A revolução de Winfried Schäfer no Karlsruher

É difícil fugir de uma realidade óbvia: no estado alemão de Baden-Württemberg, há um clube que domina a cena futebolística, o Stuttgart. Durante o curso dos anos, porém, algumas agremiações da região experimentaram sucessos. Por 12 anos, o Karlsruher teve relevância nacional, chegando a carregar o orgulho vurtemberguês, inclusive, pelo continente. Com líderes importantes, e uma boa fornada de jovens, o clube surpreendeu.

Karlsruher UEFA Cup 1993-94
Foto: Reprodução bnn.de/Arte: O Futebólogo


Pelo fim do efeito ioiô


Embora não costume ser lembrado entre o rol dos times mais tradicionais da Alemanha, o Karlsruher viu a Bundesliga nascer. Em 1963-64, temporada de estreia da competição, os Azuis foram contemplados com uma das cinco vagas na elite alemã provenientes da antiga Oberliga Süd. No entanto, já ali sinalizaram que, dificilmente, teriam condições de permanecer por muito tempo no panteão do futebol germânico. Somaram apenas um ponto a mais do que o primeiro rebaixado à Regionalliga, o Preußen Münster.

Em 1964-65, não fosse por um escândalo envolvendo o Hertha Berlim, o Karlsruher teria caído para a segunda divisão. Na oportunidade, foram apuradas diversas irregularidades financeiras do clube da capital. Em síntese, os berlinenses estavam pagando valores que excediam os limites impostos pela Federação Alemã aos seus atletas. Assim, a licença do Hertha foi revogada, o Tasmania herdou a vaga e, para evitar contendas judiciais, ninguém mais foi rebaixado. Foram, ainda, admitidos os dois times que haviam alcançado acesso da segunda divisão, o que provocou a expansão do número de disputantes da Bundesliga, de 16 para 18.

No ano seguinte, mais uma vez, o Karlsruher escaparia por pouco, figurando em 16º lugar — a primeira posição fora da zona de rebaixamento. Contudo, depois de uma temporada relativamente estável em 1967-68, o que parecia inevitável aconteceu. Os Azuis foram rebaixados. O retorno só aconteceria após o título da 2. Bundesliga Süd, em 1974-75. Na volta, ressalte-se, aconteceria um primeiro encontro importante. Reforçando o time para seus próximos desafios, os vurtembergueses contrataram o meio-campista Winfried Schäfer, junto ao Offenbacher Kickers.

Winfried Schäfer Karlsruher Player 1976
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

A senda do clube continuaria sendo a mesma. De volta à Bundesliga, quase despencou imediatamente. Segurou-se por um ano e, em 1976-77, caiu outra vez. Schäfer, todavia, havia exibido bom futebol. Em duas temporadas, registrara 72 aparições, anotando 11 gols. Mesmo com as dificuldades do Karlsruher, o meia fez o suficiente para se mudar para o campeão vigente, o Borussia Mönchengladbach — permanecendo nos Potros até o final de sua carreira, em 1985.

Antes de voltar ao primeiro escalão, o Karlsruher enfrentaria mais alguns anos difíceis. Apenas em 1979-80, vencendo o playoff de acesso ante o Rot-Weiss Essen, retornaria. Naquele momento, os primeiros sinais até seriam bons, com duas campanhas de meio de tabela. Porém, a sina do time não havia mudado. Em 1982-83, um novo rebaixamento se abateu sobre a equipe. A subida seria imediata, assim como outra descida. 

Para conseguir se recolocar, e se firmar, na elite, o Karlsruher foi atrás de velhos conhecidos. A partir de então, muita coisa mudou.

O retorno de Schäfer


Na fase final da temporada 1985-86, o Karlsruher anunciou a chegada de um novo gestor de futebol. Carl-Heinz Rühl havia sido o treinador dos Azuis entre 1973 e 77. Depois de aventuras em Duisburg, Borussia Dortmund, Munique 1860 e Osnabrück, além de uma passagem pelos gregos do PAOK, ele estava descansando. Após três anos sabáticos, foi contratado com a missão de reestruturar o clube karlsruhense. Demorou pouquíssimo tempo para demitir Lothar Buchmann, o treinador da equipe até então.

Rühl mentalizava algo arrojado. Fazia pouco tempo que um de seus melhores ex-comandados pendurara as chuteiras. Mais importante do que isso: o homem vinha trabalhando como treinador e olheiro do time de reservas do Gladbach. Melhor ainda: conhecia o Karlsruher. Ele era Winfried Schäfer. Aos 36 anos, o antigo meia assumiu o comando azul. O time tinha alguns referentes com experiência, como o selecionável iugoslavo-croata Srećko Bogdan, mas precisava de uma renovação e não tinha recursos.

