Vic Buckingham e o desenvolvimento do Futebol Total

Na história do futebol, quase nada resultou do acaso. Os processos, por menos lineares que se apresentem, por mais ilógicos que se sugiram, costumam existir. A partir do final dos anos 1960, o Ajax, e a seleção holandesa, evidenciaram um jeito de jogar futebol que ficou eternizado por um nome impactante: Futebol Total. Porém, Rinus Michels, a quem é atribuída a gênese dessa proposta, encontrou boas condições para desenvolver suas ideias. Parte disso, deveu-se à figura de um inglês um tanto esquecido: Vic Buckingham.

Vic Buckingham
Foto: Rex/Arte: O Futebólogo


O aprendizado com Peter McWilliam


Se, por um lado, Michels não começou sua revolução do zero, por outro, Buckingham também não se formou treinador sem a influência de algumas figuras cruciais. Costuma-se dizer que, nos primórdios, nas Ilhas Britânicas, o futebol podia ser percebido por meio de duas concepções. A dos ingleses, que praticavam o esporte a partir de princípios similares aos exibidos no rúgbi, um jogo mais agressivo e direto; e a dos escoceses, que descobriram as belezas do passe e da posse de bola. Esta segunda linha chegaria a Vic.

Conta-se que os primeiros contatos que a Inglaterra teve com esse jogo de passes aconteceram a partir da transferência de Bob McColl, do Queen’s Park (que não deve ser confundido com o londrino Queens Park Rangers) para o Newcastle, nos idos de 1901. Nos Magpies, o antigo atacante escocês conviveu com Peter McWilliam, também ele escocês, mas formado no Inverness Thistle e importante ponta-médio para o clube, que naquela década venceu três vezes o Campeonato Inglês.

Eventualmente, McColl retornou ao seu país. Alguns anos mais tarde, em 1911, McWilliam pendurou as chuteiras. No entanto, o ídolo do time de Newcastle upon Tyne não ficou muito tempo parado. Logo em 1912, Peter foi abordado pelo Tottenham, iniciando um trabalho conhecido por seu radicalismo, como indica o jornalista Jonathan Wilson, em A Pirâmide Invertida. Exceto por uma passagem de sete anos pelo Middlesbrough, entre 1927 e 34, e por uma estadia breve como olheiro do Arsenal, McWilliam esteve sempre ligado aos Spurs, que liderou até 1927 e, mais tarde, entre 1938 e 42.

Durante essa longa permanência no norte de Londres, o comandante desenvolveu o jogo de passes que aprendera com McColl, e que acabaria, anos depois, popularizando-se sob a alcunha de push and run, traduzindo uma ideia em que o atleta deveria passar a bola, e, imediatamente, deslocar-se, para recebê-la de volta.

Buckingham Tottenham
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Em sua segunda passagem pelo Tottenham, McWilliam liderou três figuras que seriam emblemáticas para o desenvolvimento do jogo. Enquanto Arthur Rowe e Bill Nicholson seguiram os passos de McWilliam, aumentando sua ligação com o Tottenham, estabelecendo o que ficou conhecido como o Spurs Way e, inclusive, superando o mestre com a conquista de títulos, Buckingham se afirmou no West Bromwich, antes de se aventurar por terras continentais. Sua carreira nada notável como zagueiro e lateral esquerdo, em que acumulou 204 jogos pelos Spurs, daria uma guinada.

Fazendo fama no West Brom


Após a aposentadoria, Buckingham deu seus primeiros passos como treinador na Universidade de Oxford, assumindo, pouco depois, o Pegasus, time amador que mesclava alunos de Oxford e Cambridge. Vic levaria o clube à conquista da FA Cup amadora, projetando-se no cenário esportivo inglês. Foi a partir desse título que ele carimbou seu passaporte para o Bradford Park Avenue. Sob sua direção, o clube chegou perto de conquistar o acesso à segunda divisão. Porém, nos três anos em que Buckingham lá esteve, tal acabaria não ocorrendo.

