Direto de 1978: A festa dos Cerveceros do Quilmes

O dia 29 de outubro de 1978 terá sempre lugar de destaque na história do Quilmes. Não há torcedor que não saiba do que a data se trata. Na tarde daquele domingo primaveril, aproximadamente 20 mil apaixonados viajaram a Rosário, lotando o Gigante de Arroyito. Ali, o Decano já tinha quase 90 anos, e, considerando a era profissional, a partir dos anos 1930, nunca havia atingido o olimpo do futebol argentino. Até aquele dia.

Quilmes Metropolitano 1978
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Campeonato esvaziado?


Em 1978, como em vários outros anos de sua história, o Campeonato Argentino foi dividido em dois: Metropolitano e Nacional. Em março, iniciou-se a disputa do primeiro. No entanto, a competição não chegou a mobilizar o povo. Um torneio nacional com escassa audiência na Argentina? Sim. E com uma razão óbvia: no princípio de janeiro, a seleção do país começou a sua preparação para a disputa da Copa do Mundo daquele ano.

Sem contar com seus astros selecionáveis, e vivendo expectativa quanto à disputa de um Mundial em casa, o que se viu foi um torneio esvaziado. O Metropolitano de 1978 registrou os menores públicos da história do futebol profissional argentino, com média de 3.883 ingressos vendidos por partida. Foram 15 as rodadas disputadas antes do início da Copa, fato que interrompeu a disputa nacional, a partir de 21 de maio. Quando tal aconteceu, não havia o menor sinal de que aquele ano teria desfecho favorável ao Quilmes.

O time da região metropolitana de Buenos Aires até estreou com vitória no Viejo Gasómetro, 2 a 1, frente ao San Lorenzo (doblete de Luis Andreuchi). Também superou o All Boys na rodada seguinte. Porém, logo conheceu a instabilidade. Até a citada paralisação do certame nacional, o Decano sofreria quatro derrotas e empataria também quatro vezes, vencendo cinco encontros. Seria nesse interregno que o clube decidiria mudar de direção, trazendo um velho conhecido de volta.

Yudica Quilmes
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O treinador José Yudica, que mais tarde venceria a Copa Libertadores da América com o Argentinos Juniors, havia sido o responsável por ajudar o Quilmes a evitar o rebaixamento no ano anterior. Seu retorno foi uma medida tomada diante da necessidade. Na nona rodada, após uma derrota para o fraco Estudiantes de Buenos Aires — que acabaria rebaixado —, o clube abriu mão da dupla Óscar López e Óscar Caballero, optando pelo retorno do antigo mestre.

O objetivo da mudança era apenas um: outra vez, evitar o descenso. Mal se sabia que o melhor estava por vir. E que a paralisação para a disputa da Copa do Mundo seria tão oportuna. 

Yudica teve tempo de reencontrar seus antigos comandados, devolver-lhes o ânimo, instigar-lhes um novo senso de companheirismo e disciplina, e trabalhar a parte física, com treinos na costa local, em pleno inverno. “Yudica sempre te fazia se sentir o melhor”, diria Andreuchi anos mais tarde, à Cadena 3.

Superando o Boca Juniors campeão continental


No dia 2 de julho, o Quilmes reiniciou sua jornada naquele torneio Metropolitano. Imediatamente, correspondeu, superando o Huracán em casa, no mais tarde demolido Estadio de Guido y Sarmiento.

Com seus três principais pilares em bom momento, o time foi crescendo. Andreuchi mostrou suas garras artilheiras; Horacio Milozzi se provou um zagueiro firme, viril e com tino para o gol (seriam 10 na campanha); e Indio Omar Gómez, lembrado por usar chuteiras brancas, desequilibrou com o talento que lhe renderia o posto de maior ídolo da história do Quilmes. Também um jovem de nome Jorge Gáspari conquistaria espaço, vindo a ser convocado para a Albiceleste em 1979.

A sequência após a parada foi excepcional. Foram cinco partidas de invencibilidade, até a desforra do San Lorenzo, na 22ª rodada. E depois de perder também para o All Boys, o Quilmes emplacou outra série de resultados positivos, com mais sete partidas sem perder. É importante que se diga: os Cerveceros tiveram bom desempenho ante os dois melhores times do torneio. Venceram o Unión e empataram com o Boca Juniors, os dois jogos em casa.

Vale dizer, também, que embora não tenha tido jogadores convocados à disputa do Mundial de 1978, os Xeneizes, treinados por Juan Carlos Lorenzo, eram os campeões vigentes da Libertadores (também do mundo) e voltariam a conquistar a América naquele mesmo ano. Apesar de ter melhorado muito o seu desempenho com Yudica, nove rodadas antes do final do Metropolitano, o Quilmes ainda precisava superar uma vantagem de cinco pontos do time de La Boca, em um tempo em que a vitória somava apenas dois pontos.

Boca Juniors Intercontinental 1977
Foto: Goal/Arte: O Futebólogo

A despeito de toda a dificuldade, o Decano fez acontecer. 

Na penúltima rodada, assumiu, enfim, a liderança. Com seis vitórias (a última delas contra o Chacarita) e um empate, perdendo somente uma vez, perante o Huracán, o Quilmes somou 13 pontos. Já o Boca, a partir de duas vitórias, três empates (incluindo uma igualdade inesperada contra o quase rebaixado Estudiantes de Buenos Aires) e três derrotas, alcançou somente sete. 

Miraculosamente, os comandados de Yudica haviam somado seis pontos a mais do que seu poderoso e famoso adversário.

Na rodada final, o Quilmes dependia apenas de suas forças, mas vinha sofrendo com uma importante ausência: Indio Gómez não reunia suas melhores condições físicas e vinha de uma suspensão de cinco partidas.

