As flores e os espinhos da passagem de Bobby Robson pelo Barcelona

Até as melhores parcerias chegam ao fim, eventualmente. Era maio de 1996, quando Johan Cruyff foi demitido do comando do Barcelona. “Se precisarem de mim, voltarei, nunca com Núñez”, disparou o holandês contra o presidente do clube. Com amargor, o Mundo Deportivo do dia seguinte à destituição do treinador destacou “a hora do adeus”, e o “final ingrato”, explicando a crise que conduzira àquele momento. Qualquer que fosse o substituto teria uma missão quase impossível para liderar, com inevitáveis comparações. Bobby Robson fez o que pôde, e não foi reconhecido.

Bobby Robson José Mourinho Ronaldo Barcelona
Foto: imago/Arte: O Futebólogo


Como substituir o insubstituível?


Não haverá vivalma capaz de discutir que a história do Barcelona se divide em duas eras: uma que antecede a chegada de Johan Cruyff ao comando técnico do clube; e outra vivida após seu imensurável sucesso. O clube catalão sempre fora um dos mais tradicionais do futebol espanhol, mas vivia à sombra do Real Madrid. Embora tivesse dinheiro, e fizesse contratações de impacto, dentre as quais o próprio Cruyff enquanto atleta e Diego Maradona, os títulos não se equiparavam aos dos Merengues.

Enquanto o Real Madrid desfrutava do estatuto de hexacampeão europeu, o Barça nunca havia vencido sequer uma vez a Copa dos Campeões da Europa. Isso seria modificado a partir do desempenho do Dream Team, montado por Cruyff. Sua mão foi ao nível do DNA do clube, indo além do time profissional e mudando, também, os rumos de suas categorias de base. A partir de Johan, pensar em um estilo de se jogar futebol que privilegia a técnica, os movimentos inteligentes, a destreza e o talento, passou a ser pensar em Barcelona.

Mundo Deportivo Cruyff Demitido

É bem verdade que, nas terras catalães, já germinavam as mudas daquilo, mas seria Cruyff o responsável por levar as contribuições de gente como Vic Buckingham e Rinus Michels ao nível da eternidade. Ainda assim, o presidente da agremiação à época, Josep Lluís Núñez, não tinha a mais pacífica das relações com o holandês. E, naquele momento, o fim da parceria entre clube e treinador acabou sendo inevitável. Contudo, Johan havia dado um toque de Midas ao Barcelona, ensinara um caminho que, ao menor sinal de problemas, poderia ser buscado novamente.

A substituição de Cruyff foi uma das missões mais ingratas que o mundo do futebol presenciou, afinal, ele era mesmo insubstituível. No dia seguinte à demissão do holandês, Bobby Robson já havia sido contratado. “Que não vaiem Robson, porque deram a ele um elenco que ele não pôde escolher [...] Conheço bem o Robson, é um técnico que esteve em outros países, com experiência”, disse Cruyff, no rescaldo de sua saída.

Johan Cruyff Barcelona
Foto: PA Sport/Arte: O Futebólogo

Não é demais comentar que não havia unidade entre os caminhos que Núñez desejava percorrer e as ideias da maior parte dos conselheiros do clube, fiéis a Cruyff. O clima que Robson encontrou era de panela de pressão. Como igualar um homem que conquistara um tetracampeonato espanhol de modo consecutivo, entremeado pela primeira glória na Copa dos Campeões da Europa? Além disso, como lidar com o fato de que tudo no clube funcionava conforme as instruções dadas pelo holandês nos últimos oito anos? Difícil. 

“O ambiente era muito político e eu não era um animal político. Ao menor convite, a histeria se instalava pelo campo”, comentaria Bobby anos mais tarde.

Contudo, naquele momento, Robson era todo empolgação. “Sempre quis ser treinador do Barcelona. Eu estive perto, em 1984, mas não consegui. Eu tinha um contrato com minha seleção. Recomendei [Terry] Venables a eles e acho que estava certo. Agora tenho mais um ano de contrato com o FC Porto, mas o presidente, os adeptos, todos, perceberam que não podia perder esta segunda oportunidade”, disse o treinador, que levou seu auxiliar, e tradutor, um certo José Mourinho, a tiracolo.

Vale lembrar que, antes mesmo da oportunidade recebida em 1984, Robson já havia recusado uma mudança para o Camp Nou, quando ainda liderava o Ipswich Town.

Contratações para o novo chefe


O cenário no Barcelona era tão complicado, que a mesma edição do Mundo Deportivo que, desolada, lamentava a saída de Cruyff e, sem entusiasmo, noticiava a chegada de Robson, também cobria a vinda do zagueiro francês Laurent Blanc. “Isso [a saída de Cruyff] me dói, porque eu o conhecia e estava muito animado para jogar sob seu comando. Mas também conheço o Bobby Robson [...] sei que ele queria me levar ao Porto, por isso espero que façamos um excelente trabalho juntos”, pontuou o beque, um dos vários contratados catalães.