No entanto, as boas campanhas no terceiro escalão inglês abriram os olhos do West Bromwich Albion. Não eram só os resultados que chamavam a atenção, os Baggies também estavam à procura do tipo de futebol que o treinador vinha implementando, mesmo sem ter o melhor material humano possível à disposição. Em 1953, Vic assinou com o time das West Midlands. Aliás, foi nesse ano que passou a ficar ainda mais convicto de suas ideias, depois de acompanhar, com admiração, os húngaros destroçarem a Inglaterra em Wembley, 6 a 3.

Com Vic na casamata, o WBA viveu dias gloriosos. Seu último título de relevo havia sido conquistado em 1931 — FA Cup vencida ante os rivais do Birmingham City. Logo em seu primeiro ano no estádio The Hawthorns, o treinador conduziu seu time ao sucesso. Outra vez, foi a FA Cup que colocou a cidade em festa. Depois de eliminar Chelsea, Rotherham United, Newcastle, Tottenham e Port Vale, os Baggies enfrentaram o Preston North End na decisão. No que foi descrito como uma final bem jogada, o West Brom venceu por 3 a 2, diante de mais de 100 mil pessoas em Wembley.


Aquela época poderia ter sido ainda mais emblemática. O Campeonato Inglês 1953-54 escapou por quatro pontos. Os comandados de Vic Buckingham chegaram a liderar a competição, mas não conseguiram se superiorizar a um time dominante do Wolverhampton. E aquela equipe do WBA seguiu praticando um jogo fiel às ideias de seu treinador. O galês Graham Williams, que seria treinado por Vic a partir de 1955, confirmou essa realidade, em entrevista ao Daily Mail.

“Seu trabalho era sobre passar e se movimentar. Ele não estava interessado em se defender. Ele queria ver dribles e gols, passando e correndo. Ele disse que não queria que fôssemos ‘da di da di da’, passando pelo propósito de passar. Ele sempre disse que queria que jogássemos como sorvete e chocolate. Essa era a sua frase. Apenas flua, como sorvete e chocolate”.

Nas temporadas seguintes, que seriam marcadas pelo encontro de um jovem jogador Bobby Robson com Vic Buckingham, os Baggies não voltaram a flertar com títulos, exceto pela Supercopa da Inglaterra, em 1954-55. Mas o treinador seguiu respaldado, fazendo sua ideia evoluir. Em 1959, seu período nas West Midlands acabaria chegando ao fim. Depois de se tornar o segundo técnico que mais dirigiu o WBA, com 301 jogos, era a hora de partir. Não para outro clube inglês, mas para um desafio continental.

Aproveitando o legado de Reynolds no Ajax


Vic Buckingham chegou ao Ajax logo após sua saída do West Bromwich. Internacionalmente, os Godenzonen, assim como o futebol holandês, eram vistos como quase amadores. No entanto, aquele não era um movimento, de todo, errático. Vic não foi o primeiro inglês a liderar o time de Amsterdã. Antes dele, Jack Reynolds havia passado pelo clube três vezes, uma com duração de 10 anos, outra de 12, e uma terceira de três. Sob sua direção, o clube começou a se profissionalizar e desenvolver suas categorias de base.

Reynolds não chegou a colher os melhores frutos de seu trabalho. Mas deu a Buckingham boas condições para o desenvolvimento de algo novo. “Suas habilidades [dos jogadores holandeses] eram diferentes, seu intelecto era diferente e eles jogavam um futebol de verdade. Eles não conseguiram isso de mim; estavam esperando alguém para extrair isso deles [...] Só faltava dar uma ideia; eles adicionavam habilidades, movimentos e combinações o tempo todo”, comentou Buckingham, aclamando o trabalho de Reynolds, quando entrevistado por David Winner, autor de Brilliant Orange: The Neurotic Genius of Dutch Football.

