O balé azul dos colombianos do Millonarios
A Colômbia ocupava o centro do futebol internacional e mesmo assim se via à margem. Estava sob holofotes pela beleza das disputas protagonizadas pela nata do talento sul-americano; e, ainda assim, era uma pária por se organizar além das regras da FIFA. Em simultâneo, o futebol colombiano ficou conhecido como El Dorado e Liga Pirata. Tudo isso em meio a um cenário de convulsão político-social. Só poderia mesmo acontecer na América do Sul.
Piratas do futebol
Um dos debates mais acalorados da história do futebol se refere à disputa entre amadorismo e profissionalismo. Em meados dos anos 1940, o dissídio estava vivo nos países sul-americanos, entre os quais Uruguai e Argentina, então as principais referências futebolísticas do continente. Em 1944, os portenhos estabeleceram o sindicato dos jogadores. Entre as reivindicações feitas nos anos seguintes estavam a definição de um salário mínimo e o fim do passe. Estruturalmente, o cenário também não era pacífico, com o mundo em crise e se reconstruindo após a Segunda Guerra Mundial.
Nos gramados, entretanto, os argentinos viviam um auge. Das seis Copa América disputadas na década, venceram quatro. Muito disso em razão das qualidades dos artífices de La Máquina, o fabuloso time do River Plate que, entre outros, alinhava Adolfo Pedernera e Ángel Labruna. Mas essa é uma história do futebol colombiano. E a Colômbia estava ocupada demais com seu contexto de instabilidade para debater questões de amadorismo e profissionalismo no futebol — ou apreciar as virtudes técnicas dos Hermanos. Até 1948.
Em 9 de abril, o planeta parou para acompanhar o destino da Colômbia. Iniciava-se um período conhecido como La Violencia. O Partido Liberal, que carregava as bandeiras da esquerda, acompanhou o brutal assassinato de seu líder, Jorge Eliécer Gaitán. O evento ficou conhecido como Bogotazo e aconteceu em meio à IX Conferencia Panamericana e o Congreso Latinoamericano de Estudiantes. Lideranças como Fidel Castro estavam na capital andina quando tais eventos se desenrolaram.
No dia seguinte, o assassínio ocupou a manchete da Folha da Manhã. Os relatos eram desencontrados. Agências de notícias como France Presse, Associated Press e United Press não conseguiam noticiar mais do que o óbvio. Informações como o linchamento do assassino preencheram as páginas dos periódicos. Não havia uma Guerra Civil decretada, mas crimes dessa natureza seguiram ocorrendo por pelo menos uma década. De um lado, os conservadores Chulavitas; do outro, os liberais Cachiporros.
Quando ninguém pensava em outra coisa, Alfonso Sénior Quevedo agiu. Presidente do Millonarios desde 1946, participou de uma articulação de empresários; o povo precisava de um pouco de circo. Em 27 de junho de 1948, em Barranquilla, foi oficializada a criação da Liga Dimayor. Nascia uma competição profissional de futebol, contraposta ao torneio nacional até então existente, vinculado à Federação Colombiana de Futebol e, por extensão, à FIFA.
Havia regras — diferentes das aplicadas pelo restante do mundo do futebol, porém. Dinheiro não era problema e um sem-número de atletas sul-americanos de alto nível estava insatisfeito com as suas condições de trabalho. Houve quem tenha resistido às riquezas oferecidas pelos clubes colombianos, temendo a proibição de jogar torneios de seleções. A maioria, contudo, fez as malas e partiu para aquela luxuosa liga que não demorou a mover multidões.
“Naquela época, o futebol era muito incipiente na Colômbia, e Bogotá era uma cidade minúscula, de habitantes introvertidos e com tradições agrárias. A ‘rebelião’ de Alfonso Senior foi um passo adiante para o futebol no país”, pontuou Hésper Eduardo Pérez, professor do departamento de Sociologia da Universidad Nacional de Colômbia, em entrevista ao UOL.