Para a temporada 1996-97, o Barça abriu os cofres, trazendo reforços para quase todos os setores. Do Porto, o técnico inglês conseguiu assegurar a contratação do goleiro Vítor Baía. Outro ex-comandado do inglês que chegou a um acordo com os Culés foi o zagueiro Fernando Couto, à época no Parma. Apesar disso, Robson não convenceu o Barcelona a investir no também portista Domingos Paciência, e no búlgaro Krasimir Balakov, seu ex-atleta no Sporting. 

Também do Parma, os catalães trouxeram de volta Hristo Stoichkov. Aliás, esse parecia um negócio necessário, diante das saídas dos criativos Gheorghe Hagi e Jordi Cruyff. Para o setor ofensivo, também foram acertadas as vindas do brasileiro Giovanni e do hispano-argentino Juan Antonio Pizzi.

Giovanni Barcelona
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Porém, seriam outros dois os reforços mais importantes feitos pelo clube às vésperas daquela campanha. Sem custos, Luis Enrique chegou do Real Madrid para ser uma das referência do time no meio-campo, posto que exerceria até o final de sua carreira, em 2004. “No futebol, há ciclos e no Madrid cumpri um que deve ser respeitado. Agora, começa outro em uma grande instituição como é o Barcelona”, garantiu o asturiano. O outro negócio impactante concluído pelo Barça foi a contratação de Ronaldo, junto ao PSV Eindhoven.

O Mundo Deportivo de 24 de maio noticiava os termos que os holandeses exigiam para uma eventual venda do atacante brasileiro: um bilhão e meio de pesetas, mais o passe de Jordi Cruyff. Curiosamente, o periódico também ventilava a hipótese de Zinedine Zidane firmar pelos catalães. 

A falta de disposição de Núñez a pagar por Ronaldo mais do que o Real Madrid havia despendido pelos serviços de Predrag Mijatovic atrasou o negócio. O clube considerou recorrer a um retorno de Romário, ou apostar no inglês Alan Shearer, mas, no fim das contas, no dia 9 de julho, a contratação de Ronaldo foi confirmada, mediante o pagamento de 20 milhões de dólares. “O Barça é a melhor opção para a minha carreira”, destacou o atacante.

Mundo Deportivo Ronaldo Barcelona

Apesar de títulos e de Ronaldo, o reconhecimento não veio


A tendência a rotular a passagem de Bobby Robson pelo Barcelona como um fracasso não se baseia na frieza dos resultados. Uma das questões levantadas foi a dificuldade que o inglês teve de convencer seus atletas a seguir seus métodos. Acostumados a ser tratados com distância por Cruyff, e a ser cobrados por excelência, os jogadores viam na tentativa de Robson de se aproximar deles, ao nível pessoal, uma possível fraqueza. Também o estilo de jogo seria um ponto problemático, considerado tradicional demais.

“Robson era mais coração. Ele gostava de contato. Johan queria jogar mais futebol. Robson queria jogar futebol, mas jogar duro. Com o coração”, falou Hristo Stoichkov ao jornalista inglês Jonathan Wilson, no Guardian. Em um momento inicial, um dos jogadores que mais problemas teriam levado ao treinador, pelo estilo questionador, foi Pep Guardiola — que acabaria conquistado.

Bobby Robson Pep Guardiola Barcelona
Foto: ESPN FC/Arte: O Futebólogo

Com o tempo, o campo mostrou que essas arestas estavam sendo aparadas. Mas, ao menor sinal de fumaça, o fogo poderia se alastrar pelo clube. O começo no Campeonato Espanhol foi positivo, se analisado detidamente. O Barça entrou na 14ª rodada invicto e líder. Robson já havia sido questionado por empates em casa contra Tenerife e Atlético de Madrid, mas o time vinha bem. Até perder para o Athletic Bilbao. E, depois de triunfar ante o Extremadura, cair contra o Real Madrid. 

Os Merengues viviam um ambiente menos tórrido do que o dos Blaugranas. Pouco impacto negativo havia sido produzido a partir da eliminação do Real Madrid nas oitavas de finais da Copa do Rei, justamente para o rival Barça, já que a disputa se tratava de uma pretensão secundária para o clube.


Para Robson, nem mesmo vitórias como um impositivo 6 a 0 frente ao Rayo Vallecano, que contava com o brasileiro Guilherme, diminuiam a sensação de iminente fracasso. Em fevereiro de 1997, a situação começou a ficar insustentável. Conforme os rumores de que Louis van Gaal seria contratado aumentavam, Robson sentia que, cada vez mais, a corda bamba em que caminhava se estreitava. Então, uma derrota frente ao Espanyol no clássico de Barcelona, colocou os Culés na terceira posição do Espanhol. Naquele mês, o Barça perderia ainda para Real Sociedad e Tenerife.

