O Trabzonspor que assombrou a Turquia nos anos 1970

Estudos como o conduzido pela Statista, em 2013, pontuam que o futebol é o esporte mais popular da Turquia. A paixão por Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş, rivais de Istambul, move multidões. Lota estádios, bares e ruas. Porém, cerca de 900 quilômetros distante da principal cidade do país, outro time faz o seu barulho. A história começa nos anos 1960, mas cresce exponencialmente na década seguinte, com o clube passando a reclamar um lugar entre os gigantes da Turquia. Ele vem de Trebizonda.

Trabzonspor 1976-77
Foto: Trabzonspor/Arte: O Futebólogo


Istambul mandava no futebol turco profissional


O primeiro contato do turco com futebol nacional aconteceu em 1924. O Harbiye, da capital Ancara e a quem o mundo não presta atenção alguma, foi o primeiro campeão. No entanto, a Federação Turca de Futebol considera oficiais apenas as competições disputadas a partir de 1956 — sem se justificar, embora equipes como o Ankaragücü tenham pleiteado o reconhecimento de títulos anteriores. Nada feito.

Até meados dos anos 1970, apenas clubes istambulitas venceram o Campeonato Turco, considerando o intervalo certificado. Mais: o domínio restringiu-se aos três gigantes nacionais. É verdade que a situação não era tão diferente no período acumulado, mas havia exceções, como o mencionado Harbiye. Outra demonstração de força dos times da cidade mais populosa da Turquia vinha de sua única participação em Copas do Mundo, até então.

Em 1954, as Estrelas Crescentes levaram 22 jogadores ao Mundial da Suíça. Foram cinco atletas do Gala, sete do Fener e três do Beşiktaş. Completavam o grupo de selecionáveis de Istambul um trio do Adalet e o meia Çetin Zeybek, do Kasimpasa, que fica na região metropolitana da cidade. As ressalvas eram de três atletas do Ankaragücü. Não se discutia que Istambul concentrava o melhor do futebol turco.


Quando muito, Ancara mostrava potencial. Cidades como Esmirna, Bursa, Adana ou Gaziantepe não ameaçavam. Portanto, era um disparate a suposição de que uma localidade ainda menor fosse capaz de dobrar o Trio de Ferro istambulita. Cidades como Trebizonda não tinham vez. Ter sido, ao longo dos séculos, um porto vital para o trânsito de mercadorias como seda, linho e lã, em meio ao Mar Negro, além de um local marcantemente multicultural, não tinha importância alguma em termos de futebol.

Um time para honrar a história de Trebizonda


A história da Turquia é das mais ricas da humanidade. A localização estratégica, em meio às águas do Mediterrâneo e do Mar Negro, encravada entre o Leste Europeu e a Pérsia, tornava o território alvo constante de disputas, e uma região propícia para o estabelecimento de impérios. O local que modernamente corresponde a Trebizonda, próximo à Armênia e Geórgia, foi um dos tantos que passou por grandes mudanças.

Mesmo na primeira metade do século XX não houve paz na região. Justamente por sua importância costeira, teve parte nas Guerras Mundiais. Banhos de sangue como um genocídio de armênios, em 1915, foram consequências dramáticas de um cenário de tensão permanente. O cenário não era ideal para a ascensão de uma potência futebolística. Porém, as bolas já eram chutadas pela cidade. E uma rivalidade extrema também aparecia.

İdmangücü e İdmanocağı, fundados em 1913 e 1921, respectivamente, dividiam as lealdades de Trebizonda. Se, por um lado, não tinham força suficiente para brigar no cenário nacional, por outro, dominavam a Liga Amadora de Trebizonda. Somados ao Trabzon Lisesi (o clube da principal escola local), venceram 30 dos 38 títulos do certame, com ápice nos anos 1930. O fim da disputa, em 1959, ocorreu justamente com o fortalecimento da Süper Lig.

Contrariamente a um conceito adotado por vários líderes históricos, o entendimento dos chefes do futebol turco dizia que era preciso unir para conquistar. Havia vontade política de que o campeonato nacional alcançasse todo o território. Também era conhecida a supremacia de Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş. Por isso, incentivou-se a fusão de clubes menores de outras regiões. Unir para conquistar. Somente se olvidou da presença de um problema subjacente: o ódio alimentado entre algumas equipes nas décadas anteriores.

Orhan Şeref Apak
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Orhan Şeref Apak, presidente da Federação Turca, era o responsável pela proposta, sugerida às vésperas da temporada 1962-63. No caso de Trebizonda, a ideia era reunir, além dos grandes rivais, os outros times locais. Entre estes e o İdmanocağı o acerto foi rápido. Foi o İdmangücü o protagonista do impasse. Reuniões diárias terminaram insistentemente iguais: sem acordo. Até havia boa vontade com a formação de um time com o nome da cidade, porém cada um forçava a mão para um lado. Cores, nomes… Os menores detalhes provocavam as maiores discussões.

A seguir, İdmangücü, Karadenizgücü, Martıspor and Yolspor formaram uma nova união e fundaram o Trabzonspor. Claro: o İdmanocağı não aceitou e instaurou um processo judicial. Então, uma intervenção estatal colocou um ponto final à celeuma. Sem fusão, nenhum dos dois disputaria o campeonato. A população também se manifestou, em uma marcha silenciosa de repúdio à vaidade dos líderes dos rivais. Em 2 de agosto de 1967, por fim, um acordo foi selado. Dominantes, as cores amarelo-vemelho e verde-branco foram substituídos pelo azul claro e o bordô, que simbolizavam a cidade e o Mar Negro.

