O pioneirismo do Bahia em 1959-60

Para tudo há uma primeira vez. Em 1959, o Brasil conhecia a primeira versão de um campeonato de clubes com âmbito nacional. Nascia a Taça Brasil. Favorito, o Santos carregava craques da mais alta estirpe, campeões do mundo, como Zito, Pepe, e ele, Pelé. Porém, o título ficaria com o bicampeão baiano de então, o Bahia. E o Tricolor de Aço não seria pioneiro apenas em território nacional, já que, em 1960, seria disputada a primeira edição da Copa Libertadores da América, cabendo aos baianos a honra de representar seu país.

Bahia Taça Brasil 1959
Foto: EC Bahia/Arte: O Futebólogo


Ciclo global de influências


Costuma-se falar que o mundo dá voltas. Quando viajaram à América do Sul, nos idos de 1948, os jornalistas franceses Gabriel Hanot e Jacques Ferran, do famoso l’Equipe, acompanharam uma novidade. Estava em curso o Campeonato Sul-Americano de Campeões, que viria a consagrar o Vasco da Gama como campeão. Seu conceito, opondo os campeões nacionais de cada país do continente, interessou os visitantes ao ponto extremo de influenciar a criação da Copa dos Campeões da Europa.

Enquanto os europeus consolidaram a sua própria competição continental, os sul-americanos não repetiriam o certame inspirador. Foi somente quando, por influência europeia, surgiu a ideia de viabilizar um embate intercontinental — para revelar qual seria o melhor time de futebol do planeta —, que a América do Sul se mobilizou para criar a sua Copa dos Campeões (batizada como Copa Libertadores anos mais tarde). Era vivido o ano de 1958 e, após alguma discussão, ficou definido que em 1960 seria disputada a primeira edição do torneio continental sul-americano.

Para o Brasil, aquilo gerava uma implicação prática: quem representaria o país, que não possuía uma competição de alcance nacional? No isolado ano de 1948, o Vasco fora escolhido para a missão como campeão do Campeonato Carioca, o que era um tanto quanto arbitrário, mesmo que o Rio de Janeiro fosse a capital nacional. Além disso, em meados dos anos 1950, já se discutia a criação de um torneio de dimensões nacionais, ainda que as dificuldades logísticas da época desafiassem essa ideia.

Palmeiras Copa Rio 1951
Foto: SE Palmeiras/Arte: O Futebólogo

Em 1951 e 52, organizada pela Confederação Brasileira de Desportos, foi jogada a Copa Rio Internacional, algo como um incipiente Mundial de Clubes, vencido respectivamente por Palmeiras e Fluminense. O objetivo original era gerar embates entre os melhores clubes das nações participantes da Copa do Mundo de 1950 — que, supostamente, representariam a nata do futebol do planeta. Entretanto, os planos não saíram como idealizados. Exemplo é o fato de que, nas edições consumadas, o Brasil contou com dois representantes, os campeões estaduais de Rio de Janeiro e São Paulo.

Depois da segunda disputa, foi determinado que a competição deveria ter periodicidade quadrienal, como a Copa do Mundo. Ou seja, ocorreria novamente em 1956. Até lá, o Brasil instituiria uma competição nacional, cujo vencedor representaria a nação verde e amarela — ou essa era a ideia. Em 1955, a cidade de Belo Horizonte sediou o Congresso do Futebol Brasileiro, em que foi definida a criação da Taça Brasil. Contudo, com os calendários dos clubes devidamente planejados para as temporadas de 1956, 57 e 58, sua estreia teve de ser postergada para o ano de 1959. A Copa Rio Internacional não aconteceria outra vez.

O campeão baiano busca triunfar nacionalmente


Tal como concebida, a Taça Brasil colocou em choque os campeões estaduais do país. Em sua primeira edição, 15 estados — e o Distrito Federal, que ainda era o município do Rio de Janeiro — enviaram representantes. Estes foram divididos em grupos regionalizados, em uma tentativa de amenizar dificuldades financeiras e de logística. A única discrepância entre os participantes dizia respeito aos representantes de São Paulo e do Distrito Federal, que entravam na competição na fase final.

Como campeão baiano, o Bahia foi alocado no Grupo do Nordeste, acompanhado por ABC, Ceará e CSA. O Bahêa vivia um momento importante. Além da boa fase no campeonato estadual, estava em lua de mel com a Fonte Nova, estádio inaugurado em 1951, e vinha obtendo resultados expressivos também no nível internacional. Em 1957, por exemplo, o time vencera, com autoridade, um amistoso ante o Benfica de Mario Coluna: 4 a 1.

Na Taça Brasil, todas as disputas aconteciam em mata-matas. Conforme sorteio, dois times se enfrentavam, ao que se seguia uma final entre os vencedores dos primeiros confrontos. Liderado por Ephigênio de Freitas Bahiense, o Geninho, que como atleta conquistara a idolatria da torcida do Botafogo, o time teve de superar os alagoanos do CSA, no primeiro desafio. E o fez com autoridade. Já na ida, em Maceió, o Tricolor de Aço venceu por 5 a 0, com um triplete do ponta de lança Alencar. Na volta, o 2 a 0 confirmou a passagem do Bahêa à decisão do grupo.