Da Máquina ao Balé
O novo torneio colombiano não limitava a presença de estrangeiros. Nem exigia que seus membros indenizassem os clubes originários de seus novos atletas. Os astros vieram rapidamente, e de todas as partes. Ingleses como Charles Mitten e Neil Franklin trocaram Manchester United e Stoke City pelo Independiente Santa Fé. Em rota de colisão com o treinador da Seleção Brasileira, Flávio Costa, Heleno de Freitas não se importou de receber alguns milhares de dólares do Junior Barranquilla, a contragosto do Botafogo. Lá, encontrou-se com Marinho Rodrigues.
Destinos semelhantes tomaram peruanos, uruguaios e até mesmo húngaros, romenos e italianos. Mas a massa de estrangeiros que povoou o futebol colombiano era argentina. Em 1951, os registros apontavam a presença de 133 hermanos. Uma parte se concentrou em Bogotá, no Millonarios. Na primeira temporada da Liga Dimayor, disputada por 10 times em 1948, os Albiazules terminaram com a quarta colocação, atrás de Deportes Caldas, Atlético Júnior e do campeão Santa Fé. No ano seguinte, Alfonso Sénior tomou uma decisão importante.
Com passagens por Platense e Quilmes, o argentino Carlos Cacho Aldabe foi contratado para exercer a dupla função de jogador-treinador. Seria ele o responsável por viajar ao seu país e, na bagagem de retorno, trazer Pedernera. El Maestro era um dos articuladores das greves dos jogadores profissionais argentinos, vindo do Huracán. E era um craque da maior estirpe. Cinco mil dólares de adiantamento, mais um salário de 200, foram suficientes para convencê-lo a se mudar.
A referência maior do grande River Plate dos anos 1940 se tornava o astro supremo do futebol colombiano. A aposta se pagou rapidamente. No que deveria ter sido sua estreia, mas não foi, os Millos arrecadaram 17 mil dólares com bilheteria. Este foi o tamanho do impacto da chegada do argentino. Ao ídolo de Alfredo Di Stéfano, também contratado, juntaram-se Néstor Rossi e o craque peruano Alfredo Mosquera. Um dos poucos remanescentes da época amadora era também argentino, o atacante Alfredo Castillo.
A tabela de classificação do Campeonato Colombiano de 1949 também notou a presença dos novos talentos albiazules. Millonarios e Deportivo Cali empataram em pontos, na liderança do certame. Em duas partidas de desempate, o time da capital saiu vencedor e conquistou sua primeira estrela.
Convencida das qualidades de Pedernera, a direção do Millonarios definiu que, dali em diante, seria ele a acumular as funções de jogador-treinador. Como Aldabe fizera, Adolfo viajou à Argentina. Nos anos seguintes, o goleiro Julio Cozzi e o atacante Antonio Báez, Il Maestrito, chegaram do Platense; Pedernera os conhecia da seleção argentina e do River Plate. Do Huracán, viria o ponteiro Hugo Reyes, outro ex-River.
Hipnotizante
O ano inicial de Pedernera na casamata azul serviria como primeiro ato, antessala para o espetáculo principal. O Millonarios não renovou o título nacional. Faltaram cinco pontos para alcançar o campeão Deportes Caldas. Isso não se repetiria em 1951.
Com o acréscimo de duas equipes, a Liga Dimayor engordou. Para os Millos, o significado disso foi apenas um: havia mais quatro datas para dar espetáculo. Avassalador, o clube fez campanha histórica. Em 34 jogos, foram 28 vitórias, quatro empates e apenas duas derrotas. Somados, Pedernera, Di Stéfano (artilheiro do certame) e Báez anotaram 74 dos 98 gols da equipe. Já a retaguarda concedeu apenas 29 tentos. A liderança foi absoluta, com 11 pontos de vantagem, numa época em que a vitória somava apenas dois.
“Quando jogávamos em Bogotá, ou quando jogávamos contra Cali ou Santa Fé, as pessoas chegavam às nove da noite anterior e faziam fila no estádio para o jogo que começaria no dia seguinte às três da tarde”, comentou Cozzi, certa vez à El Gráfico.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
O jogo refinado, com trocas de bola inteligentes e movimentação constante dos atacantes, infernizou os adversários e provocou admiração. Não seria o acaso o responsável pela atribuição da alcunha de Ballet Azul ao time, mas o locutor costarriquenho Carlos Arturo Rueda, radicado na Colômbia. Segundo o periódico El Tiempo, o centroamericano foi um ícone do jornalismo esportivo colombiano, “uma espécie de Júlio Verne do rádio”. Não haveria ninguém mais apropriado para reduzir o time a um apelido eterno.
