A Fiorentina que foi do Scudetto à glória europeia

Tradicionalmente, o norte da Itália concentra as equipes de futebol mais poderosas da nação. Após a Segunda Guerra Mundial, isso ficou especialmente evidente. Os 10 primeiros títulos do Campeonato Italiano do pós-guerra foram repartidos entre Torino, Juventus, Milan e Internazionale. Contudo, na metade dos anos 1950, surgiu um estranho no ninho. Vestida de violeta, veio de Florença a força responsável pela ruptura da hegemonia nortenha.

Fiorentina 1955-56
Foto: La Gazzetta dello Sport/Arte: O Futebólogo


Novo comando


Quase toda história tem personagens marcantes; figuras que balizam o limite que há entre o sucesso e o fracasso. Quando Enrico Befani assumiu a presidência da Fiorentina, o Stadio Comunale, que anos mais tarde ficaria conhecido como Artemio Franchi, não tardou a ganhar nova vida. Era o final do ano de 1951, especificamente a véspera de Natal, quando o empresário da indústria têxtil foi eleito para assumir o comando da Viola. Nascido na vizinha Prato, substituiu Carlo Antonini. O timing da troca não era ruim, com o clube tendo terminado as três últimas temporadas entre os cinco primeiros. Contudo, a distância para o topo ainda era grande.

Aos 41 anos, Befani transportou para a estrutura organizacional da Fiorentina os conhecimentos adquiridos a partir de suas próprias empreitadas na iniciativa privada. Era um homem com uma visão peculiar de como as entidades deveriam funcionar e que tinha, também, facilidade para lidar com dinheiro. Uma de suas primeiras medidas foi trazer de volta, como consultor, Artemio Franchi, lendário dirigente violeta. Além disso, Befani apresentava a percepção de que não valia a pena apostar na continuidade de processos que se prolongam no tempo sem que os resultados esperados se apresentem. Sua avaliação do trabalho do treinador Renzo Magli foi rápida.

Enrico Befani Fiorentina
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Contratado em 1951, após uma passagem pelo Empoli, o comandante fora o responsável por uma campanha de 4º lugar da Viola, em 1951-52. Para alguém como Befani, era natural que essa colocação se transformasse em algo melhor no curto prazo. Entretanto, na metade da Serie A de 1952-53 — a 17ª rodada —, a Fiorentina vinha em uma sequência de resultados ruins. Nos últimos dez jogos, registrava cinco derrotas (Como, Torino, Milan, Sampdoria, Inter) e cinco empates (Lazio, Atalanta, Bologna, Pro Patria e Triestina). Diante disso, Enrico agiu: trocou Magli por Fulvio Bernardini.

O novo chefe chegava do Vicenza, já reconhecido pelo espírito arrojado, vanguardista e inovador. Aos 49 anos, tratava-se de uma aposta, mas de alguém que se encaixava no contexto idealizado por Befani: tinha talento e vontade de progredir na carreira. Como atleta, atuara pela seleção italiana nos anos 1920 e 30. E a sorte do time mudaria bastante logo no princípio de seu trabalho. O segundo turno da Fiorentina foi marcado por oito vitórias, quatro empates e cinco derrotas (ainda que uma delas tenha sido um massacre de 8 a 0, ante a Juventus). O time terminou o campeonato na sétima posição.

Conhecido como “O Doutor”, devido ao fato de ter tido um passado universitário (embora não em Medicina), Bernardini não demorou a colocar a mão na massa e extrair o que aquele time tinha de melhor. O elenco, que já contava com peças da qualidade de Sergio Cervato, Giuseppe Chiappella e Francesco Rosetta, recebeu contratações importantes, vindas da própria Itália: o meia Guido Gratton, o jovem goleiro Giuliano Sarti (que também faria história na Internazionale), e o garoto Giuseppe Virgili, que seria o centroavante da equipe.

Fulvio Bernardini Fiorentina
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Contudo, os diferenciais técnicos viriam da América do Sul. “Se conseguirmos contratar o Julinho, ganharemos o Scudetto”, teria dito Bernardini. O referido jogador é o brasileiro Julinho Botelho, então destaque da Portuguesa e que havia encantado Fulvio durante a Copa do Mundo de 1954 — em que a Viola cedera seis jogadores à Itália. 