Winfried Schafer Karlsruher Manager
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Em pouco tempo, jovens revelações, como Arno Glesius e Oliver Kreuzer, ambos com passagens pelas equipes de base da Alemanha, assumiram lugares no time principal do Karlsruher. A transição seria bem-sucedida, apesar de ter se dado aos solavancos. Na 2. Bundesliga 1986-87, o mesmo Karlsruher se revelaria capaz de destronar, com autoridade, equipes como Saarbrücken, 6 a 0; Ulm, 5 a 0; e Hessen Kassel, 4 a 0, e, também, de perder espetacularmente, como no 8 a 0 sofrido diante do Hannover, ou no 4 a 0 perante o Alemannia Aachen. No entanto, ao final do ano, o acesso estava assegurado.

Uma nova história estava sendo escrita, ainda que não parecesse algo óbvio. Na volta à elite, os Azuis evitaram o descenso nos mínimos detalhes. Um mísero ponto separou os vurtembergueses do rebaixado Waldhof Mannheim. À parte disso, durante aquela campanha, um momento histórico aconteceria.

No dia 27 de novembro de 1987, o Karlsruher enfrentou um time estelar do Colônia, que contava na altura com Bodo Illgner, Jürgen Kohler, Morten Olsen, Thomas Häßler e Pierre Littbarski. A derrota foi inevitável, 4 a 0. Porém, aos 18 anos, o goleiro Oliver Kahn, uma pérola da base karlsruhense, ainda longe de se tornar um titã, fez sua estreia no futebol profissional. Essa história tem um componente extra: o concorrente de Kahn na base era filho do treinador de goleiros e, ainda assim, Schäfer elegeu Oliver.


Brilho europeu


No segundo ano na Bundesliga, o time de Schäfer já não sofreu tanto, ficando confortável no meio da tabela. Essa situação se repetiu, sistematicamente, até 1991-92 — e a mudança, quando veio, foi para melhor. Em 1992-93, com Kahn já estabelecido entre os titulares, o Karlsruher terminou o Campeonato Alemão na sexta colocação. O desempenho garantiu ao time de azul vaga na Copa da Uefa do ano seguinte.

O elenco, é bom que se diga, recebera complementos importantes. Se por um lado Geovani, revelação do Vasco, havia voltado ao Brasil, passando rápida e discretamente pela Alemanha, o veterano Wolfgang Rolff, campeão europeu com o Hamburgo, fora contratado; e os russos Valeri Shmarov e Sergei Kiriakov também. Além disso, as categorias de base do time haviam produzido mais duas joias. A zaga fora contemplada com Jens Nowotny; o setor de criação com Mehmet Scholl.

Mehmet Scholl Karlsruher
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

O sucesso estabelecido obrigaria o Karlsruher a vender Scholl para o Bayern, mas não cessaria os investimentos. Para a estreia europeia, em 1993-94, os Azuis buscaram o jovem zagueiro Slaven Bilic, no Hadjuk Split. Uma nova campanha de sexto lugar na Bundesliga estava à espreita, acompanhada de um título de melhor goleiro do ano em favor de Kahn. O que não se esperava era uma participação tão positiva na Copa da Uefa.

Alinhando seu time com dois zagueiros e um líbero, como era a moda da época, Schäfer apresentou à Europa um time que tinha o queixo duro. Na primeira fase da competição continental, diante de um Wildparkstadion lotado, o Karlsruher superou o tradicional PSV Eindhoven, 2 a 1. Um empate sem gols, na volta, seria suficiente para assegurar o avanço à fase seguinte, em que o Valencia aguardava os alemães.

Treinados por Guus Hiddink, os Che contavam com um ataque perigoso, com o búlgaro Luboslav Penev e o iugoslavo Predrag Mijatovic. Isso ficou claro rapidamente. Na Espanha, os donos da casa venceram por 3 a 1. Na volta… 

Karlsruher Valencia UEFA Cup
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O Mundo Deportivo — que, habitualmente, reserva suas capas para os feitos dos clubes catalães — foi forçado a mencionar o confronto hispano-germânico: “Tropiezo histórico del Valencia: El Karlsruher destrozó al equipo de Hiddink”. No interior do periódico, mais ênfase foi dada à partida: “Triturados: El Valencia cayó fulminado por un Karlsruher que dio una lección de cómo se juega por las bandas”. O jogo terminou nada menos do que 7 a 0 para os alemães, e ficou conhecido como o Milagre de Wildparkstadion.

Mundo Deportivo Karlsruher Valencia
Arquivo: Mundo Deportivo

Com o avanço, o time de Kahn foi sorteado para um confronto duro ante o Bordeaux. Na altura, os girondinos exibiam o talento de Zinedine Zidane na meia cancha. Ele seria o responsável pela vitória marginal dos franceses na partida de ida: 1 a 0. No retorno, porém, o experiente artilheiro Edgar Schmitt (duas vezes) e Kiriakov garantiram o avanço vurtemberguês, 3 a 0.

Nas quartas de finais, os portugueses do Boavista, liderados pelo talento do boliviano Erwin Sánchez, dariam muito trabalho. Além disso, os alemães já não podiam se colocar na condição de azarões. No Bessa, empate por 1 a 1. No Wildparkstadion, o fiel da balança seria um gol contra: infelicidade do zagueiro Nogueira. O Karlsruher chegava às semifinais.


