Como o Bordeaux viveu o céu e o inferno em cerca de uma década

As gerações mais recentes reconhecem: a cidade de Bordeaux nunca viu um time mais talentoso e encantador do que o que desfilou bom futebol nos anos 1980. O treinador Aimé Jacquet teve o tempo necessário para montar uma constelação de craques; sua principal estrela respondendo pelo nome de Alain Giresse. Aquele time fez história dentro e fora da França, com títulos e campanhas de respeito. Porém, viveu um fim duro e abrupto.

Bordeaux Champions Giresse
Foto: Reprodução/Bordeaux/Arte: O Futebólogo

No banco, Aimé Jacquet; na presidência Claude Bez


Jovem treinador, Aimé Jacquet foi contratado pelo presidente Claude Bez para comandar o Bordeaux em 1980. O técnico vinha de quatro temporadas com o Lyon, clube em que havia encerrado sua carreira como atleta. Naquela altura, o cenário vivido pelos Gones era ruim, com campanhas turbulentas e problemas financeiros. Jacquet ajudou o time a deixar a segunda divisão e, ao menos por um período, fixar-se na elite. Assim, fez seu cartaz.

Bez, que vinha da área da contabilidade, já estava no comando do clube desde 1977. Desde então, vinha sendo fundamental à recuperação da equipe. Tal ficou flagrante nas colocações em que o Bordeaux terminou no Campeonato Francês. O 16º lugar na temporada de estreia deu lugar ao 10º na segunda, e ao 6º na terceira. O bigodão era a marca do dirigente que mudou a realidade dos girondinos. Para o bem, e para o mal.

Claude Bez Bordeaux
Foto: Vincent Olivar/Arte: O Futebólogo
Na França, o mandatário é lembrado como o dirigente que transformou a relação dos clubes com os direitos de televisão. Antes de sua intervenção, no início dos anos 1980, as partidas eram transmitidas sem que se pagasse um centavo às equipes. A partir de seu racha, que envolveu controvérsia com o canal Antenne 2, os clubes viram o panorama se modificar e passaram a receber. 

A influência do patrão não era restrita ao ambiente de Bordeaux. À rádio francesa RMC, Jean-Michel Aulas, o mais famoso presidente do Lyon em todos os tempos, revelou ter buscado o conselho de Bez no início de sua trajetória. Teria recebido uma resposta com o jeitão do chefe do time azul marinho e branco:

“Quando procurei Claude Bez em Bordeaux, não sabia nada de futebol. Além dele, também fui atrás de Bernard Tapie [do Marseille], porque eles eram os dois que vinham marcando seu tempo em termos de empreendimentos no futebol. Claude me disse: ‘Você precisa buscar dois jogadores, um cara legal e um cara mal’”.

Em sintonia, Bez e Jacquet se entenderam e proporcionaram as condições que elevaram o patamar do Bordeaux. A parceria durou até 1989, quando o treinador, que mais tarde lideraria a França ao seu primeiro título Mundial, seguiu para o Montpellier.

Aime Jacquet Bordeaux
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Dentro das quatro linhas, tudo girava em torno de Giresse


“O Motor”. Era este o apelido daquele meio-campista baixinho e que fazia de tudo um pouco. Ele tinha o drible e o gol; começava as jogadas e também as terminava se preciso fosse. Não tinha na vaidade um traço forte, tanto que, na seleção francesa, era uma daquelas peças fundamentais ao brilho de Michel Platini.

Revelação do próprio Bordeaux, dedicou 16 anos de sua trajetória profissional aos girondinos. Tendo estreado em 1970, acompanhou de dentro todo o processo de engrandecimento da equipe. E foi escolhido como o protegido de Bez. Em 2017, entrevistado pelo l’Equipe, Giresse contou como obteve seu primeiro bom salário. Aquilo foi apenas um indicativo do modo como era visto e estimado pelo mandatário do clube: 

“Fui ver [Claude] Bez ao final da temporada 1981: ‘Olha, sou um jogador internacional agora e as minhas condições continuam sendo as de um garoto do clube’. Sua resposta foi: ‘Eu sei e estou muito feliz com você. O verei como a eles [os jogadores internacionais]’. Eu não tinha um agente. Não sabia como eu falaria com ele e aquilo durou trinta segundos. E ele multiplicou meu salário talvez por dois ou três”.