O desfecho rosarino


Curiosamente, coube aos rivais rosarinos participar da decisão do título nacional. Em La Bombonera, o Boca Juniors recebeu o Newell's Old Boys. No Gigante Arroyito, o Rosario Central aguardava o Quilmes. Ciente de que reescrevia sua própria história, o Decano providenciou as melhores condições para o desfecho daquela epopeia. O jogo aconteceria apenas no domingo, mas o time viajou para Rosário na quinta-feira.

Estava tudo em aberto. Um empate em pontos provocaria a disputa de uma partida de desempate, algo que os Cerveceros queriam evitar, não importando o custo. Se o campeonato havia exibido arquibancadas vazias em vários momentos, naquele dia 29 de outubro, o Gigante Arroyito pulsava, com certa de 20 mil vozes quilmeñas se misturando no cimento da chancha rosarina.

Quilmes Rosario Central 19787
Foto: El Gráfico/Arte: O Futebólogo

Foi diante disso que a famosa revista El Gráfico não teve outro caminho senão reconhecer uma reviravolta no apagar das luzes daquele campeonato: “O que foi um Metropolitano chato, enfadonho e cansativo, tem um final espetacular, dramático e vibrante como poucos”. Aliás, às vozes da hinchada do Quilmes, somou-se, claro, a chuva de papel picado, prática cuja origem, em 1961, vincula-se também à torcida do time da região metropolitana de Buenos Aires.

“O Metropolitano de 78 foi o acontecimento mais lindo que pude viver, me lembro dele como se fosse hoje. [O Quilmes] É o clube que amo e, dia após dia, me sinto mais feliz de ser parte dele”, diria Milozzi, ao Clarín, em 2012.

Chegou a hora da decisão. O time de futebol mais antigo da Argentina ainda em atividade (embora haja uma disputa com o Gimnasia y Esgrima) lutava por seu primeiro título de elite na era profissional do futebol nacional. E dependia apenas de suas forças, o que poderia ter sido um peso a mais. Ou assim deve ter pensado o torcedor do Decano, ao ver Guillermo Trama abrir a contagem para o Rosario Central, enquanto o Boca também saía na frente do Newell’s.

De pênalti, Andreuchi socorreu o clube chico, mas, pouco depois, também em cobrança penal, Félix Orte voltou a colocar os Canallas em posição de superioridade no placar. No entanto, a marca da cal vivia uma noite de protagonismo. Um minuto depois, Andreuchi converteu outra penalidade máxima, sinalizando uma nova igualdade no marcador: 2 a 2. E a parada foi resolvida logo.

Quatro minutos depois do empate, dos pés de um herói improvável, veio a vantagem do Quilmes. Um canhotazo de Gáspari pegou o goleiro Ricardo Ferrero desprevenido. Enfim, 3 a 2. Os placares da Bombonera e do Gigante Arroyito não voltariam a ser alterados. As 20 mil pessoas que haviam viajado a Rosário podiam voltar em paz para casa, a viagem de mais de 350 quilômetros não tinha sido em vão: o Quilmes era campeão argentino.


De volta para a realidade


A campanha de 22 vitórias, 10 empates, oito derrotas, 53 gols favoráveis e 41 contrários, foi eternizada. Também porque, ao lado de um certo Diego Armando Maradona, Luis Andreuchi terminou a disputa como artilheiro máximo. O goleador somou 21 tentos, sendo o responsável por 40% das bolas que o Quilmes colocou nas redes rivais. Apesar disso, o sonho não durou muito tempo.

A campanha no Nacional de 1978 seria medíocre, com o clube ficando muito distante do acesso à fase de mata-matas, peculiaridade daquele torneio com um jeitão de copa e que seria vencido pelo Independiente. Em 1980, apenas dois anos após alcançar o ápice de sua história, o Quilmes acabaria rebaixado, retomando, assim, sua reputação de equipe “ioiô”, circulando entre as principais divisões do país. Naquela mesma década, chegaria a jogar a terceirona.

E a Copa Libertadores da América de 1979? Pois bem. Classificado à disputa continental, o Quilmes seria colocado em um grupo dificílimo. Era preciso superar os compatriotas do Independiente, e os colombianos do Millonarios e do Deportivo Cali. O Decano não passou nem perto de alcançar esse objetivo. Perdeu cinco dos seis jogos que disputou, terminando o Grupo 1 na última colocação e sendo, rapidamente, eliminado.

Pouco depois, Piojo Yudica deixaria o clube pela terceira vez, a segunda como treinador. Andreuchi seria outro a sair, rumando ao Panathinaikos. Já Indio Gómez sequer chegou a disputar a Libertadores, vendido aos estadunidenses do Dallas Tornado, insolitamente um time de futsal, para que o Quilmes pudesse equilibrar suas contas. Voltaria mais tarde para ajudar o time a abandonar a terceira divisão.

Indio Omar Gomez Quilmes
Foto: Clarín/Arte: O Futebólogo

No entanto, nada disso tornou o sabor daquela conquista tão sonhada agridoce. Havia ali mais do que simplesmente o orgulho de vencer um título inédito e inesperado: 

“Sai das categorias de base e ganhei campeonatos, isso fez com que a gente gostasse muito de mim. Vivo na cidade, sou um cara simples, humilde, estou atento a tudo o que acontece. Amo o Quilmes”, revelaria, anos depois, Indio Gómez ao Clarín.

Em 1978, Yudica convenceu os jogadores de que era possível vencer, mesmo que durante um período curto. A causa dos Cerveceros foi abraçada por todos, transformando um campeonato que tinha tudo para ser apenas mais um, eclipsado pelo Mundial de 1978, em um acontecimento memorável.

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