Austrália 1974: os pioneiros da Oceania

O soccer não é protagonista na Austrália. Ainda assim, participações frequentes na Copa do Mundo vêm garantindo a gradativa popularização da modalidade. Outro fator nesse processo é o multiculturalismo. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o país recebe grande fluxo migratório. Esses motivos, convergentes, também foram fundamentais para a escrita do primeiro marco histórico dos Socceroos: a disputa do Mundial de 1974.

Australia 1974
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A Austrália começa a bater na trave


Até 1956, a Austrália não se filiara à FIFA. Naquele ano, a Australian Soccer Association conseguiu o vínculo, mas problemas não tardaram a chegar. No artigo ‘Our Wicked Foreign Game’: Why has Association Football (Soccer) not become the Main Code of Football in Australia?, Roy Hay, da Deakin University, registra que conflitos relativos ao profissionalismo desencadeariam o banimento australiano. Clubes do país vinham adotando uma política predatória no mercado europeu, contratando atletas sem indenizar os times originários. A consequência seria uma espera maior para que a seleção da Austrália disputasse competições oficiais. 

Após o pagamento de multas, em 1963, um novo organismo — a Australian Soccer Federation — devolveu ao país chances de classificação para a Copa do Mundo; a primeira oportunidade viria às vésperas do certame de 1966. Depois de os países africanos debandarem, em protesto contra a insana luta com asiáticos e países da Oceania por uma mísera vaga, a Austrália batalharia com as Coreias, do Norte e do Sul.

No entanto, também os sul-coreanos abandonariam a disputa, temerosos do que poderia ocorrer nos confrontos diante dos norte-coreanos. Para os australianos, únicos representantes da Oceania, restava defrontar os Chollima. Em duas partidas, sediadas no Camboja, os aussie acumularam derrotas e aguardaram a chance de alcançar um Mundial por mais alguns anos.


Visando a Copa de 1970, a Austrália não mais enfrentaria os africanos. Seu boicote à última edição rendera frutos: o continente berço do mundo disputaria sozinho uma vaga. Ainda assim, seria preciso superar os asiáticos. Na primeira fase, os australianos foram bem, subjugando Japão e Coreia do Sul, sem perder. A Rodésia, mais tarde Zimbábue, envolvida em disputas raciais internas, jogava as qualificatórias asiático-oceânicas e aguardava a Austrália.

Com uma logística complexa, as partidas aconteceram em Moçambique. Foram necessários três jogos para a Austrália avançar à fase final. Israel estava à espera, após deixar a Nova Zelândia pelo caminho. 36 horas depois da vitória em Lourenço Marques (posteriormente Maputo), passando por Lisboa, Roma e Atenas, o elenco oceânico desembarcou em Tel Aviv. Com um placar agregado apertado, 2 a 1, incluindo gol contra dos cansados australianos, os israelenses garantiram vaga ao Mundial. Ainda não era a vez dos aussies.


Um país multicultural com um treinador iugoslavo


Depois de quase se classificar à primeira Copa do México, a Austrália contratou um estrangeiro para dirigir o time. Ralé Rašić era iugoslavo e encerrara a carreira como jogador no Footscray JUST, time australiano formado por imigrantes dos Bálcãs. O selecionado, que não tardou a ser escolhido, evidenciava um processo que acontecia no país.

Desde a Segunda Grande Guerra, imigrantes rumavam à Austrália. Enquanto os naturais de Reino Unido, Irlanda e Nova Zelândia tinham poucos problemas de integração à sociedade australiana, outros, provenientes de lugares como Itália, Grécia, Iugoslávia, Polônia, Holanda, Alemanha e Malta, não encontravam tanta sorte. Em Coming in From the Margins: Ethnicity, Community Support, and the Rebranding of Australian Soccer, James Skinner, Dwight H. Zakus e Allan Edwards relatam o crescimento de enclaves étnicos na Austrália ao redor de atividades comuns, entre as quais o futebol. Xenofobia era um tema inescapável.

Da Inglaterra, vinham Adrian Alston e o capitão Peter Wilson; da Escócia, Jimmy Rooney e Jimmy Mackay; por sua vez, Doug Utješenović nascera em Belgrado, na Iugoslávia. Atti Abonyi viajara desde Budapeste, na Hungria, enquanto Manfred Schaefer deixara a Alemanha. Além dos jogadores anglo-australianos nascidos na própria Austrália, e de outros imigrantes, ainda se notava a presença de um indígena, Harry Williams. O multiculturalismo era inquestionavelmente o traço distintivo da equipe de Rašić, unindo as mais diversas heranças futebolísticas.

