O vitorioso Monaco treinado pelo disciplinador Jean Tigana

O Monaco procurava uma nova direção. Era preciso voltar a adubar a terra, depois de viver bons anos sob a direção de Arsène Wenger. Com o Professor, o time vencera a Ligue 1, alcançando o vice-campeonato da Recopa Europeia em 1990-91, chegando às semifinais da Liga dos Campeões, em 1993-94, e contando com jogadores da estirpe de Glenn Hoddle, Jürgen Klinsmann e George Weah. No entanto, naquela altura, fazia-se necessária a implantação de outra cultura. Eram necessários novos ares, que acabariam chegando.

Monaco 1996-97 Ligue 1 Ikpeba Henry Anderson
Foto: ASM/Arte: O Futebólogo


A reestruturação após anos gloriosos


Muito antes de iniciar seu reinado de 22 anos no Arsenal, em 1987, Arsène Wenger assinou contrato com o Monaco. O time do Principado representava sua segunda oportunidade na carreira de treinador — e uma evolução, já que vinha do Nancy, com menores aspirações. Reconhecido por seu perfil estudioso, o comandante levou consigo o frescor da novidade, ao ponto de impressionar até mesmo quem já era experiente:

“Nunca havia visto alguém preparar um treinamento como ele [Wenger] fazia, ele chegava lá horas antes e tudo era absolutamente meticuloso [...] O sistema que ele queria jogar era bem definido, você sabia exatamente qual era sua função [...] Arsène estava muito à frente. Foi simplesmente alucinante”, disse Glenn Hoddle, em entrevista ao portal OTB Sports.

A passagem de Wenger pelo Monaco é considerada, de modo quase unânime, um sucesso. A prataria monegasca foi reforçada com uma conquista da Ligue 1 e outra da Copa da França. O estilo de jogo, criativo, com forte apelo estético, e que privilegiava a exacerbação das qualidades técnicas dos jogadores de maior refino, também chamava a atenção e agradava o exigente público local.

Conforme os anos foram passando, novos jogadores acabariam despontando, como Lilian Thuram e Emmanuel Petit, os dois criados na base da equipe, e Youri Djorkaeff, contratado junto ao Strasbourg. Eles acabaram se somando aos nomes mais experientes e famosos, proporcionando equilíbrio. Acima de tudo, diante da novidade que Wenger representava, percebia-se boa vontade para assimilar o ideário do treinador.

Wenger Arsenal
Foto: ASM/Arte: O Futebólogo

Porém, em algum momento, o gás do time e do mentor acabou. Os dois precisaram se renovar. E o curioso é que, mesmo cortejado por equipes como o Bayern de Munique, e amplamente considerado um dos treinadores mais promissores da Europa, Wenger escolheu uma saída para o futebol japonês. O movimento o ajudaria a relaxar da pressão do futebol europeu para, a seguir, tornar-se um dos maiores treinadores da história do futebol.

“Eu me distanciei da pressão da Europa e voltei com um ponto de vista diferente. Agora, posso tomar mais distância das decisões do que eu conseguia antes”, diria ao site do Arsenal, em 2013. Certamente, a experiência no Monaco havia sido exaustiva e desgastante. Também para o clube, que errou muito até se recolocar em boas condições.

Após Wenger, Jean Petit, Jean-Luc Ettori e Gérard Banide, nomes adorados no Principado, tentaram serenar o ambiente, sem muito sucesso. Foi preciso trazer um forasteiro para o time recuperar suas forças. Então, os monegascos apresentaram um ídolo nacional para a missão: Jean Tigana.

Trabalho, trabalho e mais trabalho


Tigana não era Wenger, o que ficou claro rapidamente. “Ele é um homem muito quieto e privado. Sabe o que quer, e, se ele não conseguir, você não está no time. É simples assim”, contou o escocês John Collins, aos ingleses do The Independent. O professor paciente deu lugar ao disciplinário. “Ele é extremamente exigente, duro consigo mesmo e com os outros, para tirar o máximo de cada um”, diria Éric Di Meco, ao l’Humanité. Diferenças à parte, Tigana fez o que precisava ser feito. E não foi um trabalho fácil.

O francês não encontrou estrelas internacionais como Jürgen Klinsmann, ou Weah. Djorkaeff havia se mudado para o PSG. Claude Puel, bandeira do clube, estava próximo do fim de sua carreira. Havia, entretanto, talentos brutos para lapidar. Também se podia contar com alguns jogadores se aproximando do auge de suas carreiras, como eram os casos de Fabien Barthez e Sonny Anderson. Mas só com uma boa gestão de recursos humanos se poderia alcançar coisas grandes.

O primeiro ano de Tigana, a temporada 1995-96, foi bastante razoável. O Monaco terminou a Ligue 1 com a terceira colocação, teve em Sonny Anderson o artilheiro do certame (21 gols), e somou os mesmos 68 pontos do vice-campeão, o PSG. Porém, na Copa da Uefa, o time parou logo na fase inicial, superado pelo Leeds United.

