Ásgeir Sigurvinsson, o islandês que abriu portas

Em 2021, aproximadamente 70 cidades do Brasil têm mais de 365 mil habitantes. Fora de contexto, o dado diz pouco. Porém, viajando aos países nórdicos, mais especificamente à Islândia, ele ganha relevância. Forçando um paralelo, fica evidente o quão pequenino é o país insular, cuja população inteira alcança cerca de 365 mil indivíduos. Sem adentrar outras questões — como a climática ou a prevalência de outros esportes —, não é difícil concluir que a mera existência de futebol competitivo na nação é um feito. E essa façanha tem alguns heróis. Um dos primeiros que deixou a ilha para desbravar o futebol europeu foi Ásgeir Sigurvinsson.

Asgeir Sigurvinsson Stuttgart
Foto: Skapti Hallgrímsson/Arte: O Futebólogo


Continuando os trabalhos de Albert Guðmundsson


Eram os idos de 1923. No dia 5 de outubro, em Reykjavík, nasceu aquele que seria o primeiro jogador de futebol profissional da história da Islândia. Avançando alguns anos na linha do tempo, no início dos anos 1940, em uma altura em que já havia atuado pelo Valur, o time dominante em seu país na época, Albert Guðmundsson viajou à Escócia. Em Glasgow, estudou Engenharia Naval — e conheceu o Rangers. O engenheiro que, nas horas vagas, dedicava-se ao futebol representou, os Gers de forma não oficial, em tempos de guerra.

Aliás, deve-se dizer que, no momento de sua travessia rumo às Ilhas Britânicas, a Islândia sequer era um país propriamente dito. Entre 1918 e 44, a região foi um reino ligado à Dinamarca, dotado de independência administrativa, mas vinculado ao monarca danês. Contudo, com a ocupação alemã no país escandinavo, uma ruptura na comunicação entre os locais colocou a Islândia em foco. Eventualmente, Inglaterra e, após, Estados Unidos invadiram a ilha, em uma tentativa de impedir o avanço germânico também para lá, sobretudo tendo em vista a posição estratégica do local, em termos marítimos e de espaço aéreo. Seria em 1944 que o país lançaria mão de um referendo, proclamando o fim da união com a Dinamarca e o desejo de uma constituição republicana, ambas as decisões alcançando mais de 98% de aprovação nas urnas.

Albert Guðmundsson
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Um homem de muitas vidas, Guðmundsson trocaria Glasgow por Londres em 1946. Ainda carregando o estatuto de atleta amador, disputaria amistosos e duas partidas oficiais do Campeonato Inglês pelo Arsenal, ante Stoke City e Chelsea. Entretanto, o atacante faria mais sucesso em terras continentais, depois de não conseguir uma licença de trabalho para permanecer na Inglaterra. Seu périplo o levaria a representar os franceses do Nancy, do Racing Club de Paris e do Nice, além dos italianos do Milan (que não desfrutariam tanto de seus préstimos, após uma lesão ligamentar).

No final da carreira, Albert acabaria retornando ao Valur, encontrando outra Islândia. Ele estava destinado a voos altos — não apenas por seu pioneirismo no esporte. Na volta para casa, presidiu a Federação Islandesa de Futebol, entre 1968 e 73, e, quando saiu, apostou na política. Em 1974, foi eleito representante de Reykjavík no Parlamento Islandês (o mais antigo da humanidade) e, sem sucesso, concorreu à presidência, em 1980. Mais tarde, ainda seria ministro das Finanças e, também, da Indústria.

Albert Guðmundsson

Talvez a vida futebolística de Guðmundsson — cujo filho, neta e bisneto chegaram à seleção islandesa — não tenha sido o ápice de sua trajetória. Mas, sem ele, muita coisa poderia não ter ocorrido. Sem as viagens de Albert, é possível que o mundo não conhecesse Ásgeir Sigurvinsson.

Abrir portas


Quando se fala em futebol islandês, é comum recordar os feitos de Eidur Guðjohnsen, dentre outros clubes, ex-Chelsea e Barcelona — os mais privilegiados mnemonicamente podem, inclusive, recordar que o atacante chegou a atuar com seu pai com a camisa da seleção. Menos evidente é o brilho de um outro atleta islandês, que mal tinha alcançado a maioridade quando foi tentar a vida na Bélgica e que, mais tarde, desfilou bom futebol em solo germânico na década de 1980.

Considerado o maior jogador de futebol da história da Islândia, segundo pesquisa promovida pela Federação Islandesa de Futebol em parceria com um canal de televisão (além de ter sido escolhido para receber o Prêmio do Jubileu da UEFA, em 2003), Ásgeir Sigurvinsson triunfou no Standard de Liège dos anos 1970, passou rapidamente pelo Bayern de Munique, conquistando uma Copa da Alemanha, e brilhou no Stuttgart, onde foi referência, capitão e encerrou a carreira.

áSGEIR sIGURVINSSON Standard Liège
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Sigi, como ficou conhecido, deu seus primeiros passos no modesto ÍBV Vestmannaeyjar, equipe centenária da cidade de mesmo nome. Em seu tempo, foi o jogador mais novo a vestir a camisa da seleção islandesa, estreando aos 17. Pelo ÍBV, também aos 17 anos e antes de partir para a Bélgica, conquistou uma Copa da Islândia, seu único título no time.

