De aposta a ídolo: Trevor Francis no Sheffield Wednesday

No dia 22 de janeiro de 1990, a imaginação não dava espaço para devaneios sobre o início de uma era de sucessos em Sheffield. O Wednesday ocupava a antepenúltima posição do Campeonato Inglês e nada indicava que melhor fortuna encontrasse as Owls. Porém, Trevor Francis, contratado na data, não era um qualquer. O futebol conhecia bem seu nome e façanhas. Aos 35 anos, não era o jogador do início da carreira. E o tempo provaria que não seria necessário correr atrás do passado. 

Trevor Francis Jogador Sheffield Wednesday
Foto: Sheffield Wednesday/Arte: O Futebólogo

Um passo atrás para dar dois adiante


“Minha maior valia sempre foi a velocidade. Provavelmente, perdi um pouco dela. Mas ainda tenho aquela explosão para alguns metros”. As primeiras palavras de Francis como parte dos planos do Sheffield Wednesday para a continuidade da temporada 1989-90, registradas pelo Guardian, disseram pouco. O atacante vinha de um período conturbado no Queens Park Rangers, em que experimentara ser jogador-treinador. Uma cirurgia de hérnia também não pressagiava grandes acontecimentos nos 18 meses inicialmente pactuados.

Aos olhos de um público cético, o acordo parecia uma tática diversionista. Fazia mais de 10 anos que o Nottingham Forest pagara ao Birmingham o primeiro milhão de libras da história do futebol inglês para contar com Trevor. Há mais de três, não representava a Inglaterra. As sagas no estrangeiro, por Sampdoria, Atalanta e Rangers, figuravam em um passado próximo em termos de vida comum, mas distante nos da vida futebolística.

Publicamente, o treinador Ron Atkinson sustentou a impossibilidade de pagar ao veterano os vencimentos que ele desejava; evitou falar sobre o atacante até o término das negociações. No fim das contas, havia planos para Trevor Francis. O ex-jogador da seleção inglesa não assumiu a titularidade das Owls, que tinham Dalian Atkinson e David Hirst na linha de frente. Entretanto, somou maturidade vindo do banco.


Tudo foi insuficiente para evitar o descenso do Sheffield. Mas prevalecia a confiança de que o trabalho de Atkinson merecia crédito. No ano seguinte, os 12 jogos, sem gols, da campanha de estreia de Francis pelo novo clube se transformaram em seis tentos, disputadas 48 partidas. O terceiro lugar no segundo escalão assegurou retorno imediato à elite. Melhor: depois de superarem Brentford, Swindon Town, Derby County, Coventry City e Chelsea, as Owls também avançaram à final da Copa da Liga Inglesa.

No que foi uma grande exibição de Nigel Pearson, o Sheffield Wednesday venceu o Manchester United, diante das 77.612 pessoas que lotaram as arquibancadas de Wembley. Retornar à primeira divisão com o acréscimo de confiança que só um título entrega era bom demais para ser verdade. Trevor Francis, costumeiramente entrando pela ponta esquerda, foi um reserva não utilizado na decisão. Porém, com seis partidas disputadas e um gol anotado, fora importante no percurso à final. Não viajara a Yorkshire para passear.


Troca de cena e polêmica com Cantona


Moralizado, Ron Atkinson foi cortejado por clubes maiores. O Aston Villa flertara com o descenso em 1990-91 e enxergou no comandante das Owls a pessoa certa para recolocar o clube nos trilhos. O desapontamento dos torcedores com a saída do técnico que fazia um trabalho prometedor durou pouco.

Na altura, Francis já era popular em Hillsborough. Como fizera o QPR anos antes, o Wednesday ofereceu ao veterano a chance de treinar e atuar — por sugestão de Ron. No ocaso da carreira de atleta, Trevor entendeu que a proposta era adequada para os seus planos de, gradativamente, deixar os gramados. Na última temporada em que apareceu com assiduidade nos campos, 1991-92, o atacante-treinador correspondeu às expectativas.

Sem perder nenhum jogador importante, Trevor Francis garantiu as chegadas do goleiro Chris Woods, internacional inglês na altura, do polivalente Paul Warhurst, uma promessa da seleção inglesa sub-21, e do atacante Nigel Jemson, também com passagens por equipes de base dos Three Lions. Se a campanha começou da pior forma possível — derrota por 3 a 2 para o Villa, de Atkinson —, seu encerramento validou o ditado popular de que um dia é da caça e o outro do caçador.

Trevor Francis Treinador Sheffield Wednesday
Foto: Sheffield Wednesday/Arte: O Futebólogo

“Eu era muito respeitado como um antigo internacional [...] Todos os jogadores se davam muito bem e havia muita experiência naquela equipe [...] ninguém falava de nós, tínhamos bom espírito e união, contou Francis ao site oficial do clube.