Sonny Anderson Monaco
Foto: ASM/Arte: O Futebólogo

Para a campanha seguinte, de cara, o clube precisou lidar com um desfalque importante. Thuram, que já era figurinha carimbada na seleção francesa, foi vendido ao Parma. E, curiosamente, o reforço mais caro não teria muita vez no time, o atacante Marco Grassi, vindo do Rennes. 

Foi sem gastar um centavo que Tigana encontrou o que precisava. Do Strasbourg, veio o forte zagueiro Martin Djetou; do Standard Liège, o lateral esquerdo Philippe Léonard; do Dunkerque, o lateral direito Lilian Martin; e do Celtic, o tarimbado meia John Collins.

Esses nomes se juntaram aos dos citados Barthez e Anderson. Além do capitão, o zagueiro Franck Dumas, e de Petit. Os meias Ali Benarbia e Sylvain Legwinski, e também o atacante Victor Ikpeba, seriam outras peças vitais. Isso sem falar nos protagonistas que podiam sair do banco de reservas. Precisando de experiência, Tigana podia lançar o talentoso belga Enzo Scifo; necessitando de juventude, era um certo Thierry Henry a peça mais indicada. Então, começou a saga monegasca.

Um campeonato com marcas expressivas


Ainda sem ter uma ideia formada de qual seria o melhor Monaco possível, Tigana mandou Barthez; Blondeau, Dumas, Grimandi, Léonard; Viaud, Petit, Collins e Scifo; Petersen e Anderson ao gramado do Stade de la Beaujoire, casa do Nantes. Era a estreia da Ligue 1 1996-97. O 3 a 1 foi animador para os representantes do Principado, mas o que se viu a seguir foi instabilidade.

Foram duas derrotas, quatro empates e quatro vitórias nos primeiros 10 jogos. Pouco para quem aspirava a conquista de seu sexto título nacional. Passadas essas jornadas, o time era apenas o sétimo colocado. Mas, no triunfo ante o Rennes, pela 11ª rodada, o onze inicial já estava mais acertado.

Ikpeba já começava a se afirmar como o parceiro de Sonny Anderson no ataque. Djetou assumira seu posto na retaguarda ao lado de Dumas. E Petit já sabia que seria o mais marcador dos meias. Henry e Collins disputavam uma vaga pelo flanco esquerdo da linha de frente monegasca. Até mesmo outro jovem passou a ter algumas escassas oportunidades, tendo em vista o potencial goleador que demonstrava: David Trezeguet. O time acordou.

Monaco 1996-97
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Até o final do campeonato só haveria mais três derrotas, ante Marseille, Metz e Bordeaux. Nunca em um intervalo menor do que cinco partidas. A liderança foi assegurada na 22ª rodada, após triunfo contra o Cannes — e não mais perdida. O time seria assertivo no confronto ante o principal perseguidor, o PSG. O time treinado por Ricardo Gomes, e que tinha em Raí e Leonardo muito talento, não evitou os gols de Legwinski e Anderson, na vitória por 2 a 0, na jornada 24.

Azeitado, o Monaco chegou a ficar invicto por dez partidas, com oito vitórias e dois empates, entre as rodadas 17 e 26. E, com naturalidade, o título chegaria sem que o clube precisasse entrar em campo. Três rodadas antes do término do certame, no dia 3 de maio de 1997, diante de um tropeço do PSG, o alvirrubro do Principado entrou em campo contra o Caen, já campeão. Tigana conseguira.

Dessa vez, Sonny Anderson não conseguiu ser o goleador máximo. Somou 19 tentos, três a menos do que o artilheiro, Stéphane Guivarc'h. Porém, o brasileiro acabou sucedendo Zinedine Zidane, eleito o melhor jogador do campeonato.


A Copa da Uefa quase veio


Paralelamente à disputa da Ligue 1, o Monaco também fez barulho na disputa da Copa da Uefa. Em uma saga marcada por confrontos contra adversários de alta qualidade, os monegascos mostraram que tinham condições de lutar por uma inédita conquista continental. O único desafio fácil encontrado pelos comandados de Tigana foi contra o nanico polaco Hutnik Krakow — vitória na ida e na volta, em um 4 a 1 na soma dos placares.

A primeira das grandes noites europeias do Monaco naquela competição aconteceria em 14 de outubro de 1996. Na casa do Borussia Mönchengladbach, que alinhava o energético Stefan Effenberg, os representantes do futebol francês conseguiram uma vitória importante. O placar bailarino, 4 a 2, indica a dureza do encontro, mas também sugere a qualidade do futebol jogado, naquela que foi a primeira vez em que Henry marcou em uma competição europeia.


