O inesquecível vice-campeonato espanhol do Las Palmas

O futebol da Espanha insular registra algumas páginas memoráveis. No final dos anos 1990 e início dos 2000, os baleares do Mallorca fizeram barulho. Um pouco antes, coube aos canários do Tenerife o protagonismo de temporadas especiais. Em seus respectivos períodos, os dois atrapalharam a vida dos clubes mais tradicionais do país e, ainda, chegaram às fases decisivas de competições europeias. Muitos anos antes, entretanto, seria o Las Palmas o precursor das histórias triunfais das ilhas hispânicas. Em 1968-69, os Amarillos colocaram a província de Las Palmas em estado de euforia.

Las Palmas 1968-69
Foto: Canarias7/ Arte: O Futebólogo


Representantes de toda uma região


O primeiro campeonato espanhol da era profissional foi disputado em 1928-29. Aquele torneio, vencido pelo Barcelona, não simbolizava apropriadamente o país. Apenas as regiões de Madrid, Catalunha, País Basco e Cantabria tiveram representação. Na altura, as Ilhas Canárias, localizadas a noroeste da África, sequer podiam disputar competições nacionais. Isso mudaria apenas no dia 6 de junho de 1949, com participação de um clube que apenas nascia.

Em um processo que se retroalimentou, o vice-presidente da Federação Regional das Canárias propôs a cinco clubes da Primera Categoría Regional de Las Palmas que se fundissem, formando uma equipe mais poderosa e apta a representar a região. Sob esse argumento, ele tentaria, com sucesso, pressionar a Real Federación Española de Fútbol. A libertação do futebol canário ocorreria pouco mais de dois meses antes da fundação oficial do Las Palmas, já que, apenas em 22 de agosto, também de 1949, seria oficializado o casamento de Club Deportivo Gran Canaria, Atlético Club, Real Club Victoria, Arenas Club e Marino Fútbol Club. Nascia a Unión Deportiva Las Palmas.

Exibindo as cores amarela e azul, a exemplo da bandeira das Canárias, o clube não demorou a evidenciar que havia muitos jogadores de qualidade na região. E, diferentemente da Espanha continental, em que o futebol tinha como marca a bravura, ao ponto de a seleção nacional receber a alcunha de Fúria — o que, inclusive, serviria aos propósitos de propaganda da Ditadura Franquista —, nas Canárias, praticava-se um jogo mais técnico, com uma pitada de latinoamericanidade.

Estádio Insular
Foto: Tiempo de Canarias/ Arte: O Futebólogo

O talento canário se fez notar desde a primeira temporada em que o Las Palmas disputou futebol profissional. Em 1949-50, o time assegurou o acesso à segunda divisão, ficando com o vice da terceirona. Embalados, os Amarillos repetiriam a façanha logo no ano seguinte, chegando à elite, com um novo vice-campeonato. Esse torneio, insolitamente, seria conquistado pelo Atlético de Tetuán, uma equipe marroquina e que disputava competições hispânicas durante a Ocupação Espanhola de Marrocos (1912-56).

O Las Palmas voltaria à segundona imediatamente, mas também retornaria ao primeiro escalão sem longa espera, já em 1953-54. Com campanhas marcadas pela luta contra o descenso, os canários se segurariam na divisão de elite até 1959-60. Porém, naquele momento histórico, já havia se iniciado um processo que conduziria a equipe de amarelo e azul aos lugares mais altos.

Arquitetando tudo, Luis Molowny


Com origens irlandesas, mas filho da cidade canária de Santa Cruz de Tenerife, que até ostenta rivalidade com Las Palmas, Luis Molowny era um nome famoso no cenário espanhol, quando decidiu voltar para casa. Tendo começado sua carreira como atleta representando o Marino FC, um dos times que precederia a UD Las Palmas, passaria a maior parte de sua trajetória, nas décadas de 1940 e 50, integrando os quadros do Real Madrid e empilhando taças. Porém, em 1957, no crepúsculo de seus anos nos gramados, ele retornou às Canárias.

