A Recopa que opôs Alex Ferguson e Johan Cruyff

Houve um tempo em que Alex Ferguson e Johan Cruyff eram treinadores promissores. Enquanto o primeiro construíra um legado sólido no comando dos escoceses do Aberdeen, o segundo dera sinais de genialidade liderando o Ajax. Contudo, os desafios que enfrentavam no início dos anos 1990 tinham outra proporção. O Manchester United vivia penosa seca de títulos ingleses e europeus, enquanto o Barcelona tinha apenas uma meta em seu horizonte: ganhar a Copa dos Campeões, que teimosamente escapava. Porém, para ganhar tempo em suas missões, nenhum título podia ser recusado. A disputa consumada em 15 de maio de 1991 evidenciou tal realidade.

Mark Hughes Busquets 1991 Manchester United Barcelona
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


A construção de dois ícones


Os legados de Ferguson e Cruyff, respectivamente em Manchester e Barcelona, são indiscutíveis. Mas, claro, não se consolidaram do dia para a noite. Em 1990-91, os trabalhos da dupla estavam sob análise. É verdade que o escrutínio sobre o escocês era mais pesado. Fergie era extremamente respeitado em seu país; alcançara sucesso sem liderar uma das duas grandes potências nacionais, Celtic e Rangers. Os triunfos no Aberdeen lhe renderiam ofertas recusadas de clubes como Arsenal. Além disso, o levariam a suceder, ainda que por força de circunstâncias maiores, o lendário Jock Stein na seleção de seu país.

Alex era, evidentemente, um nome importante na cena britânica. Porém, nunca comandara um gigante global. Em especial, não tinha experiência em um cenário em que vencer é mandatório, estando as vitórias escassas e em contraposição aos sucessos de seu maior rival. Em 1986, quando o Manchester United firmou parceria com o escocês, fazia 20 anos que os Red Devils não conquistavam o campeonato inglês. Nesse ínterim, os mancunianos chegaram a descer às profundezas da segunda divisão. Três títulos da FA Cup alentavam, mas não aplacavam as dores, em especial a de cotovelo, face aos êxitos recentes do Liverpool.

A parceria entre United e Ferguson se sugeria positiva justamente por isso: enquanto o clube precisava se reerguer, o treinador buscava se afirmar nos grandes palcos. O mutualismo era patente, embora seja improvável que qualquer dos dois tivesse ideia da dimensão do que conquistariam juntos.

Alex Ferguson Aberdeen Winners Cup
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

A história de Cruyff era outra. Enquanto Fergie fora um atleta sólido do futebol escocês, mas com parcas aparições pela seleção nacional, Johan era uma estrela mundial. Seus feitos por Ajax, Holanda e Barcelona dispensam apresentação, assim como a personalidade, liderança e as ideias. No entanto, em que pese sua experiência como atleta, ele não era um treinador experiente. Em termos, tinha menos lastro que o escocês. Cruyff vencera duas vezes a Copa da Holanda e uma a Recopa Europeia, tudo com o Ajax, entre 1985 e 88.

O treinador deixara o clube em rota de colisão com a diretoria. Vários eventos foram minando a confiança de Cruyff em seus superiores. Como narra em texto autobiográfico, a gota d’água foi a queda da negociação para contratar o argelino Rabah Madjer, ídolo do Porto. O acerto fora vazado antes da hora, o Bayern tomara conhecimento da situação e se antecipara aos Godenzonen

Com problemas em um lugar que chamava de casa, Johan retornara em 1988 ao seu outro lar. Ele conhecia a mentalidade do clube, sabia de sua história de tradição mas não tantos títulos, e estava ciente de que a perda da Copa dos Campeões de 1985-86, para o Steaua Bucareste, era um trauma a ser zelosamente gerido. O clube precisava ser reestruturado.

Os desafios de Johan e Alex eram grandes, mas eles estavam em locais que, como pouco mais tarde ficaria evidente, tornar-se-iam reflexos de sua cultura de futebol.

Johan Cruyff Ajax Manager
Foto: Bart Molendijk/ Anefo/ Arte: O Futebólogo

O Barça estava de ressaca


A temporada de 1990-91 era a quinta de Ferguson no comando mancuniano, e a terceira de Cruyff na Catalunha. Os processos que o escocês vinha implementando não estavam resultando como aguardado pelas arquibancadas. A seca de títulos nacionais persistia. Um suado título da FA Cup de 1989-90 não convencera quase ninguém. A necessidade de replay contra o Crystal Palace, que buscava o acesso à elite apostando suas fichas no atacante Ian Wright, fora uma provação.

