Ciclos, heranças e ensinamentos: a excelência vem de Nantes

É a segunda semana de julho de 1998. No Stade de France, a Copa do Mundo é erguida por Didier Deschamps. A França se introduz no olimpo do futebol. O feito é também uma vitória do País Basco e uma herança da Guerra Civil Espanhola; colore-se de amarelo. Entre as referências estéticas dos Bleus está a do jeu à la nantaise.

José Arribas Nantes
Foto: Ouest France/Arte: O Futebólogo

Em 1937, quase exatamente 51 anos antes, o Exército Nacionalista espanhol, apoiado por tropas italianas, invade e toma Bilbao. É apenas mais um capítulo da ascensão do fascismo na Península Ibérica. O conflito dura uma semana e o País Basco cai. Nas próximas quatro décadas, haverá resistência cultural, mas quase sempre a portas fechadas. 

Até José Ángel Iribar e Inaxio Kortabarría, ícones de Athletic Bilbao e Real Sociedad, pisarem no gramado de Atotxa, em San Sebastián, ostentando a bandeira de sua comunidade, serão extenuantes 39 anos sem nem poder falar seu idioma publicamente. Não muito longe dali, contudo, expressões bascas já se consolidaram.

Além dos Pirineus, José Arribas se estabelece. O bilbaino tem 16 anos e viaja sozinho. Antecipando-se ao desastre de seu país, muda-se para Nantes. O pai ficou para trás e nunca mais se encontrarão. A Segunda Guerra Mundial o encontra, contudo. Nos anos em que a cidade se vê subjugada pela presença de soldados alemães, trabalha e joga bola nas docas, sendo apelidado Bibi, em alusão à sua cidade natal.

Quando o conflito se encerra, o basco se encontra em seus 20 e poucos anos, talvez um pouco velho para começar uma carreira no futebol. Ele tenta mesmo assim, assinando pelo Le Mans. A passagem é curta e, em 1952, começa a colocar suas ideias em prática. É agora treinador.

Guerra Civil Espanhola info

***

Bayonne fica mais ou menos a 150 quilômetros de Bilbao. Enquanto Arribas se afirma como um dos grandes treinadores do futebol francês, com dois títulos da Ligue 1, Deschamps tem seu primeiro vislumbre do mundo. Ele ainda não sabe, mas não vai demorar a reconhecer no amarelo a cor mais importante da sua história, mais do que o azul.

***

Arribas começa sua incógnita carreira comandando Saint-Malo e Noyen-sur-Sarthe. Suas ideias soam à canarinhos, com suas equipes atuando na versão mais moderna do esquema tático 4-2-4, aquela que consagrou o Brasil campeão do mundo em 1958, quando Zagallo, o ponta esquerda, recuou para compor o meio-campo e os sul-americanos marcaram por zona. Seu jogo se baseia em três substantivos: velocidade, técnica e inteligência e ele admira um lendário treinador do Liverpool, Bill Shankly.

É 14 de julho de 1960. O Nantes está mergulhado na segunda divisão, de onde nunca saiu. Arribas e o clube firmam seu primeiro contrato, ele retorna à cidade e as coisas começam a mudar. A principal preocupação do presidente, Jean Clerfeuille, é que o soldo do comandante seja baixo. Dinheiro não é problema e a reunião dura 10 minutos. Arribas supera um início terrível, já que na 6ª rodada da campanha de 1960-61 encara uma derrota por 10 a 2, diante do Boulogne. Clerfeuille se põe firme. 

No ano seguinte, serão os jogadores os responsáveis por manter o treinador empregado: ou ele fica, ou saímos todos.

São três temporadas até o inédito acesso à elite, que é conseguido sem título mas de modo contundente. O time não sobe com o ataque mais positivo e nem com a defesa menos vazada, mas tem o melhor saldo de gols do certame de acesso, com 44 gols. Não é demérito terminar a competição quatro pontos atrás do famoso Saint-Étienne, que já foi campeão da primeira divisão. Os Verts inclusive vencerão outra vez já na próxima temporada. 

Para o Nantes, falta mais um ano e muitos cigarros.

