Strasbourg 1978-79, do inferno ao céu em três anos

Estrasburgo pertencia ao Império Alemão quando surgiu o primeiro esboço do Racing Club de Strasbourg Alsace, o FC Neudorf. Rica em carvão e ferro, matérias-primas de primeira necessidade durante a industrialização europeia, a região da Alsácia passara anos sendo disputada por germânicos e franceses, que passaram a controlá-la após a Primeira Guerra Mundial. Mal comparando, o futebol do Strasbourg também viveria trajetória marcada por indefinição. No final dos anos 1970, após entrar em queda livre, o clube conseguiu sucesso, ainda que efêmero.

Strasbourg 1978-79
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


A história começa mal. Em 1975-76, com uma campanha horrível, o Strasbourg perde seu lugar na elite francesa, rebaixado. Na década, é a segunda vez que tal tragédia se abate sobre a equipe. Dificuldades financeiras não dão margem a otimismo. É evidente: os melhores jogadores do clube sairão. Também é óbvio que ninguém em sã consciência aceitará de bom grado assumir a direção do time trepidante. Quase ninguém.

Alain Léopold e a missão de reerguimento


Desde julho de 1973, com os alsacianos sob a liderança de Philippe Fass, Alain Léopold integrava a estrutura bleu et blanc. Seria ele o maluco a assumir a presidência do time em 1976. Não havia urgência maior do que a redução dos custos operacionais da equipe; era a única e difícil forma de viabilizar o acesso à Ligue 1. O time vinha se desfazendo nas últimas temporadas. Peças como os selecionáveis franceses Jean-Noël Huck, Marc Molitor, Gérard Hausser e Gilbert Gress, além do israelense Giora Spiegel, foram se despedindo. Era ruim para jogadores de alto nível seguir em um time oscilante, cujas glórias máximas eram conquistas da Copa da França e da Copa da Liga Francesa, décadas atrás.

Tantas eram as agruras que, para equilibrar o orçamento do clube, Léopold pleiteou a concessão de subvenções junto à prefeitura municipal. Substituir os bons jogadores que saíam parecia impossível; ir ao mercado de transferências em busca de atletas afirmados era impensável. Mas não se diz que quase todo problema tem solução por acaso. A resposta procurada pelo mandatário estava próxima do Stade de la Meinau. Vinha das categorias de base e de times amadores da região. Um feliz acidente.

O dirigente ainda convenceu duas figuras importantes, e com laços estreitos com o Strasbourg, a ajudar o clube a renascer — um técnico e um jogador. O austro-húngaro Elek Schwartz defendera os Bleu et Blanc nos anos 1930 e treinara equipes como Porto, Benfica e Eintracht Frankfurt. Já aposentado, recatado em Haguenau, recebeu o convite. Uma última aventura batia à porta. Seriam 10 meses se revezando com o jogador-treinador Heinz Schilcher, ex-Ajax. Schwartz aceitou.

Também era importante mover as massas. Alain persuadiu o meia iugoslavo Ivica Osim a voltar ao clube que defendera entre 1970 e 72. No jogo que fechou a temporada do descenso, apenas 1.637 pessoas acompanharam o clube; isso não poderia se repetir. Veterano, aos 35 anos, o eslavo aceitou a missão de ser um chamariz para o povo, que no passado recente vibrara com suas jogadas.


Léopold teve sorte. Contou com um grupo de vice-presidentes crentes na sua liderança. René Maechler (relações técnicas, esportivas e de imprensa), Francis Kappeler (finanças), Gérard Haeringer (vendas), Pierre Koenig (gramado e uniformes), Nicolas Wiltberger (comitê jurídico e disciplinar), Jean-Jacques Schneider (relações públicas) e Jean-Pierre Kress (centro de treinamento) seriam peças valiosas em sua gestão.

“Éramos uma equipe de gestão unida. Tínhamos a mesma idade, discutíamos tudo, sem concordar sempre. Estávamos cientes de nossas responsabilidades, mas nunca tivemos a cabeça nas nuvens”, disse o presidente ao portal Racing Stub.

Depois do acesso, influenciado por Cruyff, Gilbert Gress retorna


O Strasbourg subiu imediatamente. Em 1976-77, com a segundona dividida em dois grupos, o campeão de cada um subia. Os Bleu et Blanc foram absolutos. Lideraram o Grupo B, somando mais cinco pontos do que o Rouen. O time venceu 23 partidas, perdeu oito e empatou três. Alcançou o espantoso saldo positivo de 58 gols, com o melhor ataque (84) e a defesa menos vazada (26). O goleador Albert Gemmrich fez 24 gols, ficando atrás apenas dos argentinos Delio Onnis, do Monaco, e Joaquim Martínez, do Toulouse.

Com a missão cumprida, Schwartz voltou a sair de cena e Schilcher seguiu apenas como atleta. A realização do desejo original de Alain Léopold estava próxima. O atacante Gilbert Gress deixara a Alsácia em 1975, encerrando a carreira na Suíça e lá começando uma trajetória como treinador. Com o Strasbourg na elite, era hora de voltar e colocar em prática suas ideias. Não era um movimento simples. A torcida não encarara bem sua saída. Mas havia convicção da parte do presidente.

