Os anos dourados do Bragantino

Era o final dos anos 1980, quando, na terra da linguiça, um time de futebol despertou de seu sono profundo. O Bragantino vivera bons dias duas décadas antes, conquistando o Paulistão A2 e, com ele, o direito de jogar a primeira divisão de seu estado. Mas o sucesso não duraria muito, com péssimos anos 70. Com efeito, enquanto o Brasil se libertava da Ditadura Militar, o Massa Bruta foi deixando seus anos de chumbo para trás. Houve títulos e campanhas importantes. Foram anos dourados.

Bragantino 1990
Foto: Gazeta Press/Arte: O Futebólogo

Ordem na casa: acessos


Depois de flertar com seu próprio fim na década de 1970, o Bragantino viveu anos 80 de recuperação. Comandado pela família Abi Chedid, de origem libanesa, o Braga reescreveu sua história naquela década. E as coisas poderiam até ter caminhado mais rapidamente. Com o título do terceiro escalão estadual em 1979, o Massa Bruta retornou à Série A2 em 1980. Dois anos depois, terminou com o vice-campeonato. 

Porém, o acesso à elite paulista não era automático e seria disputado com o penúltimo colocado da primeira divisão, o XV de Jaú. Depois de muita polêmica e ameaças de ingresso à Justiça, já em 1983, e com a disputa da segundona em curso, os clubes se enfrentaram. O Galo da Comarca se superiorizou. Os homens de Bragança Paulista foram condenados a uma espera maior.

É de se destacar que, no período, a Federação Paulista de Futebol chegou a ser presidida por ninguém menos do que Nabi Abi Chedid, o chefão do Bragantino, também famoso no ambiente político, tendo servido 10 mandatos de deputado estadual consecutivos. O mandatário passaria, ainda, pela vice-presidência da CBF.

Nabi Abi Chedid Bragantino
Foto: Gazeta Press/Arte: O Futebólogo

Anos mais tarde, o acesso aconteceria. Especificamente, em 1988. 

Depois de conseguir a melhor campanha da fase inicial da A2, o Massa Bruta arrancou um placar agregado de 5 a 0 ante o Catanduvense e voltou à elite paulista. A partir dali, os progressos seriam velozes e notáveis. No Paulistão de 1989, o Bragantino avançou às semifinais, quando foi parado pelo São Paulo — que se afirmaria uma pedra em seu sapato. 

Naquele mesmo ano, o clube conquistou outro impressionante acesso, agora à primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Invicto, liderou o Grupo I da Divisão Especial, dividido com São José-SP, Volta Redonda, Novorizontino, Passense e Santo André. Depois, o Braga foi implacável nos mata-matas. 

Superou outra vez o Catanduvense, bateu o Juventus da Mooca, eliminou o Criciúma, conseguiu uma suada classificação contra o Remo nas penalidades máximas e, na decisão, reiterou sua superioridade ante o São José-SP. O jogo fatal, disputado em 20 de dezembro de 1989, contou com a presença de 6.723 torcedores no estádio Marcelo Stefani. 

Gazeta Bragantino São José

Convém dizer que aquele time contava com a liderança de um certo Vanderlei Luxemburgo na casamata. O treinador carioca foi contratado em 1989, depois de uma passagem pelo Al-Shabab, dos Emirados Árabes. 

À época, também houve investimentos na infraestrutura do clube e, acima de tudo, no elenco. Registre-se: o Bragantino conseguiu um negócio da China. Enviou o zagueiro Victor Hugo ao Guarani, recebendo como contrapeso um pacotão de jogadores, envolvendo os zagueiros Nei e Júnior, o lateral direito Gil Baiano, o volante Mauro Silva, o meia Zé Rubens e o atacante Mário. Sem espaço no Vasco da Gama, Tiba chegaria por empréstimo. Estratégia semelhante a essa viria a se repetir nos anos seguintes. 

“Queríamos jogadores jovens, com potencial, que não estavam sendo aproveitados nos grandes clubes. Os grandes clubes tinham muitos jogadores e não usavam todos. Fomos atrás dessas promessas. Implantamos a filosofia que os jogadores não precisavam sair do clube para ser grande. Eles poderiam fazer o Braga grande e, consequentemente, crescer também. Foi um grupo maravilhoso, determinado, com jogadores de muito caráter. É um time que queria muito vencer”, recordou Marco Antônio Chedid, ao GE

Um Paulistão histórico


Agora time de elite estadual e nacional, o Bragantino pôde aumentar suas ambições. Se havia sido semifinalista do Paulistão de 1989, por que não poderia pensar em título em 1990? Com um detalhe, não havia pressão: “As referências sempre foram os grandes, São Paulo, Corinthians, Palmeiras, Santos, a visibilidade sempre foi deles”, comentou o volante Pintado, ao GE

Para essa missão, o clube voltou a se reforçar, tendo tido como grande contratação o atacante Mazinho, que ficaria conhecido como Mazinho II (para evitar confusão com o polivalente tetracampeão mundial). Luxemburgo permaneceu à frente do projeto. 