Depois de uma longa negociação com a Lusa, um ano após o Mundial ele desembarcou em Florença, para substituir o veterano sueco Gunnar Gren, que vinha tendo problemas com o treinador. A outra peça fundamental para a estrutura do time viria da Universidad Católica. Argentino de nascimento, o meia Miguel Montuori atuava no Chile e era um oriundi — acabaria representando a Squadra Azzurra.

“Julinho e Montuori, quando dizem que jogam o seu máximo? Você já os viu no seu melhor? Não é sequer esporte mais. Estamos em um minueto, um Boccherini [Luigi, violoncelista clássico italiano] [...] Quem são esses atletas? Eles são dançarinos de balé”, disse Befani, ao Corriere della Sera, em 1956.

A primeira consagração em 1955-56


Fulvio Bernardini não foi um revolucionário na hora de adotar uma tática, esse rótulo lhe coube pela forma como propôs a aplicação de seu esquema. A base de seu time era o já consolidado WM. Se a famosa Hungria de 1954 propôs um MM, recuando seu centroavante — o notável Nándor Hidegkuti —, o técnico violeta aplicou algo que ficou conhecido como “WM elástico”.

Em sua chegada a Florença, o líder encontrou um time que tinha boas soluções defensivas, mas precisava se encontrar criativamente. O que a Viola tinha de bom perdurou, encontrando a sintonia fina nos pontos que andavam deficientes. Aliás, não só neles, já que Bernardini escolheu trocar o arqueiro e ídolo Leonardo Costagliola pelo inexperiente Sarti, mais tarde conhecido como o “Goleiro de Gelo”. Privilegiando o que convencionou chamar de jogadores com “bom pé”, Fuffo — outra de suas alcunhas — potencializou o ataque do time.

O WM era de onde a Fiorentina partia. Porém, não representava o time em todos os momentos. Cervato e Ardico Magnini eram os principais defensores da equipe, no 2-3-5. Ainda assim, tinham liberdade para avançar no terreno, já que Rosetta, Chiappella e Armando Segato estavam sempre atentos às coberturas. Com uma ideia de jogo ofensiva, e jogadores tecnicamente privilegiados, quando pronto, o time violeta não teve muitas dificuldades para se impor perante seus adversários.

Julinho Botelho Fiorentina
Foto: Archivio Torrini/Arte: O Futebólogo

A estreia na Serie A de 1955-56 foi um jogo atípico. Fora de casa, a Viola empatou com o Pro Patria, 2 a 2. Sofrer dois gols de um time que seria rebaixado se mostraria algo anormal. Tal ficaria claro já nas rodadas seguintes. Depois de vencer estoicamente o Padova, 1 a 0, a Fiorentina mostrou todo o seu potencial. Em Turim, Montuori, Virgili (duas vezes) e Magnini garantiram um triunfo maiúsculo diante da Juventus: 4 a 0.

Sem dar chances para o azar, a equipe de Fulvio Bernardini foi varrendo seus adversários. Simplesmente não perdia. Depois do triunfo diante da Vecchia Signora, empataria com a Inter, e seguiria alcançando bons resultados, como uma vitória bem conseguida diante do Milan de Nils Liedholm, Gunnar Nordahl, Juan Alberto Schiaffino e Cesare Maldini, em Milão, na 10ª rodada — gols de Montuori e Virgili. Aos poucos, a Viola foi desconstruindo a hegemonia nortenha. Apesar de empatar muito, vindo a ser a segunda que mais o fez, atrás da Juventus e igualada com Roma, Spal e Vicenza, a Fiorentina seguiu sem perder.

Os homens de Florença quase conseguiram terminar o campeonato invictos. Foi apenas na última rodada que o time violeta perdeu, sofrendo gol de Gunnar Gren, então jogador do Genoa, numa espécie de vingança após sua saída conturbada do Stadio Comunale. Porém, naquela altura, a Fiorentina já era, há tempos — desde a 29ª rodada, empate com a Triestina —, campeã nacional, a primeira da região dos Apeninos. Aquele time entrou em campo com Sarti; Magnini, Cervato; Chiappella, Rosetta, Segato; Julinho, Montuori, Virgili, Gratton e Prini.