Gilbert Gress Raymond Domenech
Foto: Alamy/Arte: O Futebólogo

Aos 36 anos, Gress era fã do estilo de jogo praticado pelo Ajax no início da década, o Futebol Total. Mas também bebera das fontes alemãs em sua passagem pelo Stuttgart, a partir da segunda metade dos anos 1960. Na alvorada de uma nova carreira, era importante ter liberdade para se expressar. Nenhum lugar seria melhor do que o clube em que fora revelado e que mais representara na carreira como atleta, na cidade em que nasceu. O tempo provaria que os problemas com o torcedor não passavam de uma reação proporcional à admiração que haviam nutrido nos anos anteriores.

O grupo jovem, com figuras como Léonard Specht, Jean-Jacques Marx, Yves Ehrlacher, Gemmrich, Roland Wagner e Joël Tanter, recebera acréscimos importantes. Com bagagem no futebol gaulês, Raymond Domenech e Jacky Novi, jogadores da seleção francesa, agregaram experiência à defesa. O meio-campo foi contemplado com Francis Piasecki, meia que chegou sem custos do PSG. A eles se juntavam ainda o goleiro Dominique Dropsy e o capitão Jacky Duguépéroux, que não eram garotos e não deixaram o clube quando do rebaixamento. Mais tarde, um certo Arsène Wenger chegaria. Atuaria pouco, mas ajudaria no desenvolvimento dos jovens e aprenderia com Gress, a quem reconheceria como mentor.

“Parem de falar em táticas. Todo mundo está falando sobre sistemas, 4-4-2 ou 4-3-3. Como queiram. A maioria deles não tem ideia e joga com números. Você tem que jogar de forma inteligente. Ao avançar, o goleiro é o primeiro atacante. Ao se mover para trás, o atacante é o primeiro defensor. Divaga-se muito sobre questões do sistema”, afirmou Gress, em entrevista aos tchecos do Blick.

O técnico queria um time agressivo e flexível, que ocupasse os espaços com sabedoria, objetivando dominar os adversários. Montou um esquadrão francês com qualidades germano-holandesas. E não limitou sua abordagem aos aspectos do campo e bola. A preparação física também recebeu atenção especial, atingindo até mesmo o estilo de vida dos jogadores.

A temporada de volta à elite mostrou o potencial da equipe. O Strasbourg foi da segunda divisão ao terceiro lugar na Ligue 1 — apenas três pontos atrás do campeão Monaco e se classificando para a Copa da Uefa. Teve a segunda melhor defesa e o terceiro ataque mais positivo. Foi um dos três times que menos perdeu. A evolução era inegável. No ataque, mais uma vez, Gemmrich foi prolífico, marcando 21 gols (embora tenham sido muitos menos do que os 37 anotados pelo artilheiro Carlos Bianchi). Outro reflexo inegável da qualidade da temporada foi a convocação de Dropsy para a Copa do Mundo de 1978.

Dropsy Strasbourg
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A corrida para a vitória


A temporada 1978-79 começou na Alemanha, com a disputa amistosa da Copa dos Alpes. Para o ano, Gress recebeu um reforço. O atacante chadiano Nabatingue Toko foi contratado ao Bordeaux, aumentando a competição na linha de frente alsaciana. Com comando total do vestiário, que tinha apenas 23,5 anos de média de idade, o treinador deu continuidade ao trabalho e colheu os melhores frutos possíveis. Mas a estreia no Campeonato Francês sugeriu algo diferente.

Em casa, o Strasbourg apenas empatou com o Nîmes, que alinhava René Girard na meia cancha, 0 a 0. Os Bleu et Blanc começariam a vencer na rodada seguinte, mas timidamente: 1 a 0 diante do Lyon, na altura treinado por Aimè Jacquet. Apesar de os resultados iniciais não impressionarem, o time não perdia. Gress alcançara a solidez que precisava. Nas 10 primeiras partidas, foram três empates e sete vitórias, incluindo um célebre triunfo contra o Monaco, no Principado, e uma goleada maiúscula ante o Angers, 6 a 0.

Strasbourg 1978-79
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A primeira derrota estrasburguesa aconteceria apenas na 19ª rodada. Em Paris, o PSG fez 2 a 1, com Bianchi indo às redes. O time alsaciano perderia mais três vezes, diante do vice-campeão Nantes, do terceiro colocado Saint-Étienne e do Olympique de Marseille, todas as partidas como visitante. A campanha em casa beirou a perfeição, com os sucessos se fundando na fortaleza defensiva da equipe, que concedeu apenas 26 gols, em 38 partidas. Mesmo assim, foi preciso lutar até o final. Quando a última rodada começou, dois pontos favoráveis aos alsacianos separavam Strasbourg e Nantes.

