Luther Blissett: o artilheiro inglês que fracassou no Milan

Foi durante os anos de 1980 que o Watford viveu suas maiores glórias na Inglaterra. Naquela época, comandado por Graham Taylor, o time foi subindo degraus de modo impressionante. Em 1977-78, os Hornets se encontravam na quarta divisão. Poucos anos depois, na temporada 1982-83, a equipe alcançava o segundo lugar da elite. Tudo sob a direção de um astro da música pop, o mais famoso torcedor da agremiação: Elton John. Foi nessa realidade que Luther Blissett foi revelado e ganhou destaque internacional.

Luther Blissett AC Milan
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Um goleador adaptado às exigências de Taylor


Não foi jogando por música que o Watford alcançou os feitos incríveis daqueles dias. A equipe se tornou a imagem e semelhança do famigerado e pouco sofisticado estilo kick and rush. Eram tempos bem diferentes dos que vieram a partir da criação da Premier League e das mudanças promovidas no mercado europeu a partir da  conclusão do Caso Bosman

Pragmático, o time apostava em bolas longas para jogadores de referência se debaterem contra os zagueiros rivais, sempre à procura do gol. Sem muitos passes ou intimidade com o instituto do drible. Sem fantasia. Objetivo. Com a dureza dos que querem vencer, mas o bom trato das pessoas decentes, Taylor extraiu o melhor de um elenco sabidamente limitado. E também se preocupou em criar laços com a comunidade.

Luther Blissett Watford Everton
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

“Os jogadores eram forçados a viver dentro de 30 milhas do [estádio] Vicarage Road e a gastar tempo não apenas em escolas locais e hospitais, mas em pubs e restaurantes de suas vizinhanças, construindo laços fortes com os torcedores”, reportou o Guardian.

Inserido nessa realidade de forte unidade, que, dentro das quatro linhas, favorecia os atacantes, Luther Blissett prosperou. Rápido, finalizador e dono de apurado senso de colocação na área, viu seu melhor ano ser também o mais proveitoso para a sua equipe.

Se, coletivamente, o Watford alcançou o vice-campeonato inglês em 1982-83, individualmente o goleador reinou soberano na lista de artilheiros do certame. Ele foi às redes 27 vezes em 41 jogos.

Jamaicano de nascença, Blissett ganhou chamados à seleção inglesa, que chegou a representar em 14 partidas, marcando um hat-trick em sua estreia, contra Luxemburgo. Suas convocações se limitaram ao período entre 1982 e 1984, momento em que era, indiscutivelmente, um dos maiores expoentes do futebol inglês, o que não passava despercebido além das Ilhas Britânicas.

Luther Blissett Watford
Foto: DR/Arte: O Futebólogo

O erro de avaliação milanista


Com todo esse cartaz, o Milan não hesitou quando decidiu pagar £1 milhão por seus serviços — à época um valor que não se podia desconsiderar.

Aquele era um momento importante para os rossoneri. Isso porque o time acabava de retornar da segunda divisão. Eram tempos turbulentos os que se viviam depois do caso do Totonero, em 1980, em que o clube acabou sendo rebaixado como punição pela participação no escândalo de manipulação de resultados. O Diavolo precisava, urgentemente, retomar os bons momentos e para isso apostava nos gols de Blissett.

Ao lado do belga Eric Gerets, o inglês foi a principal contratação para aquela temporada (1983-84). No entanto, não foi necessário muito tempo para entender que aquele negócio não seria nada senão um equívoco. As qualidades que o ajudavam na Inglaterra não era tão úteis com a camisa milanista. Seu porte físico, a velocidade e a boa finalização não bastavam às exigências italianas.

Luther Blissett Milan Sampdoria
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
O time não jogaria para ele, diferentemente do que acontecia em Vicarage Road. Ou seja, ele precisaria, utilizando-se de suas capacidades, produzir gols. Logo ficou claro que ele podia ser um atacante muito bom, mas, para tanto, precisaria estar inserido no contexto certo. E não foi só isso. Os gols perdidos se acumularam logo no início de sua passagem, o que não ajudou a aumentar a paciência do público com o atacante.

“Eu vinha assistindo ao futebol italiano e pensei que a marcação homem-a-homem seria boa para o desenvolvimento do meu jogo. Eu estava realmente ansioso para o desafio. A pré-temporada foi ótima — marquei nove gols em cinco partidas que jogamos — então, eu realmente queria que a temporada começasse logo. Mas no primeiro jogo, fora de casa contra o Ascoli, a mentalidade dos jogadores foi completamente diferente. Nunca tinha visto tudo aquilo quando subimos ao gramado e começamos a jogar. O que vínhamos fazendo, jogadores correndo e trocando bolas, simplesmente se tornou um jogo de posse. Foi um dos jogos mais chatos que já joguei na vida, realmente foi”, falou ao site LeftLion.

Ainda assim, aquele time do Milan estava tão atrás dos melhores competidores da Serie A que Blissett acabou jogando rigorosamente todos os jogos do Campeonato Italiano. Tal só serviu para tornar ainda mais cristalino seu desempenho pífio: em 30 jogos (apenas dois não sendo na sua integralidade), marcou somente cinco vezes. Somando-se as nove partidas jogadas na Coppa Italia, ele ainda garantiu mais um tento. 


Retorno à Inglaterra e à boa forma


Ou seja, no frigir dos ovos, Blissett atuou em 39 jogos e balançou as redes em seis turnos. Pouquíssimo. Quando o Watford buscou seu artilheiro de volta, o Milan não ofereceu resistência. Viu, feliz, a partida do anglo-jamaicano, levando um prejuízo de £300 mil. 

As tentativas de justificar a contratação daquele flop foram tantas que foi especulado até mesmo que os milanistas teriam contratado o jogador errado. Levantou-se a hipótese de que era John Barnes o homem pretendido. Porém, tal não passou de um boato rapidamente desmistificado, já que os colegas não eram tão parecidos assim.

E a volta para casa saiu como o esperado. Foi como se as peças de um quebra-cabeça magicamente se encaixassem. Blissett era mesmo um homem marcado para jogar no Watford. Logo na temporada de retorno, fez 21 gols em 41 jogos da Liga Inglesa — três a menos do que os dois artilheiros daquele ano, Gary Lineker e Dixon Dean, de Leicester City e Chelsea, respectivamente.


Ele permaneceria representando o Yellow Army até a campanha de 1989-90, antes de deixar Vicarage Road rumo ao Bournemouth. Nos Cherries, viveu três temporadas com brilho (anotou 56 gols em 121 encontros). Ainda retornou ao Watford em 1991-92, peregrinando posteriormente por West Brom, Bury e Mansfield, antes de dar nome a um coletivo artístico-anarquista europeu — mas isso é outra história.

Ao final de sua carreira, já havia se tornado um homem eterno na história dos Hornets. Com 503 partidas jogadas e 186 tentos anotados, detém os recordes de maior número de partidas e de gols pela equipe.

Não há dúvidas de que sempre será um dos favoritos do torcedor do time amarelo e preto, ainda que também tenha se tornado um personagem inesquecível no San Siro. Em ambos os lugares por seus gols. Na Inglaterra, pelas bolas que entraram; na Itália, pelas tentativas falhadas.

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