Montuori Sarti Fiorentina
Foto: Lapresse/Arte: O Futebólogo

A numeralha deixa evidente o tamanho da façanha da Viola. Em 34 rodadas, concedeu apenas 20 gols. Como comparativo, a segunda melhor defesa do certame, da Inter, buscou 36 bolas em suas redes. Lá na frente, foram consumados 59 tentos. Somente o vice-campeão Milan, inferiorizado por 12 pontos, e o Bologna tiveram números melhores.

Mesmo diante de dados tão impressionantes, o maior deles acaba sendo mesmo o de derrotas. A única derrota da Fiorentina é confrontada com nove perdas de Milan, Lazio e Juventus, os segundos melhores colocados no quesito. Na artilharia, Virgili foi o líder da Fiorentina, com 21 tentos. Ficou atrás de Gino Pivatelli, do Bologna, com 29, e do milanista Nordahl, autor de 23 gols.

Chute na trave europeia


Campeã italiana, a Viola teve a missão de representar a Itália na Copa dos Campeões de 1956-57. No ano anterior, o Milan levara o Bel Paese até as semifinais, caindo diante do Real Madrid — o futuro campeão. O que se viu foi uma inversão de papéis. Enquanto os Rossoneri recuperaram o título italiano, a Fiorentina, que terminaria com a segunda colocação no nacional, fez bonito em terreno continental.

Apresentando essencialmente o mesmo time da campanha anterior, os florentinos começaram sua carreira internacional diante dos suecos do Norrköping. Aquele não era um time qualquer. Além de ser o campeão de seu país, emplacaria quatro jogadores na seleção sueca de 1958, vice-campeã mundial. O lateral Sven Axbom seria, inclusive, titular na decisão diante do Brasil. No Comunale, um empate por 1 a 1 deixou a eliminatória em aberto. Na partida de volta, Virgili fez o solitário tento da classificação violeta.

A vida dos comandados de Bernardini seguiria difícil na fase seguinte. O adversário da vez seria o suíço Grasshopper. Em Florença, a Fiorentina fez o dever de casa, conquistando um 3 a 1 tranquilo. Em Zurique, os Gafanhotos deram trabalho, vendendo caro um empate por 2 a 2 e com pressão até o final da disputa.

Fiorentina Estrela Vermelha Mundo Deportivo
Acervo Mundo Deportivo

Sem demonstrar intimidação nos jogos como visitante, nas semifinais, a Viola voltou a consolidar sua força em terras estrangeiras. Contra o Estrela Vermelha, do icônico goleiro Vladimir Beara, titular da seleção iugoslava, um tento solitário de Maurilio Prini, aos 43 minutos do segundo tempo, foi o fiel da balança. Em Belgrado. Na Itália, o zero não deixou o placar. Enquanto isso, na outra chave, o Real Madrid despachou os Busby Babes, o time de prodígios do Manchester United, que, dentre outros, contava com os préstimos de Bobby Charlton.

Classificada para a decisão, a Fiorentina já tinha feito mais do que o Milan no ano anterior. Entretanto, teria que superar o algoz milanista para se tornar campeão europeu, e que decidiria em casa. O Real Madrid seguia sendo uma máquina. Tinha superado Rapid Viena, Nice, e os citados Red Devils no caminho à final. O Estádio Santiago Bernabéu aguardava as equipes abarrotado. Mais de 120 mil pessoas se acotovelavavam nas arquibancadas madrilenhas. O que elas viram foi a aguerrida Fiorentina segurando os Merengues até a fase final do jogo.

Forentina Real Madrid Mundo Deportivo
Acervo Mundo Deportivo

O zero persistiu no marcador até os 25 minutos da etapa derradeira. Foi quando o árbitro holandês, Leopold Horn, assinalou uma penalidade máxima. Os italianos reclamaram, querendo que o juiz consultasse seu auxiliar, argumentando ter havido impedimento na raiz do lance. Após rápido diálogo, a falta foi confirmada. Alfredo Di Stéfano converteu a cobrança. Seis minutos depois, Paco Gento deu números finais à contenda: 2 a 0 para o Real Madrid, sob os olhares do ditador Francisco Franco. Se iniciava ali uma saga dura de vices para a Fiorentina.


1960-61: com a Recopa, um título Europeu


A vida em Florença se tornaria mais amarga nos anos seguintes. Por mais que a Fiorentina seguisse no mesmo caminho, com planejamento e bons jogadores, novos títulos não vinham. Por melhores que fossem as campanhas dos florentinos, os times do norte eram fortes demais. Entre 1957-58 e 1959-60, a Viola consumou mais três vice-campeonatos nacionais, aos quais se somaram mais duas finais perdidas na Coppa Italia.