Nantes info

A confirmação de que o trabalho está dando certo vem em 1964-65. O Nantes é o campeão francês pela primeira vez. Um de seus jogadores mais importantes, e que será determinante nos anos seguintes, é o meio-campista Jean-Claude Suaudeau. Coco incorpora como poucos as ideias de seu mentor, que recusa-se a aceitar os ensinamentos que vêm da Itália e vencem campeonatos europeus. Sob seu comando, não se pratica o catenaccio. Busca-se um senso de colaboração, com movimentos coordenados e estilo ofensivo. Em poucas palavras, coragem e espírito de equipe.

Se engana, porém, quem vê na liberdade de expressão conferida por Arribas aos seus chefiados permissão para a displicência ou possibilidades de o individualismo passar por cima do coletivo. O treinador sabe que, para continuar vencendo, é preciso ser perfeccionista e exigir a manutenção dos mais elevados padrões de desempenho. 

O jeu à la nantaise não é algo que surja sem esforço.

***

Deschamps passa a juventude a representar um time local, até ser notado pelo Nantes. A viagem é longa, afinal são mais de 500 quilômetros. Ele tem apenas 15 anos e logo vai se encontrar com Suaudeau. Antes, precisa se entender com Raynald Denoueix. Faltam dois anos para sua estreia como profissional.

***

Tricampeão! É 1972-73 e o Nantes reconquista a coroa francesa. É o terceiro título nacional de José Arribas, que vinha de um jejum de cinco anos, após o bi. Suaudeau já não comanda o meio-campo flavo, mas na defesa está Denoueix. Mesmo sem um artilheiro prolífico, o time alcança o segundo posto entre os com maior número de gols no certame.

Na verdade, Suaudeau está lá, mas é parte de outro plano.

Suaudeau Nantes Arribas
Foto: Le Quotidien du Sport/ Arte: O Futebólogo

Arribas sabe que o futebol é implacável e que, para que seu clube consiga prosseguir e vencer mais vezes, precisará produzir bons jogadores; de preferência, atletas que ao subir para os profissionais entendam perfeitamente o que é exigido. É por isso que Suaudeau está encarregado de treiná-los, o que fará até 1982, quando será substituído por Denoueix, mas não irá embora. Na verdade, será promovido a treinador da equipe principal. 

***

“Foi José Arribas que definiu a identidade do clube, a qual foi continuada por Coco Suaudeau, Jean Vincent, embora nos esqueçamos dele um pouco, e Raynald Denoueix. Foi José Arribas que estabeleceu essa forma de jogar e se diz que até o Barcelona de Johan Cruyff foi, talvez, inspirado por José Arribas. Encontramos semelhanças em seu jogo de passes, no jogo coletivo”.

Muitos anos mais tarde, em 2021, o goleiro Jean-Paul Bertrand-Demanes, no Nantes entre 1969 e 87, dirá.

***

Jean Vincent é um pouco esquecido, é verdade. Trata-se de um forasteiro, afinal. É também visto como persona non grata, por parte do público.

É 1976 e Arribas quer renovar seu vínculo com o Nantes por duas temporadas. Nada feito. A oferta contempla apenas mais uma. O presidente Louis Fonteneau quer mudar de rota, mas é astuto o suficiente para escolher um caminho seguro. Vincent jogou no Reims dos anos 1950, aquele que, com Raymond Kopa e, após, Just Fontaine, dominou o futebol francês e foi reconhecido por seu estilo, além das vitórias.

Antes de ir, Arribas diz que o melhor era promover Suaudeau, mas este segue onde está. Faltam dois anos apenas para a inauguração do novo centro de treinamento do Nantes. Seu nome? José Arribas.

Jean Vincent Nantes
Foto: DR/Arte: O Futebólogo

***

Nessa história ninguém está realmente errado.

Jean Vincent foi logo campeão, em 1976-77, feito que repetiu em 1979-80. Detalhe: nos anos sem conquistas, ficou com o vice-campeonato. Fonteneau se saiu bem quando desafiou Arribas e promoveu uma pequena ruptura. Por que pequena? Ele sabia que o trabalho de Suaudeau ainda era importante onde ele se encontrava. Vincent só sai em 1982, depois de sua pior temporada, com 6º lugar.

Enfim, é hora de Suaudeau assumir. Em 1982-83, o Nantes é o campeão outra vez e agora tem um artilheiro que não economiza bolas nas redes adversárias. O iugoslavo Vahid Halilhodžić emplaca 27 gols e prova que Arribas ainda vive no clube.