Com 21 vitórias, 12 empates e nove derrotas, as Owls terminaram o Campeonato Inglês na terceira posição; 15 pontos à frente dos Villans. O atacante David Hirst fechou a temporada com a terceira posição na artilharia do certame. Somou 18 tentos, marca inferior apenas aos 28 de Gary Lineker e aos 29 de Ian Wright.

Esses resultados classificaram o time à Copa da Uefa de 1992-93, aumentando a margem para investimentos. Autor de 17 gols na última liga, Mark Bright foi recrutado junto ao Crystal Palace. Contudo, o grande acerto da gestão de Francis em Sheffield viria da Costa Azul.

“Chris [Waddle] entrará para a história como um dos maiores jogadores do Wednesday [...] Fui sozinho a Paris encontrar Bernard Tapie, presidente do Marselha, e negociei a transferência sozinho. Voltei com os termos que Chris queria, que eram muito razoáveis, e os apresentei ao nosso conselho. Os diretores hesitaram um pouco, mas me apoiaram”. As aspas de Trevor, cedidas ao Daily Mail, não dão conta do gigantesco impacto da contratação de Chris Waddle.

Chris Waddle Sheffield Wednesday
Foto: The Times/Arte: O Futebólogo

Aos 31 anos, Magic Chris era um dos maiores talentos disponíveis no mercado. Depois de três anos no Olympique, desejava voltar à Inglaterra. Tinha lenha para queimar e ansiava o protagonismo. O prêmio de melhor jogador do ano, entregue pela Football Writers' Association, apenas ratificou o que foi o ano do meia. E o sucesso da contratação também diminuiu a pressão sofrida por Trevor Francis após um evento mal explicado envolvendo o francês Eric Cantona.

“Em 1992 [...] recebi uma ligação de Dennis Roach, o agente que me levou do Manchester City para a Sampdoria. Ele queria que eu lhe fizesse um favor em nome de Michel Platini, que era o técnico da França na época. Dennis me perguntou se eu permitiria que Eric Cantona, que estava saindo da aposentadoria, treinasse conosco por alguns dias”, revelou na autobiografia One In A Million.

Intempestivamente, no final de 1991, o craque anunciara a aposentadoria. Somava apenas 25 anos. Platini o convenceria a reconsiderar a decisão e, após, se esforçaria para empregá-lo. Em um inverno especialmente nevado em Sheffield, Cantona só representaria as Owls em amistosos de futebol indoor. Sem contrato, acertaria com o Leeds United, tornando-se peça angular no título inglês dos Whites.

Sheffield Wednesday Eric Cantona
Foto: The Times/Arte: O Futebólogo

O mundo caiu na cabeça de Francis: por que abrira mão da contratação do francês? “Ele estava lá apenas como um favor para Dennis Roach e Platini. Eu tinha deixado isso claro desde o início”. A contratação do francês nunca fora colocada em pauta. Logo, o sucesso de Waddle ofuscou a polêmica com Cantona. 

História copeira


Com Waddle na ponta dos cascos, o Sheffield Wednesday fez uma temporada inesquecível em 1992-93 — embora tenha perdido a terceira posição do ano anterior, finalizando a edição inaugural da Premier League em sétimo, e a despeito da eliminação rápida na Copa da UEFA, diante do Kaiserslautern. Em 47 dias, o clube viajaria a Wembley quatro vezes. A primeira delas em 3 de abril.

Depois de suplantar Cambridge United, Sunderland, Southend United e Derby County, as Owls subiram ao gramado da casa do futebol inglês para protagonizar um evento inigualável. A FA Cup entregou aos londrinos um aguardado Steel City Derby. A cidade de Sheffield, conhecida sede do clube mais antigo do mundo, o Sheffield Football Club, protagonizou uma das semifinais do torneio mais velho da história. De um lado, Sheffield Wednesday; do outro, Sheffield United.

Waddle abriria o placar aos dois minutos, em uma cobrança de falta bem feita. Embora as Owls tenham pressionado, seria Alan Cork, das Blades, a marcar o segundo gol da partida. Era o 1 a 1, no final do primeiro tempo. O marcador permaneceria inalterado no tempo regulamentar e a partida se encaminharia aos 30 minutos de prorrogação. Waddle seguiria tentando desbravar a defesa rival, com passes e dribles, mas sem sucesso. Então, uma cobrança de escanteio acabaria encontrando a cabeça de Bright. Wednesday 2, United 1.


Enquanto aguardava a chegada do dia 15 de maio, em que enfrentaria o Arsenal na final da Copa da Inglaterra, o Sheffield teve outro desafio duro contra o mesmo adversário. Hartlepool United, Leicester City, QPR, Ipswich Town e Blackburn haviam ficado pelo caminho das Owls, rumo à definição da Copa da Liga Inglesa. 

