Lens 1997-98: Quando a França se banhou em sangue e ouro

Se as duas primeiras décadas do século XXI entregaram à França duas hegemonias futebolísticas, através de Lyon e Paris Saint-Germain, a história foi bem diferente nos anos 1990. Quando se desenhou a temporada 1997-98, Olympique de Marseille, PSG, Nantes, Auxerre e Monaco já haviam conquistado a Ligue 1 no incompleto decênio. As disputas andavam abertas. Era o cenário perfeito para um time deixar de jejuar. Estava na hora da cidade de Lens celebrar.

RC LENS LIGUE 1 CHAMPIONS 1997-98
Foto: La Voix du Nord/Arte: O Futebólogo


Pegando o elevador com Gervais Martel


Em 1988, o Racing Club de Lens andava mal. Escapara por pouco do rebaixamento, na campanha anterior. Aquela era uma nova descendente para o clube que, no começo da década, chegara a disputar competições europeias. Porém, não chegava a ser uma realidade desconhecida. 

Os Sang et Or foram fundados em 1906, detendo, desde as primeiras primaveras, uma relação estreita com as múltiplas minas de carvão da cidade e a classe operária local. Isso foi visto, por exemplo, quando o time foi representado quase exclusivamente por poloneses, após a Primeira Grande Guerra. Os polacos haviam emigrado em busca de trabalho nas minas, encontrando uma cidade em frangalhos, destruída durante o conflito. 

Também foi o que aconteceu na parte final dos anos 1960. Com o carvão vivendo a crise que levaria ao encerramento de todas as minas da região de Nord-Pas-de-Calais nos anos 1980, o clube chegou a frequentar divisões amadoras.

Gervais Martel Lens
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O constante sobe e desce do clube não era, pois, novidade. Então, em 24 de agosto de 1988, algumas coisas começaram a mudar no Lens. O empresário Gervais Martel assumiu o comando do clube, iniciando uma reestruturação profunda, que passaria, inicialmente, pelo enxugamento da dívida do clube. O resultado imediato foi um rebaixamento inquestionável em 1988-89. Os Artésiens carregaram a lanterna de modo inapelável — 17 pontos atrás do penúltimo colocado.

O caos esportivo duraria pouco, entretanto. Depois de uma temporada mediana na Ligue 2, em 1990-91 o clube retornou à elite. O acesso não seria desperdiçado. Já na campanha de volta, o Lens fez um ano sólido. Terminou com a oitava colocação, somando cinco pontos a menos do que o necessário para uma classificação às fases preliminares da Copa da Uefa. O esforço de reconstrução estava em marcha.

Album Lens 1997-98
Foto: Twitter @OldSchoolPanini

Aos poucos, o time começou a se organizar ao redor de uma base sólida de jogadores. Naquela altura, já haviam sido revelados os zagueiros Frédéric Déhu e Jean-Guy Wallemme, futuro capitão da esquadra — além do lateral direito Eric Sikora, de ascendência polonesa. Em 1992-93, chegaria o goleiro Guillaume Warmuz, trazido do modesto Louhans-Cuiseaux FC.

A partir de 1994-95, seria a vez de o camaronês Marc-Vivien Foé assumir um lugar no onze inicial artesiano. No ano seguinte, do Nancy viria o jovem atacante Tony Vairelles, que acabara de representar a França nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Por fim, o beque e lateral esquerdo Yoann Lachor apareceria entre os profissionais, e uma grande contratação viria direto do futebol tcheco. Após fazer ótima Euro 1996, Vladimir Smicer se juntou aos Sang et Or.

“Foi a transferência perfeita para a minha carreira. Eu tive suporte dos chefes, do time, dos torcedores. O futebol é tudo para eles. Eu não precisava do sol, da diversão, só precisava do futebol. O Campeonato Francês é melhor do que o Tcheco, eu estava aprendendo a cada partida. Durante três anos, me tornei um jogador melhor. Mesmo como homem, a mudança me deu mais confiança. Talvez em Lens não haja sol, não haja mar, mas há coração”, disse Smicer à revista So Foot, em 2018.

Com um misto de jovens feitos em casa e outros trazidos de clubes e mercados alternativos, o Lens pegou um rápido elevador. Até ali, as campanhas vinham sendo de sucesso, sobretudo para quem não muito tempo atrás fora rebaixado sem poder reclamar de rigorosamente nada. Nas temporadas que se seguiram ao acesso, o Lens ficou sempre na parte de cima da tabela. Em 1992-93, foi o nono colocado, finalizando as campanhas seguintes em 10º, e, duas vezes, em 5º lugar. Até que o quadro mudou em 1996-97.

