Da segunda divisão ao título uruguaio: a epopeia do Central Español

No mundo do futebol, poucas coisas são mais prováveis do que a conquista do Campeonato Uruguaio por seus gigantes, Nacional ou Peñarol. Partindo de 1932, com o início da era profissional do futebol charrua, a primeira vez em que o duopólio foi rompido foi em 1976, honra que coube ao Defensor. Imaginar que um time pudesse deixar a segunda divisão e, de imediato, chegar ao título da elite era loucura. Mas, ao final da competição de 1984, a festa no bairro de Palermo, em Montevidéu, deu sinais de que aquilo tinha acontecido.

Central Español 1984
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Entre almas e carnavais


O Central Fútbol Club é mais um dos times chicos de Montevidéu. Fundado no bairro de Palermo, em janeiro de 1905, foi nomeado em referência ao Cemitério Central, situado nos arredores. O bairro montevideano tem seu nome ligado ao homônimo da capital argentina, Buenos Aires — uma região nobre. De todo modo, o Palermo uruguaio do início do século XX era um lugar influenciado pela imigração de italianos e espanhóis, recebendo, ainda, um contingente representativo de afro-uruguaios, após a abolição da escravidão.

As cores de seu clube, vermelho e azul, derivaram de um bloco de Carnaval bem-sucedido na região, vencedor de doze carnavais entre 1915 e 1932, o Esclavos de Nyanza, fundado em Isla de Flores y Tacuarembó, na fronteira entre os bairros de Palermo e Sur.

Em uma época marcada por blocos majoritariamente brancos, em que pese a menção à escravidão em seu nome, o Esclavos de Nyanza tinha maioria italo-hispânica em seus quadros, mas um de seus fundadores era Juan Delgado, um conhecido jogador de futebol afro-uruguaio, que atuou no Central Español, como menciona o pesquisador George Reid Andrews, em Recordando África al inventar Uruguay: sociedades de negros en el carnaval de Montevideo, 1865-1930.

Palermo Central Español
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O pequenino clube palermitano passaria a se chamar Central Español apenas em 1971. Desde o ano anterior, vinha em negociações com o Instituto de Migraciones de España, que desejava se ver representado no cenário futebolístico uruguaio. Com o acordo fechado, a agremiação recebeu o acréscimo nominal, estreitando, ainda mais, sua relação com os imigrantes, e seus descendentes, espanhóis da localidade.

Ainda assim, muito embora tivesse uma história recheada de peculiaridades, detendo popularidade em Palermo, o Central Español não passava de mais um clube chico uruguaio. Não tinha relevância esportiva; tampouco aspirações. O contraste de sua pequenez ante o gigantismo do futebol uruguaio ficou especialmente evidente quando da construção do Estádio Parque Palermo, com capacidade para pouco mais de seis mil pessoas, em 1937. Isso porque ele se situa a 300m do imponente Estádio Centenário, casa da seleção uruguaia.

A volta para a elite e a mudança de comando


A presença do Central Español na segunda divisão uruguaia de 1983 não tinha nada de anormal. Muito pelo contrário. Era habitual. Historicamente, o time alternava bons e maus momentos, vivendo um constante efeito ioiô. Naquela altura, os Centralófilos eram comandados por Roberto Fleitas, um homem um tanto quanto incógnito até então. Embora já levasse 50 anos, havia passado apenas por times menores, sem muito sucesso.

Anos mais tarde, ele ficaria famoso ocupando o posto máximo da Celeste Olímpica, pela qual conquistou a Copa América de 1987, sediada na rival Argentina. Também seria lembrado por grandes vitórias pelo Nacional. “A Federação Uruguaia havia consultado Hugo Bagnulo, que disse não. Então, comentaram comigo: ‘Você agarra?’ [...] Os argentinos se perguntavam quem era Fleitas. Ninguém me conhecia. Eu havia dirigido times da segunda divisão. Tinha estado no Central Español, campeão invicto em 1983, no Progreso, Rampla Juniors e Liverpool”, comentou aos uruguaios do Tenfield.

Sim, Roberto levou o Central Español à conquista da segundona de modo invicto. Em 18 partidas, alcançou 14 vitórias, somando mais quatro empates. O time concedeu parcos três gols durante a campanha. Uma vitória ante o Liverpool na rodada final consumou o título, vencido a duras penas, já que o Racing somou apenas um ponto a menos. O problema é que o treinador decidiu deixar o clube para a temporada seguinte.