Bahia 1959
Foto: O Globo/Arte: O Futebólogo

Os baianos, segundo se conta, apresentavam uma abordagem moderna do jogo. Como a Canarinho de 1958, o esquema tático escolhido foi o 4-2-4, preterindo o famigerado WM (3-2-5). Na altura, o versátil defensor Vicente fazia dupla na retaguarda com Henrique, Flávio exercia as funções de volante e Ari era o armador. À frente, Marito e Biriba ocupavam as pontas, Alencar era o ponta de lança e Léo Briglia (que na altura suplantara o ídolo Carlito) fazia a função de centroavante. Foi mais ou menos com essa formação que o time superou o Ceará na final do grupo.

Em partidas muito equilibradas, os clubes empataram duas vezes, por 0 a 0 e 2 a 2. Na época, não havia qualquer critério relacionado a gols, prevalecia apenas o resultado — vitória, derrota e empate. Um terceiro jogo foi convocado e, na prorrogação, o Bahia confirmou seu avanço à fase seguinte, com um sofrido 2 a 1 — cortesia de Léo Briglia.

Adiante, o Tricolor enfrentou o Sport, que vencera o Grupo Norte, suplantando Auto Esporte e Tuna Luso. E a loucura tomou conta daquela eliminatória. Na primeira partida, em Salvador, o Bahia suou a camisa, mas arrancou uma vitória por 3 a 2. O problema foi a volta… 

Quando algo inusitado e distante do expectável acontece, sempre se buscam justificativas. No caso, a viagem dos baianos para Recife teria atrasado horas. Supostamente, o único que havia a se fazer era beber e fumar. Assim, os jogadores pisaram no gramado da Ilha do Retiro acabados. Essa seria a explicação para o 6 a 0 imposto pelo Leão. Contudo, os placares não se somavam. Um triunfo por 1 a 0 era igual um por 6 a 0. Em uma terceira partida, o Tricolor voltou a vencer, 2 a 0, autoproclamando-se Campeão do Norte-Nordeste.

Pela coroa brasileira, embate com o Rei


Tendo chegado à semifinal, o Bahia teria pela frente a força do Vasco da Gama. Treinado pelo rígido Yustrich, o cruzmaltino era liderado por Bellini na zaga, ninguém menos do que o capitão da Canarinho em 1958, apostando ainda nos talentos de Almir Pernambuquinho e do veteraníssimo Pinga. A história dos três jogos voltou a se repetir. Em pleno Maracanã, o Tricolor venceu pela margem de um gol. O Globo do dia seguinte indicou o tom do acontecimento: “Sensacional vitória do Bahia”.

“O quadro dirigido pelo antigo botafoguense Geninho apresentou realmente na noite de ontem no Maracanã uma excelente exibição, que agradou a todos. Não possui valores excepcionais, individualmente, mas vale como conjunto bem armado em sua defesa e bem movimentado em seu ataque. Preferindo jogar com a bola no chão, o Bahia mostrou um padrão tático geral de 4-2-4, mas com o correr do jogo muitas vezes derivou para 4-3-3, como o recuo decidido de Marito para trabalhar ao lado de Flávio e Ari”, indicou o periódico.

O Globo Bahia Vasco 1959

Bom desempenho à parte, em seus domínios o Bahia foi derrotado por 2 a 1, o que forçou um terceiro encontro. Outra vez em Salvador, bastou um tento solitário de Léo Briglia. “Bahia venceu Vasco e garantiu vice do Brasil”, clamou o Jornal do Brasil. Fora o gol, o jogo foi marcado por agressão de Almir no Tricolor Beto, que originou grande confusão. Mas, no fim, para irresignação carioca, o Bahia triunfou: “A vitória do Bahia, que voltou a usar uma tática defensiva, o 4-4-2, foi justa e valeu pelo esfôrço de seus jogadores”, indicou a publicação que sugeria que o título do Santos, também finalista após eliminar o Grêmio, estava garantido.

No dia 10 de dezembro de 1959, a final começou a ser disputada. Na Vila Belmiro, o Esquadrão de Aço venceu por 3 a 2, virando o placar na marra, aos 44 minutos da etapa final. Pelé e Pepe marcaram para os donos da casa, com Biriba e Alencar (duas vezes), dando a vantagem aos baianos. Brevemente, a Folha de São Paulo indicou: “Surpreendido o Santos pelo Bahia”. Na volta, entretanto, o Tricolor de Aço se complicou. Coutinho e Pelé garantiram um triunfo ao Peixe, 2 a 0. Então, o Maracanã recebeu o decisivo jogo extra.