No Principado, os alemães venceriam por um insuficiente 1 a 0. Superada mais uma fase, aos alvirrubros foi imposta a presença de outro representante do futebol germânico. Comandado por Felix Magath, o Hamburgo nem viu o que o atingiu. No Stade Louis II, 3 a 0 Monaco; no Volksparkstadion, 2 a 0. O tradicional clube do norte alemão tombou com um placar agregado de 5 a 0.

Destemido, o esquadrão de Tigana teve mais um adversário duro nas quartas de finais. Treinado por Kenny Dalglish, que havia conquistado a Premier League dois anos antes com o Blackburn, o Newcastle trazia como cartaz o vice-campeonato nacional, além do talento de gente como David Ginola, Rob Lee, Faustino Asprilla e David Batty. Outra vez, o Monaco não tremeu nas bases. Deixou o St. James Park com um marginal triunfo, 1 a 0, e surrou os Magpies em seu território, 3 a 0.


Enfim, semifinais. Então, um soco no queixo. No dia 7 de abril de 1997, o Monaco viajou a Milão. E uma conflituosa Internazionale, liderada por Roy Hodgson, fez o dever de casa. Maurizio Ganz e Iván Zamorano garantiram um impositivo 3 a 1 para os Nerazzurri. Na volta, faltou um gol. Ikpeba garantiu a vitória monegasca, 1 a 0. Insuficiente. A Inter vencera e acabaria sendo vencida pelo Schalke 04 na final.

O sucesso continuou, mesmo com muitas mudanças


Tigana permaneceria no Monaco até 1999. Seria cotado para substituir Aimé Jacquet no comando da França, após o título mundial, em 1998. O que recusou prontamente, garantindo que “depois do Monaco, gostaria de passar dois ou três anos no estrangeiro antes de voltar e dedicar-me aos meus filhos”, como reportou o UOL. Os holofotes foram merecidos.

Nas duas temporadas que se seguiram ao título francês, o Monaco terminou o certame nacional em terceiro e quarto lugares. Em 1997-98, venceu a Supercopa da França e viveu o mais saboroso de seus devaneios. Se Sonny Anderson partira para o Barcelona, e Petit para o Arsenal, Trezeguet se apresentou pronto para ocupar a vaga deixada pelo brasileiro, não decepcionando, e o time conseguiu contratar muitos reforços — gente como Djibril Diawara e Willy Sagnol.

David Trezeguet Monaco
Foto: ASM/Arte: O Futebólogo

Classificado para a disputa da Liga dos Campeões, o Monaco foi sorteado para o Grupo F, junto dos portugueses do Sporting, os alemães do Bayer Leverkusen e os belgas do Lierse. E o time de Tigana nadou de braçada. Com quatro vitórias, um empate e uma derrota, liderou a disputa e avançou em condições favoráveis aos mata-matas. Ao menos em tese, porque a realidade foi duríssima. Mas o Monaco enfrentou com hombridade.

Nas quartas de finais, recebeu o poderoso Manchester United. E garantiu um histórico 0 a 0, freando David Beckham e companhia. Na volta, no mítico Old Trafford, Trezeguet marcou logo aos cinco minutos. Ole Gunnar Solskjaer empataria, não conseguindo evitar o avanço monegasco, no critério do gol fora de casa. Ali, o Monaco fazia história. Outra vez, era semifinalista da mais disputada competição de clubes da Europa.


“O treinador do Monaco, Jean Tigana, desempenhou um papel importante. Ele personificou uma verdadeira figura autoritária. Com o Thierry Henry, ficamos encarregados de levar as garrafas de água para os treinos e de ir recuperar as bolas que caíram atrás dos gols. Mesmo depois de nossa vitória na Copa do Mundo de 1998, continuamos com essas tarefas, pois, independentemente de nosso status de campeões, continuamos a ser filhos no grupo monegasco. Esse respeito à autoridade tem sido minha linha de conduta para não me dispersar e me manter no nível superior”, recordaria Trezeguet, anos mais tarde, em entrevista ao Le Point.

Em seu caminho, entretanto, apareceu outro italiano. Se a Inter pôs fim ao sonho alvirrubro na Copa da Uefa um ano antes, agora foi a Juventus quem apagou a chama do Monaco. Em Turim, Alessandro Del Piero anotou uma tripleta e Zidane ainda deixou o seu tento. Resultado: 4 a 1 para Juve, Costinha tendo diminuído para os homens do Principado, cuja força foi mostrada até a última hora.


Na volta, Léonard, Henry e Robert Spehar deram a vitória ao Monaco, 3 a 2. Obviamente, não foi suficiente, mas o placar não deixou de demonstrar o forte caráter daquele time, duro na queda até o final. 

A transição com a saída de Tigana, seria tranquila. Puel voltaria para casa, para seu primeiro trabalho como treinador e logo recolocaria os monegascos no lugar mais alto do futebol francês. Dali, o time avançaria aos anos dourados com Didier Deschamps, quase sempre bem.

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