Queda antes da ascensão


A largada da campanha não sugeriu as dificuldades vividas no curso do ano. O Lens arrancou para a temporada 1996-97 com uma sequência de quatro vitórias, deixando pelo caminho Caen, Nancy, Nantes e Montpellier. Era o líder da Ligue 1 quando, na quinta rodada, foi massacrado pelo Monaco: derrota por 5 a 1. Dali em diante, as dificuldades se materializariam. Os Artésiens só voltariam a vencer na 13ª rodada, altura em que já haviam caído para a 14ª colocação.

É justo dizer que o Lens teve paciência. O clube havia contratado o iugoslavo Slavoljub Muslin para o comando técnico e o sustentou por um longo período, mesmo diante da falta de resultados. Ele só seria demitido 10 rodadas antes do final da Ligue 1, quando os Sang et Or já ocupavam a 16ª posição, apenas uma abaixo da zona de rebaixamento.

Naquele momento, o clube apostou no retorno de um velho conhecido: Roger Lemerre, que havia defendido e treinado o clube nos anos 1970. Com ele na casamata, o Lens ressurgiu, somando quatro vitórias (incluindo o clássico contra o Lille que ajudaria a rebaixá-lo), três empates e somente perdendo três vezes, nas rodadas derradeiras. A sequência levou o clube a terminar a Ligue 1 em 13º lugar, oito pontos à frente do primeiro rebaixado, o Caen.

Daniel Leclerc Lens
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O problema é que, depois de reerguer o Lens, Roger Lemerre foi chamado a integrar a comissão técnica da França, sendo auxiliar de Aimé Jacquet. O substituto escolhido por Gervais Martel acabaria sendo Daniel Leclercq, então braço direito de Lemerre. E não demorou para a água virar vinho.

“Vínhamos de uma temporada delicada, quase caímos antes de Roger Lemerre e Daniel Leclercq assumirem o time. Na temporada seguinte [...] Leclercq tornou-se o líder principal no comando [...] No começo, não éramos sequer azarões, mas no curso das partidas percebemos que poderíamos fazer algo”, disse Déhu, à So Foot, em 2015.

Para a temporada 1997-98, desembarcaram no clube duas caras novas importantes: junto ao Bordeaux, foi contratado Stéphane Ziani; do Bastia, veio o centroavante montenegrino Anton Drobnjak. Havia, ainda, outra novidade importante: às vésperas da Copa do Mundo de 1998, foram concluídas obras no Stade Bollaert-Delelis. Casa do Lens desde 1933, o estádio estava renovado.

Primeiro turno instável e corrida para a vitória


O Lens estreou na Ligue 1997-98 com um triunfo importante: confortavelmente, bateu o Auxerre, 3 a 0. Apesar disso, o começo da campanha dos Sang et Or foi instável. Até a sétima rodada, o time acumulou apenas duas vitórias — incluindo um heróico 3 a 2 ante o Olympique de Marseille: “Senti uma emoção especial com o hat-trick de Marselha. Especialmente porque sofri uma lesão nas costas antes da partida. Só havia treinado no dia anterior ao jogo. Daniel Leclercq me disse: ‘Vá em frente, se aqueça, se puder jogar, ótimo, se não puder, paciência’”, contou Drobnjak, em 2020, ao Foot d’Avant.


Durante todo o primeiro turno, o clube viveria um enorme perde e ganha. Em termos gerais, a campanha não era ruim, sobretudo tendo em vista a anterior. Mas, quando entrou no segundo turno, o Lens aspirava a conquista de uma vaga em competições europeias. Era o sexto colocado. 

Apesar disso, o campeonato estava embolado, quatro pontos separavam os homens de Nord-Pas-de-Calais do líder Monaco. Metz, PSG, Marseille e Bordeaux eram outros postulantes ao título.

Com quase todos os competidores em boa forma, o Lens venceu o Strasbourg na rodada de início do segundo turno, subiu para a quinta colocação e lá estacionou. Foi apenas na 25ª rodada que o clube conseguiu subir. Após uma vitória contundente ante o Lyon, 3 a 0, ascendeu ao quarto lugar. De lá não mais cairia, nem mesmo depois de perder para o fraco Châteauroux. Ainda assim, o título não estava desenhado.


Foi entre as rodadas 27 e 30 que tudo mudou. Uma sequência de confrontos diretos elevou o Lens à liderança. O clube superou Bordeaux, Monaco, PSG e Metz — o líder de então. Após a quarta vitória, no terreno dos Grenats, os Artésiens assumiram a ponta da tabela. Quatro jogos separavam o Lens da conquista sonhada e inédita.