Girard Giresse Bordeaux
Foto: Reprodução/Bordeaux/Arte: O Futebólogo
Ao redor de Giresse, Bez e Jacquet foram montando um grande time. Em seu primeiro ano de Bordeaux, o clube recebeu o zagueiro Marius Trésor. O renomado defensor vinha do Olympique de Marseille, era selecionável francês desde 1971 e havia capitaneado os Bleus em diversas ocasiões. Junto a ele também desembarcou no clube o volante René Girard, vindo do Nîmes. 

Em 1981, foi a vez de o clube fechar com o incansável meio-campista Jean Tigana, que o treinador girondino bem conhecia de seu tempo no Lyon. Em 1982, veio o artilheiro alemão Dieter Müller, ex-Colônia e Stuttgart. Em 1983, chegaram outros jogadores de extensa passagem pela seleção francesa: do Saint-Étienne foi contratado o zagueiro Patrick Battiston, que havia representado a França na Copa de 1982; do Nantes, o lateral esquerdo Thierry Tusseau.

Por fim, em 1984 chegou a primeira grande estrela do além-França. Craque do Benfica e da seleção portuguesa, Fernando Chalana desembarcou na Nouvelle-Aquitaine para completar um time que já encantava. Ainda que o talento do lusitano não tenha desabrochado no clube, tendo ele sofrido muitas lesões, sua contratação era um atestado das ambições da esquadra. Além do Chalanix, o clube contratou o goleiro Dominique Dropsy, que disputara o Mundial de 1978.

Chalana Bordeaux
Foto: DR/ Arte: O Futebólogo
Essas peças se juntaram a um núcleo duro não menos forte. Fala-se na presença dos defensores alemão Gernot Rohr e francês Jean-Christophe Thouvenel e do atacante Bernard Lacombe, figurinha carimbada na seleção gaulesa. Ou seja: a defesa tinha imposição; o meio-campo combinava força, vitalidade e talento; e o ataque conhecia o caminho do gol. Mudanças ocorreriam mais tarde, mas tudo só foi possível ante esse início marcado por constante melhora.

Taças domésticas e destaque continental 


No primeiro ano de Jacquet, o Bordeaux logo se destacou. Com a segunda melhor defesa do certame, terminou o Campeonato Francês na terceira posição, classificando-se à disputa da Copa da Uefa de 1981-82. Na competição europeia, o time teve o azar de, logo na segunda fase, enfrentar o Hamburgo, que seria vice e, no ano seguinte, venceria a Copa dos Campeões.

Mesmo assim, aquele ano não foi ruim. Com o quarto lugar no Francês, o time voltou à Copa da Uefa. E, em 1982-83, viveu o ensaio final. O time parou na terceira eliminatória na disputa continental, mas foi vice-campeão francês. Como em qualquer ensaio, logo depois veio a apresentação perante o público. Foi o que aconteceu na temporada 1983-84 do Bordeaux. 

Foto: Reprodução/Bordeaux/Arte: O Futebólogo

Em que pese a pesada eliminação da Copa da Uefa logo na primeira fase — contra o Lokomotiv Leipzig —, com um ataque implacável, o melhor da liga (72 gols em 38 partidas), o clube finalmente subiu ao lugar mais alto do pódio francês. E os gols marcados foram fundamentais para a decisão da disputa, já que o Monaco empatou em pontos com os Marine et Blanc, ficando com o segundo lugar no saldo de gols. 

Além de recuperar uma conquista que não vinha desde 1950, o Bordeaux chegou, pela primeira vez, à disputa da Copa dos Campeões. Na oportunidade, enquanto reafirmaram seu lugar de domínio na França, somando mais um título nacional, em 1984-85 os girondinos sonharam com a glória europeia. E não foi nenhum delírio o que se viveu. 


