Em memória de Renato Curi

A morte, paradoxalmente, segue sendo um dos principais mistérios da vida. De onde vem, para onde leva, suas causas e os modos de evitá-la são questões que estão no centro das grandes discussões da humanidade. Por sua vez, o esporte foi sempre tido como um gerador de saúde, um imperativo na batalha pela longevidade. Ainda assim, quando disputado em alto rendimento essa não é bem uma verdade. Um dos casos que melhor exemplifica essa questão foi o vivido por Renato Curi.

Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo

Vivendo uma vida bela


Em que pesem as diferenças existentes entre as pessoas, é uma constante o desejo por uma vida boa, bela — ainda que o significado disso seja distinto para cada um. Foi com isso em mente que Guido Orefice, protagonista de “A Vida é Bela” (1997), italiano e judeu, manteve a determinação em superar o período confinado em um campo de concentração alemão: exibindo uma atitude positiva, protegendo o filho e, ainda que à distância, aquecendo o coração de sua amada, Dora, presa em outro campo. Apesar das dificuldades e do desfecho — morte por execução —, Guido viveu o melhor que poderia dentro das circunstâncias.

A vida de Renato Curi, menos exigente, mas com ponto final semelhantemente dramático, também poderia ter rendido uma película. Filho da pequenina Montefiore dell’Aso, na província de Ascoli Piceno, região das Marcas, ao centro da Itália, alçou vôos distantes. Seu sonho, o de um futuro de sucesso dentro dos campos de futebol, pedia isso. O projeto de meio-campista deixou seu lar cedo, mas inicialmente não partiu para muito longe.


Aos 16 anos, começou a experimentar os prazeres e obstáculos de uma vida no futebol. Contratado pelos semi-profissionais do Giulianova Calcio, passou a viver aproximadamente 40km longe de casa. E já em sua segunda temporada, obteve o primeiro êxito. Em 1970-71, Curi ajudou os Giallorossi a chegar à Serie C. Além disso, depois de uma campanha de permanência, no ano seguinte o jovem participou de outro marco para o clube, que quase conseguiu o acesso à segundona, ficando em segundo lugar no Grupo B, quatro pontos atrás da SPAL.

Seu sucesso não passou despercebido. O Giulianova não chegou à Serie B, Curi sim. Contratado pelo Como, pouco antes de completar os 20 anos, finalmente subiu ao nível profissional do futebol italiano. Sua viagem agora foi mais longa. Percorreu mais de 500km para o norte, rumo à Lombardia. E, outra vez, ficou no quase. De novo, por quatro pontos. Os Lariani terminaram o certame em 4º lugar, vendo Varese, Ascoli e Ternana ascenderem à elite.

A mudança definitiva


Houve certa estranheza na nova mudança protagonizada por Curi. Ele permaneceu apenas uma temporada vestindo o uniforme azul e branco. Mesmo com o sucesso da equipe, decidiu fazer um novo deslocamento — de volta para o centro do país. Descendo 400km, firmou com o Perugia, que também estava na segundona. Porém, o time havia sido apenas o 15º colocado, somando o mesmo número de pontos da primeira esquadra rebaixada, a Reggina, 18ª.

Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo

Apesar disso, até ali a história do jovem vinha indicando que, com a sua presença, os clubes sempre aspiravam coisas grandes. Assim foi com os Grifoni. Finalmente, Curi colocou fim à sina do “quase acesso”. E não foi só isso. O Perugia conquistou o título da segunda divisão italiana. Ficou três pontos à frente do vice-campeão, justamente o Como. Era a primeira vez que os Biancorossi chegavam à elite em toda a sua história.

Em um nível de competição mais elevado, era esperado que o clube se limitasse a aspirar a permanência. Apesar disso, foi além. O Perugia terminou a Serie A 1975-76 na oitava colocação, um ponto atrás do Cesena, 6º, e que se classificou à Copa da UEFA. À época, a divisão principal do Bel Paese era disputada por 16 times. Em 30 jogos, Curi atuou 25 vezes, sempre como titular. Anotou três tentos. 

O que já era bom ficou melhor ainda, em 1976-77. O Perugia foi o 6º colocado. Ficou outra vez muito próximo da classificação para a Copa da UEFA — dois pontos atrás da Lazio. Vale o adendo de que, no ano anterior, o sexto posto também ofereceu vaga para o certame continental porque o Napoli, campeão da Coppa Italia e 5º colocado, ficou com a vaga na Recopa Europeia, abrindo mais um lugar. Já no ano em questão, o Milan, vencedor da copa, foi apenas o 10º na tabela da Serie A. Curi voltou a ter enorme influência, jogando 28 partidas, todas desde o princípio.

Veio, então, a temporada 1977-78. As coisas caminhavam bem para os Grifoni nas primeiras cinco rodadas. A despeito de um empate contra a Atalanta (1 a 1) e de uma derrota, fora de casa, para o Genoa (2 a 0), o Perugia vencera a Roma (3 a 2), a Fiorentina (2 a 1) e o Bologna (3 a 2). A sexta partida realmente colocaria a equipe à prova. O adversário? A Juventus.

Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo

A rodada fatal


O jogo era duro. Embora atuasse em casa, a missão do Perugia era a de parar um time que tinha Dino Zoff, Gaetano Scirea, Claudio Gentile, Marco Tardelli, Roberto Bettega e Franco Causio. O zero não queria sair do placar. No entanto, aquele dia não ficaria marcado na história do futebol como apenas mais um da campanha que levaria a Juve a outro Scudetto

No minuto 52, as câmeras de transmissão do jogo demoraram a entender o que estava acontecendo. Seria cobrado um lançamento lateral, quando o desespero tomou conta da atmosfera do estádio. Havia um homem caído no solo. Subitamente, um coração havia parado de bater e o corre-corre começara. Logo, maqueiros e médicos saíram correndo com ele, Renato Curi. Na transmissão, ouviu-se: “Esperamos que não seja nada de grave”. Era. E o problema era crônico, segundo indicou a autópsia.


“Renato Curi era parte fundamental do notável time do Perugia que ascendeu à Serie A nos anos 1970. Em outubro de 1977, em meio à chuva, ele caiu no círculo central de seu campo durante uma partida contra a Juventus, com 40.000 pessoas assistindo. Seu coração havia cedido, aos 24 anos. Longas discussões a respeito do papel de vários médicos, que teriam notado problemas mas sugerido que ele estava em forma para jogar na tragédia, se seguiram [...] O caso terminou com uma compensação sendo paga para a jovem viúva de Curi, que estava grávida quando ele morreu”, relatou o livro Winning at All Costs: A Scandalous History of Italian Soccer.

Curi faleceu em campo, vítima de infarto do miocárdio. Tinha 24 anos e estava aguardando a vinda de um filho. Era titular de um time da Serie A e vivia, não mais o sonho, mas a realidade de receber para jogar futebol. Era como se não existisse do que reclamar: uma bela vida. E breve. O meio-campo foi o primeiro jogador italiano a morrer durante a prática do futebol. Ainda assim, é lembrado sempre que o Perugia, hoje na segunda divisão, entra em campo. Afinal, os Grifone jogam no Stadio Renato Curi, rebatizado em 1977.

Comentários

  1. Gostaria que voltasse o TIMES QUE GOSTAMOS, e o DUPLAS INESQUECÍVEIS. O blog é ótimo!!!2

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  2. Obrigado, amigo! O Times de que Gostamos acabou mesmo. Fechei em 90 equipes. No entanto, continuo (e vou continuar) contando histórias sobre campanhas de times legais. O Duplas Históricas pode voltar a qualquer momento, fique ligado!

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