O Watford é pop! A epopeia de Graham Taylor

O futebol inglês transpira tradição. Grande parte de seus clubes já superou a marca dos 100 anos e tem pelo menos um momento histórico especialmente importante. A 24 quilômetros de distância da capital britânica, Londres, uma equipe viveu fortes emoções nas décadas de 1970 e 80. Sob o comando de Graham Taylor, e com um líder espiritual um tanto quanto atípico nos bastidores, o Watford deixou as sombras da quarta divisão e chegou ao futebol continental.

Graham Taylor Elton John Watford
Foto: The Times/Arte: O Futebólogo


Jogando por música?


Era vivido o ano de 1976, quando um torcedor ilustre, provavelmente o mais famoso entre todos os fanáticos que já desfilaram o uniforme amarelo pelas arquibancadas do Vicarage Road, assumiu a direção dos Hornets. Elton John já era um músico extremamente famoso — com 10 álbuns de estúdio gravados —, quando decidiu ajudar seu clube do coração a chegar ao alto nível. Até ali, o maior feito da história do Watford havia sido a disputa da segunda divisão por três temporadas consecutivas, entre 1969 e 72. A agremiação, lotada no condado de Hertfordshire, nunca gozara de muita distinção.

"O Watford tem sido uma fonte constante de felicidade para mim. Se não existisse o clube, Deus sabe o que teria acontecido comigo. Não exagero ao dizer que o Watford salvou minha vida. Fui presidente durante o pior período da minha vida: anos de vícios e depressão, relacionamentos falidos, más decisões de negócio, tormentos intermináveis. Gerir o Watford me deu propósito, me ajudou a me reorientar", relatou Elton John, em sua autobiografia, Eu, Elton John.

Em um primeiro momento, pouca coisa mudou. O Watford, treinado por Mike Keen, antigo meio-campista do clube e que tinha apenas 36 anos, terminaria a campanha de 1976-77 na sétima posição da quarta divisão. Essencialmente, tratava-se do mesmo desempenho do ano anterior, marcado por um oitavo posto, no mesmo escalão. Era abril, no finalzinho da temporada, quando ficou claro que Keen não entregaria o desejado acesso. Assim, foi demitido.

Diante desse quadro, o primeiro passo para a revolução que precisava ser empreendida era a escolha de um líder, o acerto com o responsável por carregar a bandeira do clube. Um bom treinador precisava ser encontrado. Foi — ainda que se tratasse de alguém jovem e um tanto quanto incógnito: Graham Taylor, para quem Elton John entregou as chaves do clube, com um contrato de cinco anos. Defensor enquanto atleta, o técnico vinha de uma carreira nada notável dentro das quatro linhas, representando, por longos períodos, as camisas de Grimsby Town e Lincoln City, este tendo sido o primeiro clube em que trabalhou já nos bancos de reserva. Começando aos 28 anos.

Graham Taylor Watford
Foto: Watford Observer/Arte: O Futebólogo

Uma campanha brilhante em 1975-76, todavia, credenciava o novo comandante. Na referida temporada, o Lincoln venceu o título da quarta divisão, com honras. Dentro do sistema que concedia apenas dois pontos por vitória, os 74 obtidos se transformaram em recorde dentro de todas as divisões nacionais. Além disso, já haviam transcorrido nove temporadas desde a última vez em que um time marcara mais de 100 gols em um ano. Os Imps anotaram nada menos do que 111, em 46 partidas.

Como recordam os ingleses da revista When Saturday Comes, o estilo de jogo praticado pelo time não era dos mais vistosos, mas se adequava às exigências daquela divisão e, claramente, funcionava: “O Lincoln pavimentou seu caminho à promoção utilizando o estilo direto”. Não era nada muito diferente do famigerado kick and rush. E, a bem da verdade, o Watford não estava propriamente preocupado com a forma como um eventual sucesso fosse alcançado, desde que ele viesse.

Ainda assim, uma descrição limitada da proposta de Taylor, como se fosse apenas chutões para frente, ignoraria as sutilezas de suas ideias. Como Jonathan Wilson comenta, em A Pirâmide Invertida, o comandante estava sempre estudando e procurando novidades. Uma das que mais teria o encantado foi a ideia de pressão agressiva e intensa nos adversários, como proposta pelo soviético Viktor Maslov. “Como continuávamos sempre indo para frente, os adversários tinham que continuar indo para trás”, pontuou o técnico, ao citado livro. Ainda que fosse prático em sua abordagem, Graham admirava a incipiente ciência que enredava o esporte e, tanto quanto possível, tentava fazer uso de análises e probabilidades.