Na oportunidade, já estava claro que o Las Palmas representava o melhor futebol praticado na ilha, de modo que se tratava de uma escolha natural para Molowny. O meio-campista passaria apenas uma temporada envergando a camisa amarela. No entanto, aquilo viria a representar apenas o início de seu frutífero relacionamento com a agremiação canária. Quando as cortinas de sua carreira como jogador se fecharam, pelas frestas deixadas pelo pano, uma nova luz se revelou. Era chegada a hora de ensinar.

Luis Molowny Las Palmas
Foto: Las Palmas/ Arte: O Futebólogo

Não houve intervalo entre as carreiras. Molowny deixou de ser comandado por Satur Grech e assumiu o posto do antigo mestre. Aquela não seria a melhor das passagens do santacrucero pelo Las Palmas, mas salvaria o time do rebaixamento. Da mesma sorte, Luis não gozaria dois anos mais tarde, quando convocado a reassumir o time nas rodadas finais do Campeonato Espanhol, substituindo o francês Marcel Domingo. Ali, não evitaria o pior: em 1960, o time voltou para a segundona. Mas o treinador ficou. Ou melhor, recebeu uma oportunidade diferente.

Molowny foi escolhido pela diretoria dos Amarillos para assegurar um futuro para a equipe. Ficou incumbido de treinar as categorias de base do time canário, no que viria a ser sua maior contribuição para a história do clube. Já em 1962, o comandante conduziria o escalão juvenil ao título nacional da categoria. Não demoraria muito para os Diablillos Amarillos, como aquela geração ficaria conhecida, assegurarem promoção ao time de cima. E, com isso, a sorte amarela começaria a ser reescrita.

Em 1963-64, o Las Palmas conquistaria novo acesso à elite, com o título da segundona. Ainda assim, outra vez a travessia ao panteão dos melhores seria acidentada. Campanhas inseguras, que terminaram com lugares no meio da tabela do Campeonato Espanhol, levaram o time a apostar uma vez mais no seu bombeiro favorito. Para evitar que um incêndio se alastrasse, culminando em outro rebaixamento, Molowny reassumiu a casamata do time principal em 1967. Um 11º lugar não tardou a se transformar em terceiro, já em 1967-68. E o melhor estava por vir.

Uma campanha eterna


Quando a Liga Espanhola de 1968-69 se desenhou, o Las Palmas já não temia o pior. Seus jovens haviam amadurecido, assim como o treinador. Como indicaria o jornalista Ignacio Acedo, do periódico Canarias7, aquele time ficaria conhecido por seu estilo: “Foi o ápice vivido por uma geração de jogadores que em campanhas anteriores já tinha se distinguido por um estilo precioso e único, que alguns críticos consideram o germe do já famoso tiki-taka, exportado pela equipa espanhola”.

Fazendo do Estádio Insular — casa do clube até 2003, quando foi inaugurado o Estádio Gran Canária — sua catedral, habitualmente lotada e hostil aos adversários, o Las Palmas construiu uma campanha de sonho. O curioso é que o time não teve seu refúgio como companheiro na rodada inicial.

Forçado a estrear no Estádio Heliodoro Rodríguez López, em Tenerife, em razão de problemas vividos em um jogo de copa, o time superou essa adversidade inicial e, de cara, mostrou a que vinha. Contra o Atlético de Madrid, Justo Gilberto e José Manuel León balançaram as redes colchoneras, conferindo a primeira vitória canária, mesmo que Javier Irureta tivesse descontado para os madrilenhos: 2 a 1.


A primeira derrota aconteceria na quinta rodada, diante do Pontevedra, mas não impediria a manutenção de uma bela sequência de resultados. O Las Palmas só seria derrotado pela segunda vez na 13ª partida, contra o Málaga. Na ocasião, já havia superado um dos maiores desafios da temporada. Na 10ª rodada, os canários venceram o Sabadell, que viria a terminar o certame na quarta posição, 3 a 1. Outra partida marcante aconteceria dali a quatro compromissos. Perante os guipuscoanos da Real Sociedad, especialmente violentos na ocasião, os Amarillos foram impiedosos — cravaram um 4 a 0 nas pretensões txuri-urdin.