“[No Velez Mostar] Eu costumava ficar muito tempo com a bola nos pés e estava recuando demais. O jogo do Nantes era de um toque, em um lance a bola se movia de um lado para o outro. Depois da primeira temporada, eu queria ir embora. Aos poucos, consegui mudar meu jeito de jogar [...] os anos seguintes foram maravilhosos”, vai dizer o atacante, muitos e muitos anos mais tarde. Ele também será treinador do clube um dia.

Suaudeau fica até 1997. Vence a Ligue em 1994-95 e se delicia com a qualidade dos frutos que caem em profusão das árvores do clube, outrora sementes cultivadas por ele e Denoueix. Eles têm nomes que vão ficar muito conhecidos em breve. Patrice Loko, artilheiro do time, é um deles. Nicolas Ouédec, Christian Karembeu, Claude Makelele, Reynald Pedros e Jean-Michel Ferri são outros.


França 1998 info

***

O Nantes não chega ao pódio francês entre 1983 e 95, mas não para de trabalhar. Deschamps vai deixar o clube em 1989, de mãos vazias. Semelhante caminho será tomado por Marcel Desailly. Juntos, em 1992-93, ajudam a transformar o Olympique de Marseille no único time francês a vencer a Liga dos Campeões.

“Serei eternamente grato a este clube por tudo o que me deu, em todos os níveis, na aprendizagem da minha profissão. Sei que o Nantes me incutiu todas as bases necessárias, mental, física e técnica”, afirmará, oportunamente, Deschamps.

Ele não será um volante excepcional, não será recordado por sua distinção técnica, como, por exemplo, seu contemporâneo Patrick Vieira. Porém, será um dos maiores vencedores da história da França. O quanto disso será possível atribuir aos primeiros capítulos de sua carreira?

***

Suaudeau se foi. É a vez de Denoueix. Campeão francês em 2001, ele começa a amarrar a história e faz o movimento de retorno, não dele, mas de sua dinastia. Acerta contrato com a Real Sociedad e se torna um dos mentores de Xabi Alonso. Arribas está de retorno ao País Basco, afinal.

“Denoueix era um visionário, via as coisas por um prisma diferente”.

As palavras vêm do futuro, da boca de Alonso. Essa visão do treinador quase consegue o impossível. Recheado de estrelas, o Real Madrid é o time a ser batido na Espanha e em San Sebastián ninguém espera que os txuri urdin sejam capazes de lutar por nada. Na reta final, faltam dois pontos para a conquista do título espanhol.

Também no futuro, Denoueix escreverá uma carta a Alonso: “Tive sorte de ter você na minha equipe. A um jogador como você não temos quase nada para ensinar. Nunca tive que te mudar, porque você era um super profissional, um trabalhador esforçado”.

Raynald Denoueix Nantes
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

***

Outra vez, Zagallo aparece na história, mas agora apenas para ilustrar o tamanho do feito alcançado por Didier Deschamps. A Copa do Mundo de 2018 está em suas mãos. Ele é, depois do brasileiro e de Franz Beckenbauer, o terceiro elemento que tem o direito de erguê-la como jogador e treinador. Seu time não é uma expressão do jeu à la nantaise, mas talvez já não seja possível reproduzi-lo fielmente. O futebol mudou bastante.

Tomando por base, entretanto, que o próprio Arribas descreveu sua criação não como um sistema, mas um estado de espírito em que os companheiros deveriam confiar uns nos outros e tentar se fundir, como um só organismo, a herança está lá

N’Golo Kanté e Blaise Matuidi talvez sejam a expressão máxima disso. Sua função é manter o time equilibrado e eles conseguem. Cada metro de grama que percorrem garante a Paul Pogba e Antoine Griezmann, mais criativos, o direito de passar a bola com critério e encontrar caminhos, sobretudo para Kylian Mbappé.

Deschamps não é Arribas. Não se pode afirmar categoricamente nem mesmo se chegou a conhecê-lo. Porém, é fruto de sua ideia original. É também um basco e filho de Suaudeau e Denoueix. Herança não é algo que se negue.

***

O Nantes dos anos 1960 até o início dos 2000 se foi. Arribas faleceu em 1989. Suaudeau e Denoueix estão aposentados. Versões do jeu à la nantaise, no entanto, estão por aí.

Comentários