Rale Rasic Australia 1974
Foto: Tomikoshi Photography/Arte: O Futebólogo

Ralé Rašić não demoraria a construir sucessos. Criado em um orfanato em Sarajevo, o comandante tinha apenas 34 anos: “Eu tinha ambição, mas não pensava que aconteceria tão rápido”, revelou ao site oficial da Federação de Futebol da Austrália. Com um time aguerrido, repleto de amadores que possuíam outros empregos, a Austrália continuou crescendo. “Quando jogávamos, o dinheiro não era um problema, pois éramos jogadores de meio período”, pontuou Alston.

Jim Fraser também recorda como Ralé mantinha a equipe preparada antes das partidas. “Era um ambiente profissional [...] Recebíamos um pouco, o treinamento era organizado e sabíamos quais eram as táticas do outro time, porque eles [a comissão técnica] haviam feito o dever de casa. Foi um mundo diferente para mim quando eles se envolveram”. O iugoslavo trouxera um nível de disciplina e inovação tática até então desconhecidos para o selecionado australiano. Entre as novidades, o inquieto Rašić exigira até a presença de um psicólogo do esporte, para manter os atletas motivados.

Australia 1974
Foto: Antonin Cermak/Arte: O Futebólogo

Surgem os Socceroos


No final de 1972, Tony Horstead, editor do Daily Mirror, cunhou o termo que popularmente designaria a seleção australiana: Socceroos. O momento era propício. Naquele ano, durante uma turnê, o selecionado alcançara uma sequência de 12 partidas invicto, incluindo um empate por 2 a 2 com o Santos de Pelé, em Sydney. A equipe chegava à disputa das eliminatórias para a Copa do Mundo de 1974 em boa forma.

As qualificatórias começaram a ser jogadas em março de 1973. Lotada na Zona B, a Austrália disputou um grupo com Iraque, Indonésia e Nova Zelândia. O início não seria o melhor, empate por 1 a 1 com os neozelandeses, em Auckland. Mas, o time entraria nos eixos, vencendo os iraquianos por 3 a 1. A fase inicial terminaria com os aussies na liderança, sem derrotas. Para eliminar dúvidas sobre suas capacidades, na última rodada, os Socceroos abateram os indonésios: 6 a 0. Assim, os comandados de Rašić avançaram à final da Zona B, contra o Irã.

Daily Mirror Socceroos 1972

Em Sydney, a vitória veio sem grandes dificuldades: Alston, Abonyi e Wilson marcaram no triunfo por 3 a 0. Em Teerã, eram esperadas dificuldades, que, efetivamente, materializaram-se. 119 mil pessoas se amontoaram no Estádio Aryamehr, para alentar os iranianos. Passados 32 minutos de partida, o placar sinalizava uma vitória parcial para os anfitriões: 2 a 0. Porém, nem toda a efervescência do ambiente impediu os aussies de se segurarem. Derrota à parte, a classificação se confirmou.

Qualificada meses antes, a Coreia do Sul, de Cha Bum-Kun, esperava a decisão pela vaga ao Mundial. A partida de ida foi em Sydney: empate por 0 a 0. Sem vantagem, os australianos viajaram a Seul e precisaram dar tudo de si. Com menos de meia hora de futebol, os sul-coreanos venciam por 2 a 0. Contudo, Branko Buljevic e Ray Baartz empataram a contenda. Um terceiro jogo, em Hong Kong, fez-se necessário. De certa forma, a Austrália já superara a performance de quatro anos antes.

Para Rašić, o gol anotado por Mackay na partida de desempate foi o mais importante da história da Austrália. Solitário, o tento saiu no minuto 70. Foi um petardo de perna direita, de fora da área. Indefensável. Era a consagração da Austrália multicultura. “A equipe sul-coreana estava no mesmo avião que a nossa, indo para Hong Kong. Estávamos rindo e brincando e todos eles estavam tristes e desanimados, porque pensaram que haviam feito o suficiente para se classificar, vencendo por 2 a 0 [...] foi uma vitória psicológica para nós”, revelou Baartz.


Na volta para casa, houve quem tenha tentado tirar proveito político da situação. “Tenho certeza de que a Austrália está orgulhosa desta esplêndida equipe que enfatizou claramente o caráter multinacional de nosso país. Nem todos os jogadores nasceram na Austrália, mas todos eles tocaram seu coração” afirmou Frank Stewart, ministro do turismo e recreação do governo de Gough Whitlam. 

Antes de rumar à Suíça, onde se prepararia para a Copa do Mundo, a Austrália tinha amistosos marcados.


“Estávamos errados”


“Você consegue imaginar se a Alemanha perdesse Gerd Müller ou Franz Beckenbauer um mês antes do torneio? Ou se Cruyff não jogasse pela Holanda?”, disparou Rašić. Foi em Sydney que os Socceroos sofreram sua mais importante baixa. Em um segundo amistoso contra o Uruguai, Baartz foi violentamente atingido pelo defensor charrua Luis Garisto. Um dos jogadores mais talentosos e criativos da Austrália estava fora da Copa. 