Mazinho Bragantino
Foto: Bragantino/Arte: O Futebólogo

Inchado, o Paulistão de 1990 teve 24 equipes. Em um primeiro momento, elas foram divididas em dois grupos, um mais forte e outro mais fraco. Os times disputavam dois turnos, o primeiro contra os integrantes do grupo do qual não faziam parte e, após, entre os seus. Os 12 melhores classificados avançavam, e os outros disputavam uma repescagem da qual os dois melhores também avançariam à terceira fase. Esta voltaria a dividir os classificados em dois grupos. Os finalistas seriam os campeões de cada um deles.

Colocado no Grupo I, o dos times mais poderosos, o Bragantino fez bonito desde o princípio. Terminou a fase inicial em terceiro lugar, atrás apenas dos rivais paulistanos Corinthians e Palmeiras. Porém, o verdadeiro brilho veio na terceira fase. O Massa Bruta disputou o Grupo Preto, com Corinthians, Santos, Botafogo de Ribeirão Preto, Ituano, Mogi Mirim e XV de Jaú. A campanha foi quase perfeita, com sete vitórias, quatro empates e apenas uma derrota.

O clube assumiu a liderança do grupo na penúltima rodada. Corinthians e Santos empataram, permitindo a subida do Braga, que vencera o Botafogo. Os homens de Bragança Paulista só dependiam de suas forças na partida final. E bastava empatar, já que o jogo seria contra o Corinthians, vice-líder e único clube capaz de roubar a vaga. Foi o que aconteceu: igualdade sem gols. O Bragantino estava na final.

Vanderlei Luxemburgo Bragantino
Foto: Gazeta Press/Arte: O Futebólogo

O que não se esperava era que também o Grupo Vermelho presenciasse a ascensão de uma força do interior. O Novorizontino, treinado por Nelsinho Baptista, sofreu na antepenúltima rodada, ao perder para o Palmeiras, que assumiu a liderança. Porém, na rodada seguinte, o clube bateu o América, vendo o Guarani salvar sua pele, ao superar os palestrinos. No final, com mais sorte do que juízo, o Novorizontino foi adiante: empatou com a Portuguesa. A questão é que o Verdão não conseguiu superar a Ferroviária. Assim, a decisão caipira se desenhou: de um lado, Bragantino; do outro, Novorizontino. 

Destaquem-se alguns nomes que ganhariam fama e representavam a equipe de Novo Horizonte, figuras como a do zagueiro Márcio Santos, do goleiro Maurício, do volante Luís Carlos Goiano e do atacante Paulo Sérgio.

A tensão da decisão


"Vocês conhecem a história da Copa de 1950? Não caiam nessa armadilha de que o Novorizontino está satisfeito com o vice. Se for preciso, vamos suar sangue”, disse Vanderlei Luxemburgo antes da decisão. Recorde-se que, por deter a melhor campanha, o Bragantino podia jogar por dois resultados iguais. E isso serviu de motivação para Nelsinho Baptista: “Vocês lembram da decisão de 1988 entre Guarani e Corinthians? O Guarani tinha mais time e só precisava empatar. Mas o Corinthians não desistiu, foi guerreiro até o fim e Viola marcou o gol do título na prorrogação”, recordou reportagem do portal Terra.

“O clima era de otimismo, a gente tinha acabado de classificar para a final, classificamos em um grupo que tinha Corinthians, Santos, mais especificamente eliminamos o Corinthians para chegar na final, então havia uma confiança muito grande por conta dessa classificação, euforia, até saímos da cidade, fomos para Atibaia, para sair desse clima de euforia”, contou o goleiro Marcelo Martelotte, ao GE.

A decisão começou a ser disputada no dia 22 de agosto de 1990, no Estádio Jorge Ismael de Biasi. O Bragantino tinha um desfalque importante: o zagueiro Nei estava fora, lesionado. Na oportunidade, o meia Edson abriu a contagem para o Novorizontino, na etapa inicial. Nos 45 minutos finais, coube ao lateral Gil Baiano assegurar a igualdade para o Massa Bruta, que, assim, preservou sua vantagem. 

“Não fizemos um grande jogo”, reconheceu Luxa à Folha. É de se destacar que o Bragantino jogou em frangalhos. O fisioterapeuta Luiz Rosan confirmaria que Mazinho, Mauro Silva, Tiba, Mário, Ivair e Biro-Biro tinham lesões, que foram ocultadas do público. Um risco calculado que eles próprios estavam dispostos a assumir: “Numa final, a gente supera todas as dores”, garantiu Mauro Silva.