Liber Arispe
Foto:  Tenfield/Arte: O Futebólogo

O substituto de Fleitas foi o inexperiente Líber Arispe. Aos 38 anos, o comandante tinha como maior referência o título da segunda divisão de 1982, pelo Colón, logo em seu primeiro trabalho. Naquele momento, Arispe vinha do Rentistas, o time que havia terminado em terceiro lugar a última segundona. Apesar disso, o novo chefe fora um dos zagueiros do fantástico time do Defensor, campeão em 1976, interrompendo a hegemonia de Nacional e Peñarol. Sabia a delícia que era ser o azarão vitorioso.

El Bolita, como era conhecido Arispe, chegou acompanhado do preparador físico Germando Adinolfi, trazendo uma lista de reforços modesta. Nela, constavam jogadores de segunda divisão e figuras sub-aproveitadas em times maiores. Assim, um grupo de jogadores formados em casa, nas cercanias do Parque Battle, recebeu poucos acréscimos na preparação para o retorno à elite. Dentre os jogadores mais conhecidos, estavam apenas o meio-campista Abel Tolosa, vindo do Defensor, e o atacante José Ignácio Villarreal, um reserva inexpressivo do Peñarol.

“Já havia alternado entre ponta e nove, porque era o suplente de [Fernando] Morena. Uma coisa era ser suplente de Morena, mas logo veio o brasileiro Rubão. Eu pedia ao finado [Washington] Cataldi [presidente do Peñarol] — que não me queria fora — que me emprestasse ao Huracán Buceo, de onde eu vinha, mas ele me disse que se me desse de volta ao Huracán o matavam. Assim, cheguei ao Central Español. E me fiz torcedor”, comentou Villarreal aos uruguaios do Ovación.

 

Villarreal Central Español
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Outra figura que teria importância seria o goleiro Héctor Tuja, que chegaria à Celeste Olímpica em 1987. Foi a disciplina tática e o trabalho sóbrio de Arispe que levaram um grupo de jogadores comprometidos a alcançar o impensável. Não passaria muito tempo até que o treinador dissesse, profeticamente, ao presidente do clube, Rodríguez Cavalierri: “Vamos pensar um pouquinho em sair campeões, porque o elenco está jogando muito bem, é capaz de fazer barulho”, registrou o Tenfield.

Ninguém esperava nada daquilo


Quando o Campeonato Uruguaio de 1984 começou, a sensação era a de que o óbvio aconteceria com o Central Español. Qualquer destino que não fosse a mera permanência na elite, talvez sem drama, seria inesperado. Na estreia, o time foi superado pelo Bella Vista: 2 a 1. E, na sequência, à vitória ante o Miramar Misiones, 1 a 0, seguiram-se quatro empates — incluindo um ante o Peñarol —, um triunfo em face do Progresso e uma derrota para o Nacional. O script estava sendo seguido à risca.

Então, o time folgou na nona rodada — o torneio tinha 13 equipes, o que condicionava uma a descansar em cada jornada. Na volta, deu uma de suas últimas derrapadas: empatou com o Defensor. Durante toda a competição, os Palermitanos só sairiam derrotados duas vezes. Vitórias ante Sud América, Wanderers e Huracán Buceo levaram o time a completar o primeiro turno em alta.

Como que repentinamente, o Central foi se forjando um intruso nas primeiras posições da tabela. E, quando chegou a hora de enfrentar os poderosos Peñarol e Nacional outra vez, o que aconteceu em sequência, os homens de vermelho e azul se mostraram à altura da ocasião: venceram os Carboneros, 1 a 0, e empataram com o Bolso, 1 a 1. Vale recordar que, um ano antes, o Peñarol havia sido finalista vencido da Copa Libertadores da América. 

Quando experimentou a primeira folga, o Central Español havia alcançado oito, de um total de 16 pontos. Na segunda parada, somava 19 em 24 disputados. Ninguém parava o time.

Faltando quatro rodadas para o fim do campeonato, os Centralófilos estavam com tudo. Confrontos contra Defensor, Sud América, Montevideo Wanderers e Huracán Buceo eram quase tudo o que separava o time da realização de um sonho. No entanto, o time chico precisaria contar com algum tropeço do Peñarol. Fazendo sua parte, os representantes de Palermo venceram seus três primeiros confrontos. Em especial, o jogo disputado ante os Wanderers foi digno de filme: triunfo por 5 a 4.