Confirmando a realidade azarenta, apesar de uma vitória diante da Indonésia, os aussies perderam a última partida antes do Mundial, diante de Israel, e o goleiro titular Jim Fraser que, por motivos profissionais, também não viajou à Alemanha Ocidental. Ainda assim, o clima no país era de otimismo.

Australia Alemanha Oriental 1974
Foto: Reprodução/Socceroos/Arte: O Futebólogo

No dia 14 de junho de 1974, estreia australiana contra os alemães orientais, o jornal The Age profetizou que a classificação para a Copa do Mundo ajudava o país a se tornar menos xenofóbico. A publicação garantia, ainda, que o número de telespectadores dos Socceroos seria maior do que o que assistira à viagem do homem à lua. Ouvido, Rašić acreditava que o futebol se tornaria o esporte mais popular da Austrália, mobilizando os mais jovens. Por fim, a Federação Australiana cria que aquele marco histórico ajudaria o país a formar uma liga profissional — o que de fato aconteceria, em 1977.

Por sua vez, a imprensa germânica ridicularizava os australianos. Suas narrativas davam conta de que os oceânicos estavam em seu país à passeio. Será? A Austrália terminaria o Grupo 1 em último lugar, não sem muito suor.


No debute, vinha se segurando bem, até o lateral Colin Curran marcar contra. O centroavante Joachim Streich faria mais um gol, confirmando a vitória germânica. “De bom, as duas equipes só mostraram preparo físico [...] A seleção da Alemanha Oriental foi uma decepção, não sabendo como impor sua maior categoria [...] os alemães tiveram dificuldades de se organizar, desorientados com a correria dos australianos”, narrou o Jornal do Brasil.

“Penso que a derrota por 2 a 0 foi um dos melhores resultados de qualquer time de futebol australiano. Quando fomos ao campo não havia medo, era apenas emoção. Mal se podia esperar para pegar a bola, mas, ao mesmo tempo, eles eram um dos melhores times do mundo e estávamos lá apenas para nos divertir e tentar vencer”, comentou Jim Rooney.

O segundo jogo era contra a anfitriã e favorita, Alemanha Ocidental. Em Hamburgo, o óbvio aconteceu: Wolfgang Overath, Bernhard Cullmann e Gerd Müller, com um gol cada, sentenciaram os Socceroos. Mas, estava tudo bem. O grande premiado da tarde seria Alston. Ao final do jogo, conseguiu trocar camisas com Beckenbauer. Não havia tristeza. “Devemos lembrar é que vencemos os campeões da Ásia, os campeões do Oriente Médio, os campeões da Oceania”, indicou o atacante.


Em uma partida marcada pela invasão de campo de jovens apoiadores do presidente chileno socialista Salvador Allende, morto um ano antes, Chile e Austrália não saíram do 0 a 0 na partida final. A Austrália somara seu primeiro ponto; Rašić estava satisfeito: “Foi satisfatório para uma seleção que veio à Copa para aprender, adquirir experiência”, falou ao Jornal do Brasil.


Chegava ao fim a primeira participação de um país da Oceania em Mundiais. O Bild, uma das publicações que zombara dos aussies, retratou-se: “Estávamos errados. Os australianos foram um time maravilhoso. Adeus e boa sorte”. A missão estava cumprida. Porém, os festejos duraram pouco, surpreendentemente.

Ainda no aeroporto, Sir Arthur George, presidente da Federação Australiana de Futebol, comunicou a demissão de Rašić. Ninguém entendeu nada. O iugoslavo, que mais tarde rejeitaria a dupla cidadania, escolhendo a australiana como única, era adorado, sobretudo por seus comandados. Como que numa maldição, a Austrália passaria longos 32 anos longe das Copas do Mundo. Nesse período, o futebol da nação cresceu, mas não se tornou o esporte de preferência da maioria dos australianos. Ironicamente, seria na Alemanha, em 2006, que os Socceroos começariam a recuperar o tempo perdido.

Comentários

  1. Australia queria aprender e quase aprendeu veja bem se tivessem empatado com a ddr oriental e vencido o fraco chile mesmo perdendo pra ale ocidental talvez desse pra se classificar.e mais uma vez dirigentes ferram um trabalho pezinho no chao ao demitirem o tecnico rasic era pra ser trabalho a longo prazo.

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    1. E a mesma coisa pareceu ter acontecido com o Canadá em 1986, pois o inglês Tony Waiters, que treinou os canadenses no Mundial no México (e falecido no final do ano passado), também foi demitido depois do torneio, e parece que só agora em 2022 o Canadá vai voltar a jogar numa Copa do Mundo (no Catar, no final do ano).

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