No dia 18 de abril, 74.007 pessoas se acotovelaram para assistir à decisão copeira. Logo aos oito minutos, uma cobrança de falta ensaiada levou a bola aos pés do estadunidense John Harkes, que fuzilou o goleiro David Seaman. Era o 1 a 0 para o Sheffield. Porém, um sem-pulo de Paul Merson igualou o marcador ainda na primeira etapa. Na segunda, uma bola mal afastada por Carlton Palmer chegou a Steve Morrow, que decretou o título dos Gunners.


Restava esperança no título da FA Cup. Ela aumentou depois de um empate por 1 a 1 obrigar a disputa de um replay. A última de quatro aparições do Sheffield Wednesday em Wembley aconteceria em 20 de maio.

Ian Wright estava on fire. No primeiro tempo, em altíssima voltagem, o atacante aproveitou uma recuperação de bola rápida e abriu a contagem. Mas Waddle tinha um plano. Aos 68 minutos, uma bola foi cruzada da direita em direção à área vermelha e branca. A retaguarda dos Gunners afastou mal e ela terminou nos pés do craque das Owls, que afundou Seaman. A partida, outra vez, avançou ao tempo extra.

Os finalistas não evitaram o ataque e seguiram se alvejando. A trave salvaria o Arsenal. A mesma sorte, contudo, não socorreria o goleiro Chris Woods. Dramaticamente, no minuto final, o zagueiro Andy Linighan completaria um escanteio, de cabeça, garantindo mais um título para o time da capital.


“No final, foi decepcionante não conseguirmos um troféu. Chegamos perto, os jogos foram apertados. Mas demos aos torcedores uma corrida inacreditável. Lembro-me de dizer a Dave Richards [então presidente do clube] para desfrutar este momento. Na época, eu sabia que, para um clube como o Sheffield Wednesday, seria difícil de repetir”, disse Trevor ao Daily Mail. “Sempre olho para o replay, quando Mark Bright acertou a trave na prorrogação. Mesmo o gol da vitória, foi um cabeceamento poderoso de Andy Linighan e Chris Woods permitiu que passasse por suas mãos. Estávamos a segundos dos pênaltis”.

Fim de ciclo


A temporada 1992-93 fora formidável e, ainda assim, deixara um sabor acre na boca do torcedor das Owls. Parecia sabido que aquele time, envelhecido, não repetiria em prazo razoável desempenho tão empolgante. Waddle, Bright, Pearson, Viv Anderson, Woods… todos rompiam as barreiras dos 30 anos. A renovação, com contratações cada vez mais caras, não traria os frutos esperados.

Em 1993-94, o Wednesday gastou £7,4 milhões de libras em peças como Andy Sinton e Andy Pearce. Em vão. Dos negócios daquela janela, apenas Des Walker, vindo da Sampdoria, seria uma aposta de sucesso. Na Premier League, o time voltaria a terminar em sétimo lugar, sem outros sucessos em copas. Com apenas um jogo disputado, Trevor Francis finalizaria a carreira de atleta no fechamento da temporada. Seguiria como treinador em 1994-95, mas não por muito tempo.

Até o início de 1995, as coisas correram razoavelmente bem. Entre o Boxing Day e o dia 11 de fevereiro, por exemplo, o Sheffield emplacara oito rodadas de invencibilidade, com cinco triunfos e três empates. O problema veio depois. Foram 15 rodadas até o término da Premier League: nove derrotas, três empates e parcas três vitórias. Esse ínterim ainda ficou marcado por um desastre acachapante diante do Nottingham Forest, 7 a 1. Os murmurinhos não demoraram a se materializar.


“Foi o segredo mais mal guardado do futebol. Com quase três meses restantes da temporada, a maioria das pessoas parecia pensar que eu seguiria meu caminho, seria demitido no final da temporada. Mas eu tive que agir com o máximo de dignidade que pude [...] Era importante que eu fizesse a equipe terminar a temporada em uma posição razoavelmente saudável. Embora minha saída não tenha sido surpresa no final da temporada, ainda foi uma grande decepção”, lamentou Trevor Francis ao Yorkshire Post. O time ficou em 13º lugar na Premier League.

Cinco anos e meio após sua contratação, o jogador que se tornou treinador, a peça de que inicialmente pouco se esperava no fechar de cortinas de sua carreira, estava novamente em busca de emprego. O ciclo de Trevor Francis, ao final uma figura cultuada no rol dos grandes ídolos do Sheffield Wednesday, encerrara-se. Era o adeus a uma trajetória espetacular, que foi da desconfiança ao crédito total, da dor do rebaixamento ao êxtase das grandes decisões.

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