Central Español 1984
Foto: El Observador/Arte: O Futebólogo

Antes da jornada fatal, Central Español e Peñarol tinham os mesmos 33 pontos. Os azarões enfrentariam o Huracán Buceo; os favoritos encarariam o Wanderers. No dia 30 de setembro de 1984, Arispe alinhou Héctor Tuja; César Pereira, Carlos Boats, Obdulio Trasante e Fernando Operti; Abel Tolosa, Miguel Del Rio e Oscar Falero; Uruguai Gussoni, José Villarreal, Daniel Viera, para a missão do título. Com casa cheia, o futebol uruguaio viu toda a capacidade goleadora de Villarreal.

“Entramos nos últimos 90 minutos daquele campeonato empatados com o Peñarol. Com a potência que era o Peñarol jogando em casa. Mas [ele] empatou e nós ganhamos do Huracán. Tiramos a diferença na última rodada. Foi redondo, porque até hoje não se voltou a ver um time recém-subido ser campeão uruguaio”, comentou Villarreal ao Ovación. O Central Español venceu o Huracán por 2 a 1, com dois tentos dele, em mais uma dessas ocasiões em que se viu a famosa "Lei do Ex" entrar em campo. Diante do tropeço carbonero, o Central levantou a taça.

Ninguém sofreu menos gols do que Héctor Tuja, 17. Tampouco houve quem marcasse mais tentos do que José Villarreal, responsável por 50% de todos os gols do Central: 18, que levaram o artilheiro a superar a disputa particular com o Pato Carlos Aguilera, do Nacional. Aquela foi a única vez em que o Uruguai viu um time ascender diretamente da segunda divisão ao título da primeira, sem escalas.

Faltou a Copa Libertadores da América


Em uma dessas peculiaridades do futebol sul-americano, a conquista do Campeonato Uruguaio não assegurou vaga na Copa Libertadores da América de 1985 ao Central Español. A classificação para a competição continental viria da disputa da Liguilla. Tratava-se de um torneio disputado pelos cinco melhores classificados do nacional, mais o Defensor. Em um turno, todos os times se enfrentariam: Peñarol, Nacional, Bella Vista, Danubio, Defensor e ele, o Central Español.

Mal na disputa, mas tendo vantagem como campeão uruguaio, o Central chegou à rodada final com uma vitória, duas derrotas e um empate. Na rodada fatal, enfrentaria o Peñarol. E a maluquice daquele formato dizia que uma derrota era o melhor resultado — assim, os Carboneros se isolariam na liderança, deixando o Bella Vista pelo caminho e entregando a segunda vaga aos Palermitanos, que usariam sua vantagem.

Contudo, o pequenino time, agora vencedor, tinha princípios, que se mantiveram intactos, mesmo diante da pressão política dos próprios chefes do clube, que não admitiam a hipótese de não disputar a Libertadores. “O futebol é um esporte que se joga para ganhar. Alguma vez entraram em campo para perder? Como fomos campeões? Saiamos para ganhar como sempre, porque será melhor ganhar e perder uma classificação, do que classificar e perder a dignidade do futebol que tanto queremos”, teria dito Arispe, como registrou o La Diaria.

Parque Battle Montevideo
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Na hora da decisão, o Central Español vendeu caro um empate com o Peñarol: 1 a 1. Assim, os aurinegros empataram em pontos com o Bella Vista, o que condicionou os adversários a disputar um playoff. O gigante nacional venceu. Então, a segunda vaga foi disputada em outro playoff, agora entre o citado Bella Vista e os Centralófilos. Com uma vitória por 1 a 0, os Papales acabaram com o sonho vermelho e azul. O Central Español se tornou o único campeão uruguaio a não disputar a Libertadores.

A chance de brilhar no continente não veio. Mas ninguém havia sonhado com um título nacional do Central Español, especialmente não em sua primeira temporada logo após a conquista da segundona. Em um país dominado por Peñarol e Nacional, os Palermitanos alcançaram uma glória com apenas um precedente até então, obtido pelo Defensor, em 1976. E, mesmo com o insucesso na classificação à Libertadores, o time não perdeu seu caráter. Assim, a história foi consolidada. De modo memorável. Tal qual uma verdadeira epopeia.

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