Como Roberto Mancini resgatou David Platt e forjou uma amizade duradoura

Na história do futebol italiano, não foram muitos os jogadores ingleses a atuar no Bel Paese. E a lista fica ainda mais escassa quando passada pelo filtro daqueles que, efetivamente, entregaram bom futebol. No entanto, a relação anglo-italiana deu o que falar nos anos 1990, sobretudo porque nas Ilhas Britânicas os locais viviam um choque de realidade oferecido pelo Channel Four. Não eram os jogos da Premier League que provocam furor no público, mas as partidas da Serie A. Além da diferença de qualidade — afinal, a Itália era uma espécie de “Eldorado do futebol” —, a presença de ingleses na elite italiana fortaleceu o apelo junto às telinhas. 

David Platt Sampdoria
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo

Se a passagem de Paul Gascoigne pela Lazio foi como viver próximo a um vulcão, espetacular de se ver, mas, ao mesmo tempo, marcada pela iminência de situações perigosas e intempestivas, a estadia de David Platt foi o completo oposto. O meia artilheiro havia impressionado os italianos durante a Copa do Mundo de 1990, em especial por conta de um belíssimo gol de voleio anotado nas oitavas de finais, contra a Bélgica. Porém, ele se revelaria bem mais do que um jogador de golaços — salvando-se em meio a um rebaixamento, suportando uma concorrência pesada e, enfim, desfrutando de um protagonismo banhado em glória.

Do Bari à Juventus


Em dias de absoluto protagonismo da Premier League, soa bizarra a mera especulação de que um jogador titular da seleção inglesa pudesse atuar em um clube como o Bari. Mesmo que estivesse na primeira divisão, ainda seria um time sem qualquer protagonismo e ambição. Não obstante, todos os clubes da Bota desfrutavam do prazer de contar com estrelas internacionais nos anos 1990 — o que já vinha acontecendo na década anterior. Ou seja: não foi loucura o acerto de David Platt com o Bari para a disputa da temporada 1991-92.

Ao custo de £5,5 milhões, Platt deixou o Aston Villa, sua casa nas últimas quatro temporadas, e seguiu para a Apúlia, onde atuaria com os croatas Zvonimir Boban e Robert Jarni, além do brasileiro João Paulo. Como era de se esperar, foi titular absoluto da esquadra Biancorossi. Quando não atuou, o motivo foi um de dois: lesão ou convocação. O inglês estava disposto a fazer o possível para se ambientar ao novo país e corresponder às expectativas de seu contratante — que deve ter ficado satisfeito quando David marcou em sua estreia, um empate por 1 a 1 contra o Torino.

Em reportagem do Daily Mail, o meia deixou claro que se fosse para fracassar precisaria garantir que não haveria arrependimentos. Assim, tratou de se encaixar; esforçou-se para se adaptar: “Eu queria me tornar um italiano, falar como um italiano, viver e comer como um italiano”. Em meses, já era capaz de se comunicar perfeitamente na língua local. Assim, vieram os êxitos esportivos. Naquela campanha, os torcedores do Bari puderam assistir Platt em 35 partidas, tendo o astro anotado 15 gols. Se alguém passou ileso ao triste final de temporada dos Galletti, esse foi Platt.

David Platt Juventus
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo
Os apulienses foram rebaixados à Serie B. Por outro lado, David pavimentou seu caminho para uma segunda temporada na elite italiana. Logo, vieram as primeiras propostas. Correndo atrás de um Milan que ganhava e encantava, a Juventus acabou sendo o destino de Platt. Outra vez, por um valor alto: £6,5 milhões. O problema em Turim foi que, para aquela mesma temporada, 1992-93, a Vecchia Signora trouxera o alemão Andreas Möller, e os italianos Gianluca Vialli e Fabrizio Ravanelli — estando claro que o clube já tinha farto poder de fogo em Roberto Baggio.

Com muitas opções, nem mesmo um confesso admirador de Platt (como era o caso do treinador juventino, Giovanni Trapattoni) seria capaz de ofertar um número satisfatório de minutos de jogo ao inglês. Ele atuou 28 vezes e anotou quatro gols, chegando a ficar afastado até dos bancos de reservas em determinados momentos. Nem o título da Copa da Uefa mudou sua mente quando a temporada se encerrou: precisava sair. E sabia para onde, afinal, desde janeiro de 1992, vinha sendo importunado por telefone.

Encontro com Roberto Mancini e início de uma grande parceria


Desde o memorável ano de 1990, quando Platt havia brilhado no Mundial e sido eleito o melhor jogador do Campeonato Inglês pela associação dos jogadores profissionais de seu país, Roberto Mancini havia passado a admirar o jeito de jogar daquele inglês, que não era atacante, mas marcava gols como se fosse. Em janeiro de 1992, o capitão da Sampdoria começou seu percurso como stalker (neste caso, do bem).