O roteiro da segunda partida, jogada quatro dias depois, acabaria sendo parecido: Fernando abriu o placar para os homens de Novo Horizonte e, tal como profetizado por Luxemburgo, Tiba garantiria o título do Bragantino. “Eu lembro que quando estávamos prontos para ir a campo, o preparador físico junto com o Vanderlei e o médico me chamaram e disseram que eu ia fazer o gol do título. E foi o que aconteceu”, contou Tiba, ao GE


A festa, como não poderia ser diferente, foi imensa, mas Luxemburgo não queria saber de acomodações, havia mais conquistas a buscar: “Precisamos administrar corretamente esse título. A vinda de um craque seria o pulo do gato para mostrar que somos realmente grandes", disse Luxemburgo após o triunfo, como lembrou o Estadão. Porém, deixou uma situação no ar: "Técnico não deve ficar mais do que dois anos num time para não viciar a estrutura".

No Brasileirão de 1990, o Bragantino teria um desempenho sólido, sobretudo considerando que vinha da segundona. O Massa Bruta conseguiu se classificar aos mata-matas. Mas, nas quartas de finais, foi parado pelo Bahia. Nada mal. Porém, Luxa acabaria acertando sua saída para o Flamengo. "O Luxemburgo fez toda a diferença. Éramos uma equipe agressiva, vertical. Saíamos em velocidade e marcávamos alto. Hoje isso é comum de se ver, mas na época foi inovador, ainda mais pra um time do interior", comentou Mauro Silva ao site oficial do Bragantino

Naquele ano, os laterais Gil Baiano e Biro-Biro, o meia Tiba, além do atacante Mazinho, receberam o prêmio Bola de Prata, entregue pela revista Placar.

Com Parreira, o quase no Brasileirão


Sobe a placa de substituições: sai Luxemburgo, entra Carlos Alberto Parreira. Campeão Brasileiro com o Fluminense em 1984, o treinador estava comandando a seleção dos Emirados Árabes, tendo sido anunciado pelo Massa Bruta em 26 de dezembro de 1990. “Estou acertando com o Bragantino porque tenho certeza de que terei espaço e infraestrutura para desenvolver um bom trabalho”, comentou à Folha. Com ele, viriam o médico Marco Aurélio Cunha e o preparador de goleiros Nielsen Elias.

Parreira Bragantino
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Naquele momento, o investimento do clube, conforme confirmado pela Folha, era de aproximadamente um milhão de dólares por ano, o que levaria o periódico mencionado a chamar Nabi Abi Chedid de “Berlusconi Caipira”. “O clube está sendo administrado como uma empresa, tem um tratamento profissional. E, ao contrário do que acontece em vários clubes, não há interferências na sua direção”, garantiu o dirigente, à época. 

Somente na contratação do atacante Alberto, ex-Ituano e um dos artilheiros do Paulistão de 1990, o clube gastou 400 mil dólares.

Em 1991, a ordem das competições foi alterada. Primeiro, jogou-se o Brasileirão; depois, o Paulistão. Assim, o Massa Bruta colocou a competição nacional em foco, depois de uma pré-temporada em Águas de Lindóia. Naquele ano, o certame teve uma fórmula simples: eram 20 times, que se enfrentavam em turno único. Os quatro primeiros se classificavam às semifinais. O melhor colocado enfrentava o quarto, segundo e terceiro decidindo a outra vaga à decisão.

O Braga fez um torneio exemplar. Terminou a fase inicial em segundo lugar, mas com os mesmos pontos do líder São Paulo. Teve também a melhor defesa, que concedeu apenas 14 gols, em 19 jogos, e o terceiro melhor ataque, autor de 27 tentos — ficando atrás apenas de Fluminense e Atlético, os outros classificados às semis. O estilo de liderança de Parreira, calmo e, portanto, diametralmente oposto ao de Luxemburgo, também fez sucesso em Bragança Paulista.

Berlusconi Caipira

“Tínhamos uma defesa muito boa [...] Foi o Luxemburgo que montou essa característica, de marcação forte e contra-ataques perigosos. E ele deixou para o Parreira essa base. O Parreira trabalhou mais a nossa parte técnica, com repetições. Os dois foram muito importantes”, lembrou Biro-Biro, ao site oficial da CBF.

Nas semifinais, por deter melhor campanha que o Fluminense, o Bragantino defendeu uma vantagem de dois empates. Isso significava que uma vitória na partida de ida decidiria o desfecho do encontro. “Para o Parreira, esse jogo com o Fluminense é como qualquer outro. Ele se sente até mais tranquilo quanto mais difícil é a partida”, disse Mazinho, à Folha.