Março chegou e, com ele, momentos decisivos nas três frentes de batalha do Barcelona. As quartas de finais da Copa do Rei e da Recopa Europeia estavam em marcha. Então, os catalães viveram um momento catártico. Na partida de ida da competição nacional, o Barça havia empatado por 2 a 2 com o Atlético de Madrid. Na volta, ao final dos primeiros 45 minutos, o placar indicava 3 a 0 para os Colchoneros. Algo aconteceu no vestiário.

“Aprendi muito. Pensei: ʽQuero me tornar um treinador’, por conta da forma como ele [Robson] lidou com a situação. Foi incrível. Não importa o que a mídia diga, todos tentando pressionar você: sempre tente ficar calmo”, relatou Guardiola à ESPN. Com dois minutos da etapa final disputada, Ronaldo marcou o primeiro tento catalão. Num desses momentos que marcam gerações, o Barcelona reverteu o placar, que, ao final, sinalizava uma vitória catalã: 5 a 4. Van Gaal estava nas arquibancadas, vendo que, afinal, os métodos de Robson não podiam ser tão ruins assim.


Paralelamente, o time superou os suecos do AIK, os italianos da Fiorentina, e os franceses do PSG, de Raí e Leonardo, levantando a taça da Recopa, a terceira do Barça.

Já a corrida pela Copa do Rei terminaria no Santiago Bernabéu, contra o Real Betis, em outro momento inesquecível. Os Verdiblancos venciam até os 88 minutos, quando Pizzi empatou o jogo. Na prorrogação, Luís Figo confirmou o título catalão, o terceiro de Robson, que também já havia vencido a Supercopa da Espanha. Contudo, por dois pontos, La Liga foi entregue às mãos do Real Madrid, que disputou 12 partidas a menos do que o Barcelona na temporada.

Um ano em que se disputa quatro competições, vencendo três e ficando com um vice, não pode ser um ano ruim. Sobretudo se um de seus jogadores, no caso Ronaldo, tiver anotado 47 gols, em 49 partidas. Certo? Talvez.


As conquistas não salvaram Robson


Para a disputa da temporada 1997-98, Van Gaal foi contratado pelo Barça, e Robson se tornou uma espécie de “gerente” do clube. Na prática, foi uma forma menos drástica de escantear um treinador que havia conseguido vitórias e que, mais do que isso, podia não ser visto como o ideal, mas havia mantido o clube em alta. A situação revoltou Mourinho, que teve de ser convencido pelo próprio Robson a seguir no Barça — e a trabalhar com Van Gaal. Era o melhor para sua carreira.

"O que ele me deu? Não consigo descrever em palavras e não iria para o campo futebolístico. Iria mais para o que o sr. Robson era enquanto pessoa, enquanto homem [...] Eu a almoçar com ele e ele a nunca deixar-me pagar, porque segundo o que ele dizia 'Tenho mais dinheiro do que tu e menos tempo para viver do que tu, por isso não tens de me pagar nenhum almoço'. E nunca lhe paguei um único almoço", recordou Mourinho ao Record.

Outras figuras exaltariam Bobby, que, desde 1991, convivia com problemas decorrentes de um câncer. Dentre essas personalidades, Ronaldo: “Tive muitos treinadores no futebol, mas a diferença entre todos eles e Sir Bobby era a humanidade e o relacionamento que ele tinha com os jogadores. Ele era sempre como um pai para todos”, falou o brasileiro ao TalkSport.

Bobby Robson Van Gaal Barcelona
Foto: Action Images/Arte: O Futebólogo

Robson permaneceu apenas uma temporada na condição que, em tese, parecia ser uma promoção, mas que só fez limitar sua influência dentro do Barcelona. Em 1998, retornou ao PSV Eindhoven. As razões oficiais de sua substituição por Van Gaal foram meramente estilísticas, como o holandês sublinharia (“Ele ficou lá apenas um ano e ganhou três títulos, mas, apesar disso, a diretoria do Barcelona foi doutrinada com a visão de [Rinus] Michels e Cruyff”).

Apesar de tudo, a troca deixou no ar interrogações quanto à passagem de Robson pela Catalunha ter sido um fracasso, também porque o substituto viveria alguns sucessos, apesar de ter, também, estado no centro de uma série de discussões públicas, com a imprensa e, até mesmo, com seus jogadores. O Barcelona era muito holandês para Bobby Robson, talvez fosse sofisticado demais para seu estilo mais tradicional. Por outro lado, é possível que o inglês fosse muito gentil para enfrentar a realidade de um clube tão conturbado. Que não se esqueça de uma coisa: a missão dada a Robson era apenas a de substituir o nome mais importante da história blaugrana.

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