A vida de Cruyff era melhor. Na temporada de retorno ao Camp Nou, o Barça superou a Sampdoria e levantou seu terceiro título da Recopa Europeia. Não era uma Copa dos Campeões, mas não se podia desconsiderar que o trabalho do holandês começara bem. Além disso, a exemplo do que aconteceu com o United, os catalães venceram a copa nacional em 1989-90. Em dois anos na casamata blaugrana, o treinador entregara uma dupla de conquistas.

Igualmente, não se podia desconsiderar os resultados alcançados pelos clubes no ano em curso. Enquanto o Manchester United fracassara mais uma vez na missão de recuperar o comando do futebol inglês, acabando por concluir a liga em sexto lugar, o Barça batera campeão na Espanha — sem sequer entrar em campo. Uma vitória da Real Sociedad diante do Atlético de Madrid fora suficiente para encerrar a sequência de cinco conquistas do Real Madrid. Não por acaso, houve torcedor catalão sugerindo que a diretoria do Barcelona garantisse ao irlandês John Aldridge o título de sócio vitalício do clube. O atacante do time basco subjugara o Atleti.

Barcelona Champion La Liga  1990-91 Mundo Deportivo Cover
Arquivo: Mundo Deportivo

Cruyff seguia construindo uma trajetória de sucesso; Fergie continuava em apuros.

A questão é que o encontro entre os comandantes aconteceria apenas três dias após a conquista nacional do Barcelona. Por mais que o discurso alinhavado pelos culés fosse o de manutenção dos pés no chão e concentração total para a partida que se avizinhava, era evidente que o clube estava de ressaca. E aquele jogo tinha um componente extra para os homens de Manchester e, até mesmo, para toda a Inglaterra.

A temporada 1990-91 reintroduziu os clubes ingleses nas competições europeias. A chegada de um deles a uma decisão sinalizava a possibilidade de um feliz recomeço para a nação, após os horrores da Tragédia de Heysel.

Os minutos mais duros da carreira de Ferguson


Para confirmar a viagem à Roterdã, onde o estádio De Kuip aguardava barceloneses e mancunianos, os adversários haviam enfrentado caminhos muito diferentes. Os comandados de Ferguson não chegaram a encontrar nenhuma grande ameaça. Passaram com tranquilidade pelos húngaros do Pecs, os galeses do Wrexham, os franceses do Montpellier e os poloneses do Legia. Já o Barça… Os catalães foram letais diante de turcos e islandeses, deixando Trabzonspor e Fram comendo poeira. Porém, tiveram que suar sangue para depor o Dínamo de Kiev e a Juventus.

A final da Recopa Europeia de 1990-91 representava o segundo encontro entre ingleses e espanhóis. A balança pendia favoravelmente aos Red Devils. Em 1983-84, nas quartas de finais também da Recopa, o Manchester United mostrou a presença de espírito necessária para remontar uma derrota por 2 a 0, sofrida no Camp Nou. Em seus domínios, eliminou os catalães, vencendo por 3 a 0. Como curiosidade, naquela oportunidade, um certo Diego Maradona vestia a camisa 10 do Barça.


As escalações projetadas para a finalíssima indicavam as presenças de poucos remanescentes do encontro oitentista. Pelo Barça, Alexanco ainda era uma certeza no coração da defesa; pelo United, Bryan Robson, autor de dois gols naquela ocasião, seguia na meia-cancha. E havia ele: Mark Hughes. O atacante representava um caso peculiar. Revelado em Manchester, firmara com o Barcelona em 1986. No entanto, não teria vida fácil, escanteado pelo clube em razão do limite de estrangeiros — Gary Lineker e Steve Archibald tinham preferência. Depois de passar pelo Bayern, retornara ao lar em 1988.

A decisão começou equilibrada, mas mais favorável aos interesses britânicos. Com as duas equipes trajando seus uniformes reservas, o confronto chuvoso não foi um espetáculo até o placar ser inaugurado. Adorado em Manchester, Hughes deu o golpe de misericórdia no Barça. Robson levantou a bola na área catalã, Steve Bruce se aproveitou da indecisão do goleiro Carlos Busquets e escorou. Com o gol vazio, Mark abriu o placar. Eram decorridos 22 minutos da etapa final. Atordoado, sete minutos mais tarde, o Barcelona saiu jogando mal. A bola foi recuperada no círculo central e passada para ele, Hughes. Decidido, driblou Busquets, perdeu ângulo, mas fuzilou a meta. 2 a 0. E então o Barcelona acordou.