Do lado do Tricolor Carioca, não havia menosprezo à ocasião: “Vai ser fogo”, garantiu o zagueiro Alexandre Torres. O jogo marcava ainda a chance de “refugos” do Flu mostrarem seu valor. Preteridos pelos cariocas, Sílvio, Carlos André, Ronaldo Alfredo, João Santos, Alberto, Robert e Franklin integravam o elenco do Bragantino, com destaque. 

Brilho no Maracanã e queda


Com seu clássico uniforme cinza, branco e preto, com detalhes poligonais, o Bragantino chegou ao Maracanã confiante em um bom resultado. “Teve uma motivação a mais sim, principalmente os jogadores que foram liberados por não terem muita utilidade no Fluminense”, contou Biro-Biro. E se o regulamento era favorável à agremiação caipiria, por que não usá-lo? “O Parreira quis jogar com o regulamento. E essa possibilidade de classificar direto era importantíssima”, completou o antigo lateral esquerdo. 

No dia 26 de maio de 1991, 80.449 pessoas (74.781 pagantes) abarrotaram o Maracanã. O Flu não vivia grandes dias, mas havia esperança, depositada acima de tudo nos pés de Bobô e Ézio. Quando parecia que a contenda teria um segundo capítulo, surgiu Franklin, reclamando o direito de provar que de renegado não tinha nada. Vindo do banco, anotou o solitário tento da partida, aos 43 minutos do segundo tempo. Ainda havia um jogo por jogar, mas o Massa Bruta já estava na final do Brasileirão. 


A partida no Rio de Janeiro estabeleceu o recorde de público do campeonato até então. E houve cenas raras e que confirmam a dimensão dos feitos do Bragantino. 

Derrotados, os torcedores do Tricolor aplaudiram de pé o valente rival. Até mesmo o eterno ídolo português, Eusébio, aplaudiria os feitos do Braga: “O Bragantino é um time melhor organizado, ao contrário do Fluminense, muito lento e que deixa espaços demais para o adversário jogar”, registrou a Folha. Na desinteressante partida de volta, os adversários ficaram no 1 a 1. 

Após eliminar o Galo, o São Paulo era quem estava no caminho do Bragantino — novamente, como nas semifinais do Paulistão de 1989. Ali, acabou o sonho do time de Bragança Paulista. Seria um solitário tento de Mário Tilico, no jogo de ida, disputado no Morumbi, o responsável por sentenciar o Bragantino. No Marcelo Stefani, haveria empate por 0 a 0, lembrado pelas mudanças táticas de Telê Santana, ao escalar Cafu no meio-campo e Zé Teodoro na ala direita. “Faltou poder de penetração e poucas chances foram criadas”, comentou Parreira à Folha.


Apesar disso, a derrota não acabou com os ânimos do time. “A sensação é maravilhosa, não só porque foi um Brasileiro em si. Mas porque já vínhamos de muita alegria. Fomos campeões durante anos seguidos, em 1988, 89 e 90. E ainda chegar no Brasileiro de 91 e ser vice, com a mesma base nesses anos”, comentou Biro-Biro, na comentada conversa veiculada pela CBF. 

Naquela altura, Nabi Abi Chedid garantiu que a derrota não se tratava do fim da linha: “Vamos buscar o bicampeonato paulista [...] O trabalho está aí para ser comprovado. Tiramos o time da terceira divisão e veja onde chegamos [...] só o fato de estar numa decisão já é uma glória”, asseverou o chefão, também à Folha

Em mais um turno, vários nomes do Braga receberam a Bola de Prata: o goleiro Marcelo, Gil Baiano, Mazinho e Mauro Silva, o Bola de Ouro da vez.

Bragantino projeto continua

O vice-campeonato foi celebrado com festa pela torcida do Massa Bruta. Entretanto, o clube não demorou a cair. O Bragantino não conseguiu chegar às fases decisivas do Paulistão de 1991, o que se repetiria nos anos seguintes, até o rebaixamento, em 1995. 

O bom momento seria, entretanto, mantido no Brasileirão, com campanhas sólidas, mesmo que sem os bons resultados do início da década — até 1996, quando o time foi inquestionavelmente rebaixado à Série B. Todavia, haveria uma virada de mesa na Hora H e o clube ganharia sobrevida. Também escaparia do descenso em 1997, terminando na primeira posição fora da zona da degola. Porém, não resistiria em 1998.

A partir de então, o time experimentaria oscilação até o final da década de 2010, quando uma parceria com a empresa Red Bull resgatou o Massa Bruta do marasmo. Apesar de ter havido queixas quanto à descaracterização do clube a partir do dito pacto, o certo é que o que foi feito não se apaga. O Bragantino esteve no topo do futebol brasileiro no começo dos anos 1990.

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