Mas o cenário de realismo fantástico, que poderia facilmente ter sido escrito ficcionalmente por Gabriel García Márquez, um dos tantos hipnotizados pelo futebol da época e que se tornou torcedor do Junior Barranquilla, estava com os dias contados. Banida do futebol internacional, a Colômbia precisava ser readmitida pela FIFA. O Pacto de Lima, assinado naquele mesmo 1951, seria a solução. Porém, naqueles empolgantes dias de uma vida inteira para o futebol colombiano, houve sobrevida. O acordo previa que os clubes teriam até 1954 para devolver seus craques aos times originários.
O Millonarios desfrutou enquanto pôde. Nos dois anos que se seguiram, venceu a Liga Dimayor. Em 1952, Di Stéfano voltaria a ser o artilheiro maior e chamaria a atenção do clube mais vencedor da história. A notoriedade albiazul rompera as fronteiras da América do Sul e, na celebração de suas bodas de ouro, o Real Madrid convidou o clube para uma competição amistosa, que incluía, ainda, os suecos do Norrköping.
O empate colombiano diante dos escandinavos não impressionou ninguém. A vitória merengue ante o Millonarios era tida como favas contadas. No final dos primeiros 45 minutos, o estádio de Chamartín estava boquiaberto, mas não pelo óbvio. Alfredo Castillo, Di Stéfano e Báez marcaram um gol cada, no 3 a 0 dos Millos. Passado o torpor inicial, o Real Madrid faria dois gols, mas Di Stéfano garantiria o triunfo colombiano: 4 a 2. O que talvez não fosse tão claro era o cisma que o atacante iniciara ali.
“Os relatos que chegam de Madrid asseguram que os 'Millonarios' fizeram um grande jogo, com filigrana e eficiência na primeira parte, chegando ao intervalo com um expressivo três a zero que já lhes prometia a desejada vitória, e que o Real Madrid, entre surpreso e desconcertado, reagiu no final do intervalo, marcando seus dois únicos gols, enquanto os colombianos com outro conquistaram uma merecida vitória”, relatou o Mundo Deportivo, no dia seguinte.
O futebol retoma seu rumo
Di Stéfano foi disputado duramente por Real Madrid e Barcelona. Entre os astros do Millonarios, era o mais jovem e o goleador mais produtivo; preenchia melhor os requisitos de estrela internacional, por mais que o próprio garantisse não chegar aos pés de Pedernera. Rapidamente, os madrilenhos acertaram o trespasse do craque, junto ao Millonarios. Contudo, os catalães também asseguraram a contratação, mas com o River Plate.
Com a firma do Pacto de Lima, era esperado que Di Stéfano restabelecesse seu vínculo com os argentinos, ou assim imaginou o Barça. Na altura, a FIFA foi acionada e definiu que o astro deveria firmar um contrato de quatro anos, metade a ser gozada por cada clube. Os catalães não aceitaram, venderam sua parte aos madrilenhos — preferidos por Alfredo — e a história foi escrita.
O último ato do Ballet Azul seria mesmo o Campeonato Colombiano de 1953. No ano seguinte, o Maestro Pedernera voltou ao Huracán apenas para encerrar a carreira de atleta e continuar a de treinador. Baéz também fez o caminho de volta, brilhando mais um pouco no Platense, assim como Cozzi — este retornando a Bogotá em 1961.
Vereda similar foi tomada pelos craques estrangeiros dos times rivais. Era o fim do El Dorado, uma história que poderia ter sido escrita por Gabo, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, ou outro literato sul-americano da época. A bem da verdade, ela se encontra em livros. Não em forma de romance, todavia.
Estadios lotados craques sobrando salarios pompudos gols em profusao e nenhum dinheiro repassado aos clubes de origem.parece mentira mas el dorado e o ballet azul sao verdadeiros.
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