Vic Buckingham Ajax
Foto: ANP Archief/Arte: O Futebólogo

Na Holanda, muito menos presa às tradições futebolísticas inglesas, Vic Buckingham encontrou terreno para levar suas ideias a outro nível. Embora ainda fosse devoto do esquema tático WM, uma novidade nos anos 1930 já apreendida em meio mundo, deu à formação seu toque especial. “O negócio é futebol de posse de bola, não kick and rush. Futebol de bolas longas é muito arriscado. Na maior parte do tempo, o que compensa são as habilidades ensinadas. Se você tem a bola, mantenha-a. O outro time não pode marcar”, acrescentou o treinador no citado livro.

Assim, com um estilo de jogo ofensivo, capaz de produzir uma média de 3,2 gols por jogo (foram 109 em 34 jogos), o Ajax venceu o Campeonato Holandês de 1959-60. Buckingham dizia que os jogadores amsterdameses, mesmo antes de sua chegada, praticavam um tal “futebol de hábito”, que podia ser explicado pelo fato de que os atletas se encontravam como que por instinto. Apesar disso tudo, não se engane: Vic Buckingham podia ser um gentleman, e ter ideias de futebol progressistas, mas exigia disciplina de seus atletas.

Em seu segundo ano em Amsterdã, Vic conquistou a Copa da Holanda, mas ficou apenas com o vice-campeonato nacional. Era chegada a hora de retornar à Inglaterra. Próxima estação: Sheffield, onde o Wednesday o aguardava. Vice-campeão inglês, o clube apostava no novo chefe para tentar destronar o Tottenham. 

Sob a direção de Buckingham por três temporadas, o time ficou em sexto lugar repetidas vezes, enquanto o título foi sendo passado de mão em mão, do Ipswich ao Everton e, adiante, ao Liverpool. Ao final de seu contrato, os Owls não fizeram questão de renovar o vínculo.

A imagem de Vic ficou arranhada na Inglaterra por não ter levado o Sheffield às glórias. Mas, ainda que não tenha sido implicado nas acusações, também por ter tido três de seus atletas (Peter Swan, David Layne e Tony Kay) envolvidos no Escândalo Britânico de Manipulação de Resultados de 1964. Era difícil convencer o público de que ele era inocente. Voltar à Holanda foi uma alternativa interessante para o treinador, especialmente porque, sob a liderança dos ingleses Keith Spurgeon e Jack Rowley, além do austríaco Pepi Gruber, o Ajax estagnara, sem conquistar qualquer título.

Buckingham Barcelona
Foto: FC Barcelona/Arte: O Futebólogo

O segundo mandato de Vic Buckingham no Ajax durou apenas uma temporada e foi muito ruim. Os Godenzonen terminaram a Eredivisie na 13ª posição, três pontos acima do primeiro rebaixado, o Fortuna Sittard. Porém, a herança recebida era medíocre e o time vivia período de transição. Ao menos um movimento do treinador seria aclamado. 

“Ele podia fazer tudo: definir movimentos, voar pelos flancos, correr para a grande área, cabecear. Tinha pé esquerdo, pé direito, tudo — e essa velocidade”, comentou o comandante em outra passagem de Brilliant Orange: The Neurotic Genius of Dutch Football. No caso, “ele” era Johan Cruyff, que ganhou suas primeiras chances como profissional sob a direção do inglês.

O próprio Cruyff, em sua autobiografia, dedicaria algumas linhas a Buckingham: “Devo algumas coisas também a Vic Buckingham [...] Ele tinha dois filhos da minha idade, que ainda não tinham encontrado seu caminho em Amsterdã, e como minha mãe fazia limpeza para a família Buckingham, eu costumava ir à casa deles, e foi assim que aprendi inglês. Não na escola, mas conversando muito com a família Buckingham”.