Graham Taylor Watford 1977
Foto: Colorsport/Rex/Shutterstock/ Arte: O Futebólogo

Pragmatismo estilístico à parte, como o tempo evidenciaria, os trabalhos de Taylor também seriam reconhecidos por outras marcas. Seus sucessos seriam obtidos, em grande medida, a partir da solidez dos grupos com que trabalhou. O líder ficaria conhecido como uma pessoa afável, mas dura e rígida nos treinamentos: “Um homem de grandes realizações e pequenas gentilezas”, como recordaria o Guardian. E não é um nem são dois os ex-comandados que já prestaram depoimentos de que essa aparente ambivalência seria chave para todos os êxitos de sua carreira.

Mas, em 1977, pouca gente sabia disso. Graham ainda era um tanto quanto desconhecido, militando, novamente, na quarta divisão depois de recusar uma boa proposta do West Bromwich, então na elite. Mas não por muito tempo.

Evolução, degrau por degrau


Em seu primeiro ano no comando do Watford, Taylor cumpriu com todas as expectativas de Elton John e companhia: conquistou, novamente, o título da quarta divisão. Porém, o que se viu carregava muito mais a urgência típica do punk do que a sofisticação do som do mandatário do clube. London Calling, álbum do The Clash lançado em 1979, ainda fazia parte do mundo das ideias, quando o Watford atendeu ao chamado da terceira divisão.

A campanha de acesso registrou o alcance de 71 pontos — onze a mais do que o Southend United, vice-campeão. Em 46 jogos, os Hornets perderam apenas cinco vezes. E parecia que urgência era mesmo a palavra-chave na boca do povo de amarelo. Já em 1978-79, em Vicarage Road, foi festejada a subida à segundona. Não houve título dessa vez, o que importou muito pouco. Com um ponto a menos do que o campeão Shrewsbury Town, o Watford manteve o bom desempenho ofensivo (83 tentos, a melhor marca da liga) e fez o suficiente para cumprir sua meta.

Se em algum momento se duvidou de que Graham Taylor seguia sendo o homem ideal para levar o Watford ao sonho de estrear na elite do futebol inglês, ele começou a ser experimentado no ano seguinte. Ainda que, em pontos, a distância da zona de rebaixamento tenha sido considerável — oito —, terminar o segundo escalão na 18ª posição era algo que fugia ao que vinha sendo a história recente do clube. 

No ano seguinte, 1980-81, o time apostaria na contratação de jogadores mais experientes. Do Arsenal, veio o veteraníssimo lateral Pat Rice; do Tottenham, o goleador Gerry Armstrong. Os dois tinham muitas convocações para a Irlanda do Norte no currículo. O ansiado acesso voltaria a escapar, mas com outra nota. Ainda que na nona posição, o Watford terminou sete pontos atrás do Swansea City, o primeiro time a conquistar lugar na elite.

Pat Rice Watford
Foto: Watford FC/Arte: O Futebólogo

Os frutos do trabalho de Taylor estavam, outra vez, quase maduros. Seria em 1981-82, com um novo vice, o tão aguardado acesso. Nunca antes os Hornets haviam disputado a primeira divisão inglesa. O treinador perseverara; como o eu lírico de I’m Still Standing, ele estava “melhor do que nunca”.

Sucesso na primeira divisão e futebol europeu no horizonte


O sucesso do time teve impacto para além das quatro linhas. Muito em razão da intervenção de Elton John e Graham Taylor, que acabaram forjando uma forte amizade, o público se empolgava com o que via: “Os jogadores eram forçados a viver dentro de 30 milhas do Vicarage Road e a gastar tempo não apenas em escolas locais e hospitais, mas em pubs e restaurantes de suas vizinhanças, construindo laços fortes com os torcedores”, pontuou o Guardian.

Aliás, a despeito da adoção de uma filosofia muitas vezes criticada, o time tinha, de fato, bons jogadores, como foram os casos dos selecionáveis Luther Blissett — apesar de seu fracasso no Milan — e de John Barnes, que faria ainda mais história na sequência, defendendo o Liverpool 407 vezes, e registrando notáveis 108 gols. E o mais impressionante ainda estava por vir.

John Barnes Luther Blissett Watford
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Em sua estreia na elite, na temporada 1982-83, sem fazer qualquer investimento robusto, o Watford se superiorizou a Manchester United, Tottenham, Nottingham Forest e ao então campeão europeu, Aston Villa, para assegurar o vice-campeonato nacional. Ficou atrás apenas do Liverpool e se classificou à disputa da Copa da Uefa do ano seguinte. Blisset ficaria com a artilharia do Campeonato Inglês, responsável por 27 gols, marca para se tirar o chapéu. 