Anos mais tarde, Ferguson reconheceria que os minutos finais daquela decisão foram alguns dos mais duros de sua carreira. “Se tivéssemos imposto nossa categoria de jogo desde o início, talvez agora estivéssemos dando opiniões diferentes. Eu me pergunto: se conseguimos quase empatar em um quarto de hora, por que não conseguimos jogar assim por uma hora e meia?”, falou Cruyff após a partida.

Cinco minutos após sofrer o segundo gol, o Barcelona diminuiu. Ronald Koeman acertou uma cobrança de falta perfeita, no canto do goleiro Les Sealey. Então, os catalães martelaram. Até o fim. Contudo, aquele dia seria mesmo lembrado como a redenção de Mark Hughes, garantindo mais respiro ao trabalho de Fergie. O 2 a 1 se consolidou e na Holanda os festejos, comportados diga-se, foram ingleses.


“Mark manteve sua palavra. De qualquer forma, atribuímos o primeiro gol a Hughes, mas depois todos comentaram que o trabalho foi praticamente todo de Bruce. Ainda assim, e dentro do excelente tom de toda a equipe, a atuação de Hughes é notável. Para nós, é maravilhoso ter Hughes. Eu já disse que ele foi para o Barcelona muito jovem e por isso não triunfou. Agora está melhor do que nunca”, pontuou o treinador escocês.

Reencontros respeitosos e respeitáveis


Ferguson e Cruyff seguiram seus processos. Os títulos viriam em profusão nos anos seguintes. E eles até se reencontraram, mas sem o equilíbrio da decisão de 1990-91. No Grupo A da Liga dos Campeões de 1994-95, o Barcelona acabaria impondo um sonoro 4 a 0 ao Manchester United, cortesia de Hristo Stoichkov, Romário e Albert Ferrer. 

“Foi uma grande lição para mim. Eles nos mostraram como é importante ter a posse de bola. Eu não tinha entendido isso até então. Aprendi como é importante ter o controle da bola em jogos europeus”, falou Fergie, após seu desaire.


Os comandantes não voltariam a se rever como contrapartes. O que não quer dizer que não entrariam, outras vezes, um no caminho do outro. Em uma dessas oportunidades, ficaria clara a estima mútua existente entre os treinadores. Como acontecera no Ajax, a saída de Cruyff do Barcelona não foi tranquila. Impactou, ainda, seu filho. À época, Jordi tinha 22 anos e representava a camisa blaugrana. Sem clima, também preferiu sair. O Ajax, eternamente associado aos Cruyff, pintou como possibilidade. Mas Johan tinha outros planos para seu caçula.

“Quando assinei pelo Manchester United, fui com meu pai buscar Sir Alex Ferguson no aeroporto [...] Ferguson nos tranquilizou e disse que cuidaria de mim pessoalmente, quase como um filho. Ele explicou que muitos jogadores jovens estavam vindo das categorias de base e que ir para o United seria o passo certo [...] Ferguson disse ao meu pai: 'Vou cuidar bem do seu filho.' Meu pai gostou disso. O contrato era bom e Ferguson tinha me impressionado. O United partiu para o aeroporto. Quando eles foram embora, meu pai e eu sabíamos que o United era a escolha certa. Mas ainda me surpreendeu quando ele me aconselhou a ir para o United, não o Ajax”, contou Jordi à ESPN.

Jordi Cruyff Manchester United
Foto: Allsport/Arte: O Futebólogo

Por linhas tortas, Cruyff e Ferguson se influenciaram até o fim. Em 2011, dois anos antes de se aposentar, Alex, que na altura já ostentava o título de Sir, seria obrigado a uma autoanálise — obra do maior discípulo do holandês. “Este pode ser o mesmo tipo de mudança de curso que tivemos alguns anos atrás, quando eles nos venceram por 4 a 0”, comentou, com franqueza, o escocês. Ele acabara de perder a final da Liga dos Campeões da Europa para o Barcelona, de Pep Guardiola, que estava em campo em 1994. 

Os maiores ganham e perdem, mas, não raras vezes, reconhecem-se uns nos outros, por mais distintas que sejam suas origens, caminhos e ideias.

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