Embora tenha flertado com uma saída da Fiorentina após o título italiano, Befani seguia no comando do clube. Mantendo suas ideias, foi promovendo mudanças estruturais na equipe. Em 1958, Bernardini foi trocado pelo húngaro Lajos Czeizler. Em pouco tempo, outras trocas aconteceriam, até a chegada de Hidegkuti. Dentro dos campos, as mudanças igualmente se verificariam. Com saudades de casa, Julinho fechou com o Palmeiras também em 58. Na mesma altura, Virgili assinou pelo Torino.

Toda sorte de situações aconteceriam. Das categorias de base da Viola, surgiu o goleiro Enrico Albertosi. Como Sarti sucedera Costagliola, Albertosi deixaria Sarti no banco, antes deste sair para a Inter. O sucesso do arqueiro seria sem precedentes, assim como o do ponteiro que substituiu Julinho. O sueco Kurt Hamrin, contratado ao Padova, acabaria se tornando um dos grandes ídolos da história da Fiorentina. Outro grande negócio seria a contratação de Gianfranco Petris, atacante da Triestina.

Albertosi Hamrin Fiorentina
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Com esse time, a Fiorentina voltaria a viver dias de glória. Ainda assim, 1959-60 seria uma dessas temporadas acres para a torcida violeta. O título da Serie A foi perdido para a Juventus, assim como o da Coppa Italia — este com gol contra na prorrogação. Porém, foi somente devido ao sucesso duplo da Vecchia Signora que a Fiorentina se classificou para a disputa da primeira edição da Recopa Europeia. Com Hidegkuti na casamata, ao lado de um certo Chiappella, recém-aposentado, a Viola voltou a sonhar com uma glória continental.

A primeira fase foi um passeio, como o placar agregado de 9 a 2 não deixa dúvidas. Os destaques da eliminatória seriam Hamrin e o brasileiro Antoninho, ex-Palmeiras e Botafogo de Ribeirão Preto, autores de quatro e três gols, respectivamente. Os suíços do Luzern nem viram o que os atingiu. O triunfo levou os florentinos diretamente às semifinais do certame, em que os iugoslavos do Dinamo Zagreb os esperavam. A parada foi decidida já na partida de ida. Antoninho, o também brasileiro Dino da Costa, emprestado pela Roma, e Petris marcaram no 3 a 0. Em Zagreb, a Viola perdeu, mas o 2 a 1 foi insuficiente para concretizar as pretensões eslavas.

Depois de eliminarem o Wolverhampton, os escoceses do Rangers seriam os adversários da Fiorentina na decisão. Desta vez, prevaleceu o elemento surpresa violeta. O polivalente meia Luigi Milan marcou os dois gols do triunfo italiano na Escócia, 2 a 0. Em seus terrenos, no Stadio Comunale, Milan e Hamrin garantiram o título toscano, nada adiantando o tento de honra registrado por Alex Scott, 2 a 1. Embora aguerrido, e por vezes violento, o Rangers não fez o suficiente para impedir a festa em Florença.


E os festejos durariam semanas, sobretudo porque, cerca de 15 dias depois do triunfo continental, a Fiorentina recebeu a Lazio, para a final da Coppa Italia. Petris abriu o placar logo aos quatro minutos da etapa inicial. Já na fase final da decisão, ele, o homem das finais, Milan, confirmou a dobradinha violeta: 2 a 0. Com dois títulos na temporada 1960-61, Befani pôde, realizado, se despedir da presidência da Viola. Entre muitos vice-campeonatos, era o homem que tinha entregado à torcida da Fiorentina suas principais glórias nacionais e um troféu internacional.

Nos anos seguintes, a equipe faria boas temporadas. Chegaria a outras finais — como a da Recopa Europeia de 1961-62, perdida para o Atlético de Madrid — e teria seus sucessos, como na temporada 1965-66, quando venceu a Coppa Italia e a Copa Mitropa. Era o ensaio para a reconquista da Itália, no final da década. Essa história, que não tem Befani — falecido em 1968 —, Bernardini, Julinho Botelho ou Kurt Hamrin, fica para uma outra hora.

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