A grande pedra no sapato dos insulares seria o implacável Real Madrid. Não houve, em momento algum, disputa pelo título. Soberanos, os Blancos lideraram o Campeonato Espanhol desde a segunda rodada. Seriam os únicos a vencer o Las Palmas nos dois turnos. Aliás, os canários só perderam em casa na última rodada, justamente diante do Real. Até o final do torneio, ao menos um outro momento histórico aconteceria, todavia.

Mundo Deportivo Las Palmas Barcelona 1968-69
Arquivo: Mundo Deportivo

Na 18ª rodada, o Las Palmas visitou o Barcelona. A agremiação canária nunca havia vencido os catalães em seus domínios. No que foi um jogo marcado pela perfeita execução de sua estratégia, com o goleiro Ignacio Oregui salvando a meta amarela quando necessário, o time de Molowny abriu o placar com um tento de seu principal destaque individual, o ponta de lança Germán Dévora, conhecido como El Maestro (é o segundo com mais jogos pelo time, 453, e o maior artilheiro, autor de 119 tentos). Gallego empataria, mas Niz, aos 44 minutos do segundo tempo, confirmaria a vitória insular. 

Sem recalque, a torcida catalã aplaudiu de pé, tanto o seu time combalido quanto o vencedor inesperado, como registrou o La Província. Ali, o vice-campeonato foi encaminhado.


O consumado segundo lugar teve uma desvantagem de nove pontos para o Real Madrid. O Las Palmas teve o segundo melhor ataque da competição, anotando 45 gols (um a menos do que o Madrid), mas a defesa seria apenas a sexta melhor, atrás das retaguardas de Real, Barcelona, Real Sociedad, Elche, Pontevedra, e empatada com a do Sabadell.

Um ponto curioso da campanha do Las Palmas foi a utilização de apenas 14 jogadores: Oregui, Martín Marrero, Tonono, Castellano, Aparicio, Lo, Niz, José Luis, Léon, Justo Gilberto, Guedes, Gilberto Rodríguez, Germán Dévora e José Juan. Destes, apenas Marrero, Justo Gilberto e José Juan não haviam sido formados no clube, mas no vizinho Tenerife. León seria o artilheiro do time na temporada, registrando11 gols (três a menos do que José Gárate, do Atlético de Madrid, o goleador máximo).

Las Palmas 1968-69

Consistência na sequência imediata e queda


Convidado para a disputa da Taça das Feiras de 1969-70, no que seria sua penúltima edição antes da mudança de nomenclatura para Copa da UEFA, o time fez ali sua estreia nos palcos continentais. No entanto, os canários caíram na primeira fase, diante do Hertha Berlim. Os alemães chegariam às quartas de finais, antes de serem freados pela Internazionale.

O Las Palmas não voltaria a se aproximar tanto de um título espanhol, mas, tampouco, decairia rapidamente. Em 1971-72, terminaria em quinto lugar no nacional; cinco anos depois, seria o quarto; e, em 1977-78, o time ficaria com mais um vice-campeonato, desta vez na Copa do Rei. Contudo, nos anos 1980, enfim sofreria declínio. Depois de campanhas marcadas pelo sofrimento pela permanência na elite, os canários cairiam para a segunda divisão em 1982-83. A partir de então, o time vive um constante efeito ioiô, transitando entre as principais divisões do futebol espanhol.


Como explicar tamanha ascensão e queda? Víctor Alfonso, que foi atleta do clube nos anos 1990 e 2000 e depois dirigiu sua equipe B por anos, ajudando a revelar atletas como Vitolo, tem uma teoria: "Na ilha, há muitos olheiros das melhores equipes da Espanha e aqueles que se destacam...", falou ao El País. Os que se destacam costumam sair cedo, seria a provável conclusão da frase — jogadores como Pedri. O Las Palmas está longe de ser o único clube a sofrer com isso.

Ao fim e ao cabo, o importante é que as histórias perduram e se fazem motivo de orgulho, para o clube e seu povo. O Las Palmas, ainda que de modo indireto, entregou futebol profissional às Ilhas Canárias e, em pouco tempo, exibiu nível digno de campeão nacional. Encheu estádios e exibiu um estilo de jogo vistoso. Foi instrumento construtor de identidade — coisas que não há dinheiro que compre, nem tempo que apague.

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