Além disso, resultados como um maiúsculo 8 a 0, ante o Sunderland, evidenciariam a força dos Hornets. Aliás, o time venceu até mesmo o campeão Liverpool, ainda que na última rodada, quando o troféu já estava nas mãos dos Reds: 2 a 1.


Em 1983-84, uma outra estreia marcou o ano do Yellow Army, agora em palcos internacionais. Na primeira fase da citada Copa da Uefa, o Watford eliminou o Kaiserslautern, de Hans-Peter Briegel e Andreas Brehme. Adiante, superou o Levski Sofia, do goleiro Borislav Mihaylov, titular da seleção búlgara durante anos. Entretanto, caiu na sequência, diante do Sparta Praga, em um jogo que Taylor definiria como “homens contra meninos”, tamanha foi a superioridade dos tchecos, refinados tecnicamente e primazes na defesa da posse de bola.

Vicarage Road não voltaria a ser palco de partidas de competições europeias de primeiro nível. Mas, para quem até bem pouco tempo sequer havia jogado a primeira divisão de seu país, estava tudo mais do que bem.


O trabalho de Taylor seguia melhor do que a encomenda, como ficou provado com mais um vice: dessa vez na FA Cup, também em 1983-84. O Watford chegou a finalíssima sem Blissett, negociado com o Milan, e teve pela frente um forte Everton, que viria a ser campeão nacional no ano seguinte. Naquela ocasião, uma multidão de mais de cem mil pessoas, em Wembley, viu Graeme Sharp e Andy Gray tomarem o troféu das mãos dos Hornets.

“O Everton marcou aos 20 minutos, mas tivemos algumas chances e não foram oportunidades ruins. O segundo gol deles no final foi um pouco controverso. Isso nos matou um pouco. Mas, para um clube como o Watford, ter a campanha que tivemos, da última divisão para a primeira divisão e jogar na Europa, foi o auge da minha carreira. E ser capitão na final da FA Cup foi uma grande honra. São ótimas lembranças”, comentou o meia Les Taylor, ao Watford Observer.

 


Sem Taylor e Elton John, sem futebol de elite


Até 1987, viveu-se um período de calmaria no time. Com três campanhas medianas no campeonato inglês, o Watford foi prolongando sua estadia na elite. Entretanto, 10 anos haviam se passado e Taylor precisava de outro desafio em sua carreira. Em maio daquele ano, 526 jogos depois de seu primeiro, deixou seu querido clube e foi ao socorro do Aston Villa, então na segundona — mais uma vez conseguindo o acesso. “Foram provavelmente os 10 anos [entre 1977 e 87] mais felizes de minha vida”, diria Graham Taylor, como registrado pelo Guardian.

Além disso, Elton John também acabaria vendendo a equipe no mesmo ano, permanecendo apenas como presidente e despedaçando os corações dos torcedores dos Hornets. O músico voltaria, mais tarde, recomprando o clube, e assumindo-o durante um curto período, entre 1997 e 2002. 

O inevitável baque veio. Taylor foi substituído por Dave Bassett. Ele tinha uma sequência de acessos, pelo Wimbledon, similar à de Graham, da quarta divisão até a elite. Porém, o trabalho não deu liga e, no meio da temporada, ele foi trocado por Steve Harrison. A vice-lanterna foi um resultado que não pôde ser adjetivado como inesperado, assim como o rebaixamento.

Graham Taylor Panel
Foto: Watford Observer/Arte: O Futebólogo

Apesar de tudo isso, naquela altura, o Watford já não era o nanico ascendente da década anterior. Passara tempo considerável na elite. Os Hornets voltariam ao primeiro patamar em 1992-93 e, desde então, forjaram uma reputação como time que vive em um efeito ioiô frenético — porém, sem descidas bruscas à terceira e quarta divisões.

Como Elton John, Taylor voltaria anos mais tarde, depois de treinar a seleção inglesa, entre 1990 e 1993, e o Wolverhampton, por uma temporada. Mas, como ele próprio assume, o trabalho de sua carreira já estava concluído. O improvável sonho, a indescritível história — que é sua, do artista-presidente e do clube, já estava escrita. Aos 72 anos, Graham faleceu em 2017, mas a estátua erguida à frente do estádio Vicarage Road, entre outras homenagens, serve como lembrança perene, imune à ação do tempo, daqueles inesquecíveis dez anos.

*A primeira versão deste texto apareceu em Revista Relvado, em 16 de julho de 2018

Comentários