Jornal do Brasil Bahia Vasco Santos 1959

Nadinho; Nenzinho, Henrique, Beto e Vicente; Flávio e Mário; Marito, Alencar, Léo e Biriba. Com estes onze atletas, o Bahia subiu ao gramado do Templo do Futebol Mundial. Do outro lado, o Santos alinhou Lalá; Getúlio, Mauro, Formiga e Zé Carlos; Zito, Mário; Dorval, Pagão, Coutinho e Pepe. Com amigdalite, Pelé ficou fora do jogo final. Aliás, vale dizer que a partida aconteceu apenas no dia 29 de março de 1960, devido ao recheado calendário do Peixe. Também não se pode omitir que, naquela altura, Geninho pedira suas contas junto ao Bahia. Em seu lugar, o argentino Carlos Volante, vencedor do Campeonato Baiano em 1953 e 55 pelo rival Vitória, era quem dava as cartas.

“Embora fosse Volante nosso comandante na final, o Bahia deve muito a Geninho, treinador durante toda a competição, a conquista do título da primeira Taça Brasil. Não tinha erro, eu dava o bote, Vicente permanecia. Se Vicente ia para a caça, eu fazia a cobertura”, comentou o zagueiro Henrique, conhecido como o “Gigante de Ébano”, em entrevista ao Jornal Correio.

Bahia Jornal Campeão Taça Brasil

A história da saída de Geninho é imprecisa e, à época, causou estranheza ao público. Certo é que, mesmo com o triunfo inicial na Vila Belmiro, o Bahia seguia sendo um azarão. 

“Sabíamos que nossa equipe também era boa, com jogadores como Flávio, Henrique, Mário, Vicente, Beto. E eu, claro, que era um craque de futebol”, comentou Léo Briglia, em entrevista ao Estadão. Na Hora H, o Bahia não deu margem para dúvidas. Depois de Coutinho adiantar o Santos no marcador, Vicente empatou; Léo, o artilheiro da Taça Brasil com oito gols, virou; e Alencar consumou o histórico 3 a 1. O Bahia era campeão nacional, recebendo a taça das mãos do presidente da república, Juscelino Kubitschek.

Durante a campanha, o Esquadrão disputou 14 partidas, vencendo nove, empatando duas e perdendo três. Ao todo, balançou as redes 25 vezes, concedendo 18 tentos. A próxima parada era a glória continental, que começaria a ser disputada 22 dias depois.

Bahia Léo Briglia Taça Brasil 1959
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Na América, confronto com um craque histórico


No dia 20 de abril, o Bahia iniciou sua saga sul-americana. Em nota do JB, Volante dava indícios do que viria a ocorrer: “Mesmo sem os reforços que queria, o Bahia não fará feio”. Curiosamente, o argentino era irmão do presidente do Lanús, o que permitiu ao Tricolor Baiano a utilização das instalações do clube Granate. Isso era importante, porque na primeira fase os brasileiros precisariam depor a potência de um histórico time do San Lorenzo — depois de a delegação baiana experimentar problemas na chegada à Argentina, já que seus integrantes desembarcaram sem visto consular ou de turista.

Quando a bola enfim rolou no estádio Jorge Newbery, casa do Huracán e que havia sido renovada em 1949, ficou claro que os Cuervos tinham um time especial. No ataque, o time de Almagro levava a figura de seu maior artilheiro histórico, José Sanfilippo (que até atuaria no Bahia entre 1968-71, sendo bicampeão baiano e marcando 60 gols), autor de um total de 217 tentos pelo Ciclón. Além dele, estavam presentes os selecionáveis argentinos Héctor Facundo, Miguel Ruiz, Oscar Rossi e Norberto Boggio. Já os baianos levavam a campo essencialmente o mesmo time da decisão contra o Santos, exceto pela entrada de Leone na vaga de Nenzinho.

Jornal dos Sports Bahia San Lorenzo

Os donos da casa se impuseram: 3 a 0. Na volta, em Salvador, o Bahêa teve brio. Imparável, Sanfilippo marcou duas vezes, mas Carlito, Flávio e Marito deram a vitória aos brasileiros. O problema é que, na Libertadores, a diferença dos placares tinha peso. Com um 5 a 3 na soma dos marcadores, o Ciclón seguiu adiante. 

“O San Lorenzo jogou na defensiva, depois que marcou o ‘goal’ de empate, de autoria de Sanfilippo, aos 12 minutos, cobrando uma falta, falhando o goleiro Nadinho. Faltavam dois minutos para o encerramento do prélio, quando o juiz paraguaio ‘arranjou’ um ‘penalty’ a favor dos baianos”, relatou O Globo.

O Bahia caiu de pé. Naquele ano seria campeão baiano, o que se repetiria nos dois anos seguintes, consagrando um pentacampeonato. Contudo, a boa fase acabaria ali, sendo retomada apenas no final da década, quando o outrora algoz, Sanfilippo, já defendia o time. Nada disso, entretanto, diminui o fato de que, em uma altura em que o futebol brasileiro era amplamente pautado pelo que acontecia em Rio de Janeiro e São Paulo, o Bahia tenha se tornado o primeiro campeão da Taça Brasil e, de quebra, o pioneiro brasileiro na Copa Libertadores da América.

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