Na altura em que foi designado para enfrentar o Casino Salzburg, o time alemão assumira uma nova identidade. O Eurofighter emergira. A jornada azul estava chegando ao fim, contudo. Na Áustria, o zero teimou em deixar o placar. Na Alemanha, houve novo empate, mas, dessa vez, com gols: 1 a 1. No critério do gol marcado fora de casa, o Karlsruher foi eliminado. Fim da linha.

“A última temporada no KSC foi fantástica e uma das melhores da minha carreira. Naquela época, a Copa da Uefa ainda era muito valiosa, pois apenas os campeões disputavam a Liga dos Campeões”, comentou Kahn, em entrevista à revista 11Freunde.

Oliver Kahn Karlsruher
Foto: imago/Arte: O Futebólogo


De volta para o passado


A chegada às semifinais da Copa da Uefa deixou Schäfer sonhar. Não obstante, o treinador teve que fazer isso sem seu grande companheiro. Carl-Heinz Rühl preferiu deixar o Karlsruher: havia cumprido seu papel e, em pouco tempo, estaria desempenhando as mesmas funções no Hertha Berlim.

Em 1994-95, os Azuis fizeram sua primeira grande contratação em anos. Abriram os cofres e desembolsaram 7 milhões de marcos alemães na contratação de Häßler, à época na Roma. Além dele, ao menos outras duas peças cruciais para a manutenção do bom momento do clube chegariam, o lateral esquerdo Michael Tarnat e o meia Thorsten Fink. Por outro lado, mais uma de suas reveluções decidira partir: Kahn acabou vendido ao Bayern. Esse time terminaria a Bundesliga em oitavo lugar, classificado à Copa Intertoto.

Thomas Habler Karlsruher
Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo

A competição europeia, extinta em 2008, ofertava aos vencedores uma vaga na Copa da Uefa. Em agosto de 1995, o Karlsruher chegou às finais, mas caiu diante do Bordeaux, ficando sem futebol europeu. Contudo, 1995-96 terminaria com nova qualificação do Eurofighter para a Intertoto, fruto de um sétimo lugar na Bundesliga. Agora, sua luta na finada disputa seria exitosa e o time garantiria lugar na Copa da Uefa seguinte, ladeado pelos dinamarqueses do Silkeborg e pelos franceses do Guingamp.

Nesse ínterim, os homens de Schäfer viveram mais um flerte com as conquistas. No dia 25 de maio de 1996, subiram ao gramado do Estádio Olímpico de Berlim para disputar a final da Copa da Alemanha. O adversário era o Kaiserslautern, de Andreas Brehme. Outra vez, os Azuis desperdiçaram uma boa chance. O lateral Martin Wagner marcou o único gol da partida, confirmando o título dos Diabos Vermelhos.


O Karlsruher seguia mudando. Às vésperas da temporada 1996-97, Bilic já havia se mandado para o West Ham fazia um ano; Nowotny acabara de confirmar sua transferência para o Bayer Leverkusen. A qualidade das reposições foi caindo. Naquele ano, o Karlsruher avançaria até a terceira fase da Copa da Uefa, sendo superado pelos dinamarqueses do Brondby. Ainda assim, conseguiria terminar o Campeonato Alemão em sexto, garantindo, novamente, vaga na Copa da Uefa. Esses resultados sugeriam que o time seguia no caminho certo. Sugeriam, apenas.

Como um castelo de cartas exposto ao vento, o time vurtemberguês se esvaiu. No início da temporada 1997-98, os Azuis negociaram Fink e Tarnat com o Bayern. Os reforços necessários não vieram. Continentalmente, a equipe voltou a caminhar até o terceiro estágio da Copa da Uefa. Neste turno, sucumbindo diante dos russos do Spartak Moscou. Na Bundesliga, foi forçada a recordar seus anos menos felizes. A segunda pior defesa da competição terminou o certame em 16ª lugar, rebaixada. A dor foi ainda maior porque o descenso foi consumado no saldo de gols.


Na altura da despromoção, fazia poucos meses que Schäfer havia sido demitido. O Karlsruher estava sem direção e, em razão da empolgação que o levou a fazer algumas contratações de maior vulto, também se encontrava em dificuldades financeiras. O saldo não poderia ser outro: desastre. A equipe só retornaria ao primeiro escalão após o título da 2. Bundesliga em 2007. E, mesmo assim, em 2009 voltaria a ser rebaixada, recuperando o indesejado status de ioiô.

O que o estado de Baden-Württemberg presenciou entre 1986 e 98 foi excepcional, tanto por ter sido muito acima dos padrões quanto por ter sido fora do comum. Especialmente enquanto Schäfer e Rühl caminhavam juntos, o Karlsruher prosperou. O olhar em retrospectiva sugere que, diante de seus sucessos, o time deu um passo maior do que a perna. Entretanto, quem pode julgar uma agremiação acostumada a conviver com dificuldades por sonhar? Havia razões para a crença em um futuro melhor. Ninguém se torna um Eurofighter sem motivos.

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