A missão dos Canários era mais fácil. Fora de seus domínios, precisavam vencer o Stade Laval, que lutara contra o rebaixamento e se livrara antecipadamente. Detalhe: o Nantes tinha mais vitórias que o Strasbourg, embora tivesse perdido quase o dobro de partidas. Os azuis e brancos, por outro lado, enfrentariam o Lyon, também longe de casa. Ambos venceram. “A vitória do título de 1979 com o Strasbourg [é a melhor memória da carreira]. Vencemos por 3 a 0 em Lyon”, comentou Gress.


Naquela data, 1º de junho de 1979, Gress mandou a campo Dropsy; Domenech, Specht, Duguépéroux e Marx; Deutschmann, Ehrlacher, Piasecki; Tanter, Gemmrich e Wagner. Este, duas vezes, e Ehrlacher fizeram os gols da vitória mais importante da história do Strasbourg.

Três anos depois da queda à segunda divisão, em crise financeira e institucional, os alsacianos celebravam o primeiro título francês de sua história. Ali, entravam para um seleto grupo de clubes que conquistou as três principais taças nacionais: campeonato, copa e copa da liga. E o ano poderia ter sido ainda melhor. O Strasbourg chegou às semifinais da Copa da França. Acabou eliminado pelo Auxerre, mas somente no critério do gol fora de casa, após empates por 0 a 0 e 2 a 2.

O único desempenho ruim da temporada viria da Copa da Uefa. Depois de passar, sem muita tranquilidade, pelos suecos do Elfsborg e os escoceses do Hibernian, a derrota para os alemães do Duisburg seria pesada: 4 a 0. Nada que tenha desviado os franceses de sua rota vitoriosa.

Vaidades acima do clube


Quando o time só precisava construir um futuro tranquilo em cima de uma base sólida e bem-sucedida, as vaidades falaram alto. O cheiro podre começou a se alastrar quando André Bord ganhou as eleições para a presidência do clube, durante a pré-temporada de 1979-80. Alain Léopold foi sumariamente afastado do clube que reerguera. Outras baixas sentidas seriam a do capitão Duguépéroux, que se aposentou, e de Gemmrich, vendido ao Bordeaux.

A primeira rusga concreta entre diretoria e comando técnico aconteceu quando Bord obrigou Gress a engolir a contratação de Carlos Bianchi. O argentino era um ótimo artilheiro, mas não era uma peça adaptável ao sistema dos Bleu et Blanc. Antes, o caldo já havia ameaçado entornar, quando o presidente tentou contratar Johan Neeskens. Felizmente para o clube, não deu certo. A continuidade da carreira do craque holandês aconteceria nos Estados Unidos, sem destaque.

André Bord Gilbert Gress
Foto:Claude Truong-Ngoc/Arte: O Futebólogo

Quando os choques começaram a ficar evidentes e públicos, especulou-se o retorno de Léopold, mas não aconteceu. “Um presidente é eleito [...] O lugar está tomado. Se estivesse livre, estudaria as condições para um retorno. Nesse caso, eu seria a favor do retorno de toda a antiga diretoria”, comentou o antigo mandatário em entrevista à DNA. Bord ficou e Gress trabalhou. A sensação no final da temporada era a de que o time havia ficado aquém das expectativas, mas, diante de todos os problemas vividos, aquilo não era tão ruim.

Se o Nantes bateu na trave em 1978-79, garantiu o título seguinte. O Strasbourg teve de se contentar com o quinto lugar, 14 pontos atrás do campeão. A campanha na Copa da França não seria melhor. Apenas o desempenho na Copa dos Campeões fortaleceria o moral. Os alsacianos superaram os noruegueses do Start e os tchecos do Dukla Praga. Avançaram às quartas de finais, mas o adversário foi o Ajax. Por mais que não fosse mais o time idealizado por Rinus Michels e estrelado por Johan Cruyff, era forte e tradicional. Em casa, fez valer sua superioridade técnica: 4 a 0. A esperada eliminação se confirmou.

Carlos Bianchi Strasbourg
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Aposta do presidente, Bianchi, de 27 gols no ano anterior, sequer completou os dois dígitos em 1979-80. Na virada para a nova temporada, a situação interna não melhorou. Gilbert Gress tinha o respaldo dos jogadores, do restante da diretoria, do título alcançado e das arquibancadas. Nada disso impediu Bord de demiti-lo no início da campanha 1980-81. Enfim, o cristal que estava rachado se quebrou. Fiéis à obra de Léopold e Gress, os dirigentes Maechler, Koenig, Kappeler e Schneider também deixaram o time, em apoio ao treinador abandonado.

Passaria mais de uma década até que Gilbert retornasse ao clube. Léopold nunca voltou. Títulos de primeira linha viriam isoladamente: uma Copa da França em 2000-01 e duas Copas da Liga Francesa, em 2003-04 e 2018-19. Nesse ínterim, o time faliu e chegou a disputar divisões amadoras. Mas a instabilidade frequente não era novidade. Chegar ao topo é muito mais difícil do que cair dele, e essa lição foi reiteradas vezes vivida em Estrasburgo.

Comentários

  1. Carlos bianchi fracasou no stras mas depois no psg junto com rocheteau foi mais duas vezes artiheiro da ligue 1.incrivel como vaidades pessoais destroem um trabalho pezinho no chao como esse.

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