Conhecido pela qualidade para controlar o jogo, conduzir a bola, construir jogadas, além da precisão do chute de canhota, o meio-campista marcou época com a camisa do Standard Liège, que o recebeu em 1973. Em oito anos no clube, somando mais de 300 partidas disputadas, conquistou um título: a Copa da Bélgica de 1981. Curiosamente, antes de partir para Liège, o jogador receberia uma oportunidade importante, recusada. Convidado para treinar no Rangers (outrora casa de Albert Guðmundsson), chegou a receber um contrato, mas optou por não permanecer.

Em 1981, após sua única conquista com o Standard, Ásgeir partiu para o poderoso Bayern de Munique, pelo qual conquistou um título da Copa da Alemanha. A despeito disso, sua única temporada no clube foi marcada bem mais pelo excesso de horas no banco de reservas do que propriamente por glórias. A bem da verdade, é provável que a permanência na Bélgica tivesse sido uma ideia melhor. Após sua transferência para a Alemanha, o time de Liège contratou o treinador Raymond Goethals e mais conquistas não demoraram a chegar.

Asgeir Sigurvinsson Stuttgart
Foto: Stuttgart/Arte: O Futebólogo

Seja como for, sem espaço na Baviera, o meia seguiu imediatamente para o Stuttgart. Com a camisa dos Roten, Sigurvinsson alcançou seu melhor nível. Em sua primeira temporada pelo clube, o terceiro lugar da Bundesliga sinalizou o que estava por vir e, logo na sequência, em 1983-84, o Stuttgart conquistou a Bundesliga. Sigurvinsson, autor de 12 gols em 31 partidas, recebeu o título de melhor jogador da temporada — em votação dos próprios atletas que disputaram o campeonato.

Nos anos que se seguiram, compartindo lugar no campo com figuras da importância de Jürgen Klinsmann, não voltou a conquistar títulos, mas se tornou o capitão do time. Em 1989, bateu na trave na Copa da UEFA, perdendo a final para o Napoli de Maradona, Alemão e Careca – no que seria seu último grande momento. Já no ano seguinte, após conduzir o time a um honroso sexto lugar na Bundesliga, Sigurvinsson pendurou as chuteiras. Por sua seleção, atuou entre 1972 e 89, entrando em campo 45 vezes e marcando cinco gols.


De geração a geração


Sigurvinsson foi um dos primeiros jogadores de seu país a romper as fronteiras islandesas e brilhar em outros centros. Embora não seja tão lembrado, é certo que a torcida do Standard Liège e, sobretudo, a do Stuttgart não o esquece – assim como os próprios islandeses, que o têm como referência. Como Sigi reconheceu em entrevista à revista Placar, o futebol na Islândia não é para muitos, o que, por outro lado, conduz ao entendimento de que, embora pequeno em termos absolutos, o número de jogadores exportados para praças mais proeminentes no futebol é proporcionalmente alto.

“Pessoas ao redor do mundo me dão os parabéns por uma nação tão pequena produzir tantos jogadores para as principais ligas europeias. Somos muito poucos, os outros países contam com muito mais mão de obra”.

Entre 2003 e 05, Ásgeir comandou a seleção da Islândia, sem êxito. Durante esse período, ao site oficial da UEFA, falou sobre o que considerava ser o problema central do futebol islandês, dando sua explicação para um padrão do qual foi exceção, em um tempo ainda mais difícil para o futebol do país.

Asgeir Sigurvinsson
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

“Nós sempre tivemos bons e promissores jovens jogadores e, felizmente, clubes estrangeiros têm mostrado interesse na Islândia. O problema na Islândia é a curta temporada. Desde os 18 anos os jogadores precisam ir para outros países jogar futebol o ano inteiro. Você nunca pode esperar ter onze jogadores de classe mundial. Todavia, as pessoas têm olhado a Islândia há anos e espero que isso continue”.

A mais cultuada geração de jogadores islandeses, que alcançou seu ápice na Euro 2016, chegando, ainda, à disputa da Copa do Mundo de 2018, provou ser possível a expansão do futebol islandês. Mesmo que isso signifique o êxodo para outros países. O elenco que disputou o torneio continental não contava com atletas em atividade na Islândia; o que foi ao Mundial da Rússia teve um, o defensor Birkir Már Sævarsson, que fez a maior parte de sua carreira na Noruega e na Suécia.

Conforme os anos transcorreram, Sigurvinsson foi ficando para trás nos rankings de atuações pela seleção islandesa e de gols marcados. Porém, os anos 1970 e 80 ainda representavam um outro tempo, o que ajuda a compreender o fato de que nomes como os de Arnór e Eidur, pai e filho do clã Guðjohnsen e que surgiram após Ásgeir, são mais citados nas noticías e botequins, quando comparados ao de Sigurvinsson. 

Não parece, contudo, absurdo pensar que foi o desempenho de Sigi no Standard Liège que abriu as portas da Bélgica para Arnór, que atuou longamente por Lokeren e Anderlecht. Por sua vez, os êxitos do patriarca Guðjohnsen ajudaram a carreira de seu descendente a decolar.

Arnor Eidur Gudjohnsen
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Por mais que Albert Guðmundsson tenha sido quem, efetivamente, desbravou a Europa em um primeiro momento, pelos feitos, a consistência da carreira e o momento histórico, distante do pós-guerra e com a revolução das telecomunicações em marcha, é Sigi quem melhor representa o pioneirismo no futebol islandês, cujo bastão foi sendo passado de mão em mão — chegando, outra vez, a Albert Guðmundsson, o bisneto.

*A primeira versão deste texto apareceu em Doentes por Futebol, em 26 de setembro de 2015

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