Um rei em Gênova, Mancini sempre soube o que queria e tinha voz ativa nas decisões tomadas pela direção da Samp. Sem meias palavras, o italiano tentou convencer o inglês a trocar o Bari pelos Blucerchiati: “Nós jogamos contra a Sampdoria algumas vezes e eu havia enfrentado Robbie. Mas eu não sabia que ele havia descoberto meu telefone em algum lugar. Ele disse: ‘Sei que você tem um bom relacionamento com seu presidente, estou certo de que você pode forçar uma transferência para cá’”, recordou Platt ao Independent.

Roberto Mancini Sampdoria
Foto: Trivela/ Arte: O Futebólogo
É claro que ele acabou seduzido pelo projeto juventino primeiro. Embora a Sampdoria vivesse os melhores dias de sua história, tendo vencido uma Recopa Europeia, uma Coppa Italia, um Scudetto e, eventualmente, chegando à final da Copa dos Campeões, ainda não era uma agremiação dotada do prestígio histórico da Juve. Bem, deu errado. Mas, para a sorte do inglês, seu telefone não parou de tocar. 

“A cada duas semanas ele me ligava, pressionando-me [...] A Juventus enfrentou a Sampdoria, Robbie estava jogando, então eu tive de marcá-lo, fiquei rodeando-o, esperando que ele dissesse algo. Sempre suspeitei que eu não estava na lista da Sampdoria naquele verão, porque o presidente queria contratar Marco Osio, do Parma, mas ele passou a lista de transferências para Robbie, que tinha muito a dizer. Logo, concluí minha mudança”. 

Platt foi ao encontro de Mancini e recuperou o tempo perdido. Foram duas temporadas em Gênova, no que se revelou um tempo alegre, de bom futebol e amizade. Com ele, também chegaram dois reforços cruciais do Milan, Ruud Gullit e Alberigo Evani — que se juntaram ao sérvio Vladimir Jugovic, além de nomes experientes como o do goleiro Gianluca Pagliuca, do beque Pietro Vierchowod e do polivalente Srecko Katanec. 

Sob o comando de Sven-Goran Eriksson, a Samp fez boa campanha na Serie A 1993-94, ficando na quarta colocação. De quebra, levou mais uma conquista da Coppa Italia para casa, massacrando o Ancona na decisão, 6 a 1. Em seu primeiro ano, Platt fez 38 jogos e marcou 11 gols. Na segunda temporada, foram mais 34 partidas e 10 gols. Formidável, não? Mancini estava certo o tempo todo. Porém, o bom momento, aliado a um segundo ano coletivamente mediano e às saudades de casa, puseram um fim à passagem de David pela Samp.


Juntos nos bancos e na vida


De Gênova, Platt voou a Londres, assinando com o Arsenal — na última temporada dos Gunners antes de Arsène Wenger assumir o comando da equipe. O inglês teve boa prestação nas três temporadas em que atuou em Highbury, mas viu seu papel ser limitado no último ano, com a formação da parceria dos franceses Emmanuel Petit e Patrick Vieira. Na sequência, voltou brevemente à Samp, como treinador (tendo sofrido forte pressão em razão de alegada pouca qualificação para o cargo), e passou duas temporadas fracas como jogador e treinador do Nottingham Forest. 

Sem ver a carreira nos bancos decolar, mesmo depois de comandar por três anos a seleção inglesa sub-21, entre 2001 e 2004, Platt acabou deixando de lado esses planos e começou a gerir um negócio de viagens pelo mundo voltadas para a prática de golf. Até que seu telefone tocou outra vez. Até que um velho amigo reapareceu. Era o ano de 2010 e Roberto Mancini treinava um recém-endinheirado time do Manchester City. Agora era o italiano que militava na Inglaterra.

David Platt Manchester City Roberto Mancini
Foto: SkySports / Arte: O Futebólogo

“Estava na Turquia, jogando golf [...] e Robbie estava dizendo: ‘Você trabalharia comigo?’ Minha família estava por perto, a vida tinha um balanço perfeito. ‘Não’, disse a mim mesmo. ‘Não, não, não”. Mas, é claro, eu não podia dizer ‘não’. Se eu tivesse feito isso, sempre pensaria ‘e se?’”, completou à reportagem do Independent.

Platt foi um dos auxiliares de Mancini até o fim de sua passagem pela equipe mancuniana, ou seja, até o final de 2013 — vencendo uma Premier League e uma FA Cup. Depois, treinou apenas os indianos do Pune City, em 2015. O certo é que, próximos ou distantes, Roberto e David fizeram duas parcerias de sucesso e se tornaram amigos. Em Gênova e Manchester, trabalharam bem juntos. No entanto, enquanto Platt voltou a se afastar dos campos de treinamentos, Mancini seguiu sua carreira como treinador. Quem sabe o telefone do inglês não volte a tocar?

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