempo longe do principal caneco do país. Objetivando o fim da seca, o clube buscou a liderança de um tetracampeão mundial, Carlos Alberto Parreira.

Parreira Fernerbahçe 1995 1996
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Tentando honrar o legado de Didi


Parreira chegou ao Fenerbahçe Stadium (que, em 1998, passaria a se chamar Şükrü Saracoğlu) após passagem medíocre pelo Valencia. Aposta dos Che após o título mundial de 1994, com a Seleção Brasileira, o treinador não fez um bom trabalho. Demitido antes do final de uma temporada em que o clube havia feito investimentos em gente como Mazinho, Andoni Zubizarreta e Oleg Salenko, não vivia seu melhor momento. O Valencia fez sua pior campanha no Campeonato Espanhol desde 1987-88 e se dizia que o vestiário estava em ruínas.

No entanto, o prestígio alcançado sob a direção da Canarinho não havia desaparecido. Ainda em Valência, Parreira recebeu contatos para dirigir os Estados Unidos, equipes do México, do Japão, e até o Athletic Bilbao. Além deles, o treinador obteve a oferta para se tornar o segundo brasileiro a liderar o Fenerbahçe. Ele nem titubeou. Um ano mais tarde, em entrevista concedida à revista Placar, afirmaria que: “A proposta deles foi três vezes maior [que a dos EUA]”.

Segundo noticiou a Folha de São Paulo, em 20 de junho de 1995, seu salário rondava os $2 milhões, por um ano de contrato: “Vou ganhar mais lá do que ganharia em três anos dirigindo a seleção dos EUA. Serei campeão do mundo por uns dois ou três anos. Tenho de aproveitar o momento”. Rumo à Turquia, o treinador levou consigo o preparador físico Moraci Sant'anna.

Parreira Fenerbahçe Newspaper

As expectativas ao redor do comandante eram grandes. Tanto por conta do vitorioso histórico carregado por Parreira quanto pela meia dúzia de anos sem conquistas da parte do Fenerbahçe, que pesavam. Também não era agradável a sensação de ter sido o quarto colocado na temporada anterior, atrás, inclusive, do Trabzonspor. Tudo isso sem deixar de mencionar o fato de que o torcedor mais antigo se lembrava, com um sorriso no rosto, da última vez em que um brasileiro, campeão do mundo, passara pelo clube.

Depois de conduzir o Peru à sua segunda Copa do Mundo, em 1970, e de uma breve passagem pelo River Plate, Didi treinou o Fenerbahçe. E, entre 1972 e 1975, venceu duas vezes o Campeonato Turco, também em dois anos a Supercopa da Turquia, além da Copa da Turquia, em uma ocasião. A recordação dos dias treinados por um brasileiro era doce.

Pré-temporada em São Paulo


À citada reportagem da Folha, Parreira deixou claro que não conhecia o time que treinaria. Em tempos de internet precária e de uma globalização galopante, mas ainda distante do que passaria a ser vivido a partir dos anos 2000, tal não era de todo incomum. Objetivando se acostumar aos novos comandados o quanto antes, o brasileiro escolheu seu próprio país para passar parte de sua pré-temporada: “Vamos tentar usar o CT do São Paulo ou do Palmeiras e realizar amistosos no Brasil”, disse.

Fazendo toda sorte de experiências, o Fenerbahçe perdeu para Palmeiras, São Paulo, XV de Piracicaba, e também ante o Rio Branco de Americana — que alinhou jogadores como Mineiro, Marcos Assunção e Marcelinho Paraíba. Também venceu o União São João de Araras e o Paulista de Jundiaí. 

Em um arroubo de sinceridade, um ano mais tarde, Parreira diria à Placar que seu time não era dos melhores, mas tinha disciplina invejável, contando que a caixinha criada para os casos de atrasos aos treinamentos “foi à falência”, dado o comprometimento dos atletas.


Outro motivo que justificou a escolha pelo início do trabalho em solo brasileiro foi a busca pela contratação do centroavante Luizão. Em rota de colisão com o Guarani, chegando a deixar um treinamento antes do final e não viajando com a equipe para um encontro com o Flamengo, o atacante chegou a dizer, sem citar nomes, que não estava recebendo bolas de seus companheiros.

Dirigentes do Fener acompanharam uma partida entre Guarani e São Paulo, para avaliar uma proposta por Luizão. Na ocasião, ele marcou, mas o Bugre saiu derrotado, 3 a 2. Como se sabe, o artilheiro nunca chegou a se transferir ao clube turco. Suas experiências fora do Brasil seriam na Espanha, Alemanha e no Japão.

Parreira acabaria recebendo os reforços do bósnio Elvir Bolic e do inglês Dalian Atkinson, ex-Aston Villa. Os dois se revezariam no ataque do time, que já contava com o mito local Aykut Kocaman, artilheiro do Campeonato Turco da temporada anterior.

Uche Hogh Fenerbahçe
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Além dos atacantes, também chegaria o promissor meia Tarik Dasgün, que acabara de receber suas primeiras chances pela seleção turca, mas que não teria a mais frutífera das carreiras, e o zagueiro dinamarquês Jes Högh, campeão da Copa das Confederações de 1995 (então sob o nome King Fahd Cup). No gol, Parreira já contava com os préstimos do famoso Rüstü Recber.