Depois de deixar Athletic Bilbao, Dínamo Bucareste e Dnipro pelo caminho, o Bordeaux teve pela frente a força da Juventus, nas semifinais continentais. E, se a impressão de que o 3 a 0 que a Vecchia Signora abriu na partida de ida, em Turim, era um ponto final, a partida de volta provou o ledo engano. Em seus domínios, no Stade du Parc Lescure, os homens de azul marinho venceram por 2 a 0 — gols de Müller e Battiston — e lutaram até o final, sem se render. 

O ano seguinte, 1985-86, até acenou com um alerta, que foi devidamente observado. Eliminado pelo Fenerbahçe na primeira fase da Copa dos Campeões e terceiro colocado no Francês, o time precisou correr atrás do prejuízo e deu um jeito de diminuí-lo, conquistando a Copa da França e se qualificando à disputa da Recopa Europeia de 1986-87.

Tigana Giresse Bordeaux Champions
Foto: Reprodução/Bordeaux/Arte: O Futebólogo

O início de um fim duro de engolir


Agora considerado prescindível por Aimé Jacquet, que decidira lhe sacar a braçadeira de capitão, Giresse decidiu deixar seu querido Bordeaux ao final da campanha de 1985-86. Autor do gol do título da mencionada Copa da França, não suportou o desprestígio e decidiu entregar seus dois últimos anos de carreira ao Olympique de Marseille. Esse movimento também significou uma ruptura entre Giresse e Claude Bez. O mandatário não engoliu ver seu favorito vestindo a camisa de outro clube francês.

Mesmo assim, os girondinos levantaram taças em 1986-87. Tendo em José Touré e Jean-Marc Ferreri dois novos artífices, Jacquet conduziu o Bordeaux a mais um título francês, além de outra glória na Copa da França — contra o OM, de Giresse. O time ainda fez campanha de semifinal na Recopa Europeia. Mas o fôlego acabou.


Em 1987-88, o Bordeaux chegou às quartas de finais da Copa dos Campeões, eliminado pelo futuro campeão PSV Eindhoven. No campeonato nacional, ficou em segundo. No ano seguinte, caiu para 13º e, enfim, Jacquet deixou o clube. Mesmo assim, em 1989-90, os girondinos conseguiriam mais um vice-campeonato nacional, antes de enfrentarem um terrível desfecho. Aquele seria o último ano de Bez na direção do clube, que terminou na mais absoluta crise.

Na temporada 1990-91, o Bordeaux acabou o Campeonato Francês na 10ª colocação. Porém, um déficit financeiro na casa de um valor que, atualizado, equivaleria a 45 milhões de euros, o levou a um rebaixamento administrativo e a problemas que não conseguiram ser resolvidos nos muitos anos que se acumularam após.

Zidane Bordeaux
Foto: Action Images/Arte: O Futebólogo
Ainda nos anos 1990, o time até viveria bons momentos, apostando em jogadores como Bixente Lizarazu, Christophe Dugarry, Sylvain Wiltord, Lilian Laslandes e, principalmente, Zinedine Zidane, mas nada parecido com o que viveu nos anos 1980. As glórias ainda apareceriam, mas de modo esparso. 

Depois de passar por Montpellier e Nancy, Jacquet se tornou auxiliar técnico da Seleção Francesa em 1992, e, no ano seguinte, em meio à crise que surgiu ante a ausência no Mundial de 1994, assumiu o selecionado. Seria campeão da Copa de 1998.

Por sua vez, Bez, o homem que tornou sonhos e pesadelos realidade em Bordeaux, foi condenado a dois anos de prisão por fraude em 1994. E faleceu em 1999, vítima de um ataque cardíaco, aos 58 anos. Ainda que não tenha vivido muito, fez o suficiente para se eternizar na história girondina e de todo o futebol francês. Como Jacquet, Giresse e companhia também.

Comentários