Preparando o terreno em Barcelona


De Amsterdã, Buckingham voou diretamente para Londres, onde os representantes do Fulham o aguardavam. Os Cottagers esperavam que Vic conseguisse implementar seu famoso estilo de jogo de posse de bola, e troca rápida de passes, no time localizado na região oeste da capital inglesa. Além disso, dado que adquirira uma reputação no desenvolvimento de jovens, o treinador também seria avaliado pela transição de atletas das categorias de base ao time principal. No entanto, a volta à Inglaterra foi mais uma vez conflituosa.

Em sua chegada, o treinador disse gostar de “liberdade de expressão” em seu futebol. No frigir dos ovos, ele bateu de frente com algumas lideranças do time, que diziam que o treinador exigia dos jogadores coisas que eles não sabiam fazer. O trabalho não decolou. Em sua última temporada no estádio Craven Cottage, 1967-68, não conseguiu evitar o rebaixamento do time. Entretanto, depois de uma passagem relâmpago pelos gregos do Ethnikos Piraeus, Buckingham teve outra grande oportunidade na vida. Foi construir as bases de um novo futebol em outra grande praça.

English Newspaper Buckingham Fulham

Durante a Copa das Feiras de 1961-62, o Sheffield Wednesday de Vic Buckingham havia entregado dificuldades ao Barcelona, que tinha Evaristo de Macedo e Sandor Kocsis em seu ataque. O placar agregado registrou o avanço catalão pela margem mínima de um gol, 4 a 3. Segundo se conta, naquele momento, a diretoria culé anotou o nome do treinador a quem era atribuída certa evolução desde o estilo kick and rush, ainda que a imprensa barcelonista tenha feito notar que o gramado inglês, duríssimo, tenha ajudado os ingleses na partida de ida.

Program Sheffield Barcelona

Enfim, em dezembro de 1969, o Barcelona anunciou a chegada de Vic Buckingham. Ele seria o responsável por completar a temporada 1969-70. Na altura, o time estava flutuando entre o sétimo e o décimo primeiro lugares, em La Liga. Terminou em quarto. Na Copa do Generalíssimo, já havia sido eliminado e, na Copa das Feiras, caiu diante da Internazionale, nas oitavas de finais. Não foi uma grande temporada, mas as águas catalãs já estavam turbulentas quando de sua chegada. O saldo final foi visto como positivo.

Naquela época, eram proibidas as contratações de estrangeiros na Espanha, mas Buckingham mantinha conversas com Cruyff, expondo motivos pelos quais ele deveria se mudar para lá quando possível. E, em 1970-71, melhor sorte encontraria o treinador inglês. Vice-campeão de La Liga, com os mesmos 43 pontos do vencedor Valencia, o time teve como consolo o triunfo na Copa do Generalíssimo, também contra os Che. Com problemas nas costas, Vic se despediu do Barça ali, em alta.


Naquela altura, o Barça não estava de olho apenas em Cruyff, mas também no homem holandês que tinha sido capaz de tomar para si o legado de Buckingham no Ajax — e de trabalhar em cima dele.

“Ele é um bom treinador; pode ser o homem certo para o Barcelona. Responsável, disciplinado, inteligente, tem todas as virtudes para vencer [...] Expliquei-lhe o que significa o Barcelona, e outros detalhes da entidade. Também dei a ele um amplo dossiê, em que conto sobre os jogadores, os sócios, a diretoria, a imprensa, enfim, uma espécie de curriculum vitae do clube”, comentou Buckingham ao Mundo Deportivo.
Mundo Deportivo Vic Buckingham

“Ele” era Rinus Michels, o responsável pelo Futebol Total, que havia aproveitado as heranças de Jack Reynolds, seu treinador no passado, e de Buckingham, que deixara o terreno amsterdamês no ponto. Neste turno, o holandês ousaria repetir esse movimento em Barcelona. 

Até seu falecimento, em 1995, Vic não teria uma carreira das mais aclamadas. Viveria à sombra dos êxitos de Michels, que foram muitos e, indiscutivelmente, merecidos. Como o gentleman que era, Buckingham aceitou o lugar que a história lhe entregou, talvez por estar certo de ter dado valiosa contribuição.

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