Um campeonato decidido nos finalmentes


Logo no início de seu trabalho, Parreira teve de lidar com a eliminação da Copa da Uefa, contra o Real Betis. Contudo, ali as coisas já caminhavam bem para o brasileiro. O Fenerbahçe estava invicto no Campeonato Turco. Tudo começou com uma sonora vitória, 4 a 0, ante o Karsiyaka. A sequência sem derrotas só seria terminada na 12ª rodada, contra o Gençlerbirliği.


Naquela altura, os Canários Amarelos já haviam, inclusive, superado os rivais Besiktas, do goleiro alemão Raimond Aumann, ex-Bayern, e o Galatasaray, comandado pelo escocês Graeme Souness e que contava com os gols de Hakan Sükür, na linha de frente. O curioso é que aquela solitária derrota traria ótimos ventos ao lado asiático de Istambul. Isso porque o Fener emplacaria uma sequência de nove vitórias consecutivas e, além disso, um total de 13 jogos de invencibilidade.

O time só voltou a perder uma vez na Liga Turca. Mas foi um resultado amargo. Na casa do Galatasaray, Parreira viu sua equipe conceder dois tentos aos anfitriões. Pior: aquele infortúnio fez com que o time deixasse a liderança do torneio. Ela só voltaria às mãos do time na antepenúltima rodada, depois de uma vitória contra o Trabzonspor. E, somados mais dois êxitos, ante Instanbulspor e Vanspor, o Fenerbahçe conquistou o Campeonato Turco de 1995-96.

Parreira Fenerbahçe
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Além de colocar fim àquela que, até então, era a maior seca da história do clube, o título teria peso especial diante do que aconteceria nos anos seguintes. Os homens de azul e amarelo só voltariam a comemorar um campeonato em 2000-01.

Também não há como evitar mencionar um dos eventos mais loucos daquela temporada. Tendo eliminado Kocaelispor, Gençlerbirliği e Gaziantepspor, o Fener fez a final da Copa da Turquia contra o Galatasaray. Na ida, os Leões venceram por 1 a 0. Na volta, o repetido placar, agora para os Canários Amarelos (gol de Kocaman), levou o jogo para a prorrogação. Então, insanidade. O galês Dean Saunders empatou o jogo e os representantes do vermelho e amarelo foram campeões.


Nas comemorações, levadas à cabo na casa do Fenerbahçe, Souness, o treinador do Gala, levou uma bandeira de seu clube e fixou no meio do gramado rival. Instantaneamente, iniciou-se uma confusão generalizada, um pandemônio. Os campeões ergueriam a taça em meio à proteção policial. Protagonista da noite, Souness se tornou figura sempre lembrada, ocultando muitas vezes a identidade de seu homologo e rival, Parreira.

“O Fenerbahçe era nosso principal rival. Eles sempre pareciam ter uma vantagem sobre nós. Eles tinham Carlos Alberto Parreira [...] Quando cheguei, um diretor do Fenerbahçe escreveu um artigo no jornal dizendo: ‘O que o Galatasaray está fazendo contratando um aleijado?’ [...] plantar a bandeira não fui eu tentando diminuir o Fenerbahçe, fui eu provando um ponto a um cara que foi extremamente rude e desrespeitoso comigo, quando cheguei à Turquia”, disse Souness, em sua autobiografia Football: My Life, My Passion.

Sucesso breve e nova aposta no Brasil


Cansado, adorado e vitorioso, Parreira optou por retornar ao Brasil, após o fim de seu vínculo de apenas um ano. À época, contou à Placar que, na última vez em que foi ao mercado, viu-se cercado por representantes de cinco emissoras de TV, e de 19 jornais, todos ansiosos para registrar uma palavra do campeão nacional. “Não tive tempo de curtir o tetra”, reconheceu o treinador, que logo acertaria com o São Paulo.

Como Didi, Parreira foi à Turquia e retornou ao seu país com um caneco importante na bagagem. O título também acabou sendo uma resposta oportuna, após a passagem fraca pelo Valencia. Curiosamente, o Fenerbahçe tentou renovar a aposta no que tinha dado certo. Para o lugar deixado por Parreira, contratou Sebastião Lazaroni, outro brasileiro, que havia sido o comandante da Canarinho na Copa do Mundo de 1990.

Ele até alcançou uma marca histórica, vencendo o Manchester United, em Old Trafford, pela Liga dos Campeões — colocando fim a uma invencibilidade doméstica de 40 anos, ou 56 partidas, sustentada pelos Red Devils. Honestamente, Lazaroni diria ao final do jogo que não acreditava ter feito um bom jogo, mas uma partida histórica.


Apesar disso, o time sequer avançou de fase na competição continental (caindo em um grupo que tinha, ainda, Juventus e Rapid Viena). Também abandonou rapidamente a Copa da Turquia, nas quartas de finais. Acabou, ainda, o Campeonato Turco em terceiro lugar, em um desfecho bem diferente daquele trilhado pelo time de Parreira.

Seria Zico, anos mais tarde e contando com um time muito superior, o brasileiro responsável por dar continuidade à herança de Didi e Parreira. No caso do último, um trabalho de apenas um ano, com um título. Pode não parecer tanto, mas o peso histórico não pode ser subestimado. Afinal, entre 1989 e 2001, nenhum outro título turco foi comemorado ao som do canto dos Canários Amarelos.

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