Paralelamente, o time fazia campanhas sólidas nas copas. Naquela altura, havia alcançado as semifinais da Copa da França e acabara de ser eliminado pelo Paris Saint-Germain, na mesma fase, da Copa da Liga. O time que flertara com a Ligue 2 em 1996-97, poderia terminar a temporada 1997-98 com dois troféus. Para conquistar a Copa da França, precisava superar o Lyon e, depois, o vencedor de Guingamp e PSG. Já o campeonato nacional seria decidido em confrontos ante Rennes, Cannes, Bastia e Auxerre.

Inapelavelmente, o Lens superou os primeiros três desafios da Ligue 1. Também passou pelo Lyon na copa. Maio se anunciava. Com ele, vieram os dois jogos mais importantes da temporada. No dia 2, os Sang et Or fariam uma viagem ao recém-inaugurado Stade de France, onde enfrentariam o PSG na finalíssima copeira. Na semana seguinte, eram esperados no Stade de l'Abbé-Deschamps, para a decisão do Campeonato Francês.

Lens PSG Coupe de France 1997-98
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Na primeira batalha, o Lens viu Raí e Marco Simone confirmarem o título da Copa da França para os parisienses. Em Auxerre, o empate poderia servir aos representantes da orgulhosa cidade operária de 30 mil habitantes do extremo norte francês. O Metz, de Rigobert Song, Robert Pirès e Louis Saha, tinha dois pontos e seis gols de saldo a menos do que o Lens. O problema foi que tudo começou a dar errado cedo.

Smicer teve um gol anulado e Sabri Lamouchi abriu a contagem para o Auxerre. Naquele exato minuto, em Metz, Bruno Rodríguez marcou o primeiro dos anfitriões contra o Lyon. Mas o Lens não perderia sua segunda chance de título. No começo da etapa final, Lachor empatou o jogo. O 1 a 1 de Auxerre se consolidou, assim como o 1 a 0 de Metz. Com cinco gols de saldo a mais, o Lens ofereceu um banho de sangue e ouro à França. Era, enfim, campeão nacional.


O sucesso não acabou ali, mas também não durou muito


Foi no próprio dia 9 que os festejos começaram em Lens. O time voltou para casa logo após a vitória, sendo recebido por uma multidão no aeroporto de Lille. Ao chegar ao Stade Bollaert-Delelis, já na madrugada do dia seguinte, os campeões eram esperados por 30 mil fiéis torcedores.

RC Lens Party 1997-98
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

“Tenho a impressão de que só hoje entendemos o que fizemos. Costumo ir a mercados das pulgas. Aos finais de semana, encontro muita gente de Nord-Pas-de-Calais, de todas as idades, amantes de futebol, que simplesmente são gratos. Esses agradecimentos são a melhor recompensa”, contou Leclercq, lembrado pela alcunha de “O Druida”, à revista So Foot, em 2018, um ano antes de seu falecimento.

Àquele título, seguir-se-iam outros bons momentos. 

No ano seguinte, em sua primeira disputa de Liga dos Campeões, o Lens não foi longe, ficando na fase de grupos. Ainda assim, foi possível tirar algo de bom. O Grupo E era poderoso. Além dos gregos do Panathinaikos, dos ucranianos do Dinamo de Kiev, de Andriy Shevchenko, havia a presença do Arsenal. E os franceses levaram a melhor em um histórico confronto com os Gunners, em Wembley. 73.707 espectadores viram Mickaël Debève conferir a vitória so Lens.


Naquela mesma temporada, os Sang et Or venceriam a Copa da Liga, superando, outra vez, o Metz. 

Em 1999-00, já sob a liderança de François Brisson, o time seria lembrado por chegar às semifinais da Copa da Uefa, perdendo para o Arsenal. Dois anos depois, seria a vez de o Lens flertar com um novo título da Ligue 1. A chance chegou a se materializar. No dia 4 de maio de 2002, bastava ao Lens vencer o Lyon. Contudo, os Gones foram superiores, 3 a 1, e conquistaram seu primeiro título francês.

Os Artésiens fariam outras campanhas de qualidade naquela década. Entretanto, a instabilidade não demoraria a chegar. Em 2007-08, o rebaixamento foi inevitável. O Lens voltaria logo, mas viveria outro descenso em 2010-11. Desde então, a vida do clube tem funcionado com um ioiô, entre subidas e descidas pelos dois principais escalões do futebol francês, mas sem deixar para trás o orgulho pelo suado título de 1997-98.

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