Trabzonspor 1967-68
Foto: Trabzonspor/Arte: O Futebólogo

Pegando o elevador


A união de tantos clubes originou um time com os melhores atletas da região. Concentrou, ainda, a captação de jovens locais. Assim foi descoberto o maior jogador da história do Trabzonspor. Não era um goleador ou um construtor de jogadas; fazia jus a um de tantos ditados que rondam o futebol: “Grandes times começam com grandes goleiros”. Şenol Güneş foi encontrado pela Karadeniz Fırtınası em 1969, no Akcaabat Sebatspor, 13 quilômetros distante de Trebizonda.

Güneş começaria a jogar no Trabzonspor em 1972, depois de um período em seu clube originário. Tinha 20 anos e a missão de ajudar o clube a conseguir seu primeiro acesso à elite turca. Desde 1967-68, os de azul e bordô vinham jogando a segundona, sem sucesso. A equipe até se aproximaria da subida, sempre atrapalhada na hora H. O povo exigia que aquele time mostrasse a cara da cidade: com personalidade forte — além de um gosto peculiar por anchovas.

Seria justamente uma mudança caseira a catalisadora da mudança. Ahmet Suat Ozyazici fora atleta do Trabzonspor justamente até 1972. Fazia 16 anos desde sua chegada ao que ainda era o İdmanocağı. Pouco depois de pendurar as chuteiras, foi anunciado como novo treinador da equipe. Ele acompanhara todo o processo de fusão atravessado pela equipe. Conhecia cada canto daquele lugar, assim como seus agora comandados, quase em sua totalidade formados no clube.

Trabzonspor 1972-73
Foto: Trabzonspor/Arte: O Futebólogo

“Estávamos no mesmo bairro que Ali Kemal. Şenol e Turgay estavam no bairro vizinho. Com Ihsan era o mesmo. Resumindo, estávamos sempre lado a lado e nos conhecíamos”, falou Necati Özçağlayan, ao Günebakis.

Peças como o citado zagueiro Özçağlayan, os laterais Turgay Semercioğlu e Cemil Usta, o meia Bekir Barçın, o ponta Ali Kemal Denizci e o centroavante Engin Çınar não apenas despontaram das categorias de base da equipe, entre 1970 e 72, como eram nascidos em Trebizonda. A cidade era representada por quem entendia seu significado. Além disso, os poucos contratados agregavam experiência, como Necmi Perekli, contratado em 1975 e que passara pelo Beşiktaş. Porém, cada coisa no seu tempo.

“Naqueles anos, todos eram de Trabzon. Quando se olha para isso, quase todos eram nativos do local, exceto Iskender Gonen, vindo de Castamonu. Além disso, mesmo se jogássemos bolas de gude, gostaríamos de ganhar. Costumávamos entrar em campo e lutar até a morte porque com certeza ganharíamos todos os jogos [...] os jogadores se conheciam bem, porque jogavam juntos há anos e o trabalho em equipe estava surgindo [...] Costumávamos passar 15 horas por dia juntos como uma família”, comentou Ozyazici, em entrevista aos turcos do ABC Spor.

Ozyazici assumiu o time às vésperas da temporada 1973-74. O resultado foi imediato. O Trabzonspor liderou seu grupo e conseguiu o primeiro acesso à Süper Lig.

O fim da hegemonia istambulita


Mantendo a base do acesso, a Karadeniz Fırtınası continuou provando consistência. Antes do início da temporada 1974-75, venceu uma competição amistosa no Chipre. Era apenas o começo. Os homens de Trebizonda fizeram bom papel na liga nacional. O time teve a melhor defesa do Campeonato Turco, concedendo apenas 17 gols, em 30 partidas. Tudo bem: o ataque não foi eficiente, somando 19 tentos. Ainda assim, o nono lugar obtido estava de bom tamanho para um novato.

Para a campanha seguinte, o clube acertou a vinda do citado Perekli, resolvendo seu problema. Os 17 tentos sofridos se transformaram em 14; os 19 favoráveis quase dobraram, somando 36. Foi assim que a campanha que começou com vitória diante do Galatasaray, 2 a 1, terminando em empate com o Beşiktaş, 1 a 1, colocou Trebizonda em festa. Em sua segunda passagem pela elite, o Trabzonspor venceu o torneio mais importante da Turquia. Era a primeira vez que um time de fora de Istambul conquistava a láurea.

Trabzonspor 1975-76
Foto: Trabzonspor/Arte: O Futebólogo

“O Trabzonspor vinha contratando jogadores de fora, o que não trouxe nenhum resultado. Mais tarde, apareceram Ali Kemal, Hüseyin, Necati, Turgay, Serdar, nos unimos e fizemos uma boa temporada juntos [...] com as contribuições de nossos treinadores — Ahmet Suat [Özyazıcı] e Özkan Sümer Hodja — mais a integração da cidade, levamos a primeira equipe lendária do Trabzonspor ao campeonato. Sempre estivemos ligados aos torcedores, empresários, atores e jornalistas na cidade. Quando íamos para o jogo, todos tomavam seus lugares, alguns em campo, outros nas arquibancadas [...] Fico feliz e orgulhoso por ser um deles”, pontuou Şenol Güneş, ao Goal.

O raio caiu quase no mesmo lugar algumas vezes. Em 1976-77, o Trabzonspor fez sua estreia em competições europeias, arrancando um resultado histórico. A estreia em competições europeias foi contra os islandeses do Akranes. Uma vitória por 6 a 3 na soma dos placares das duas partidas eliminatórias levou o time adiante. Então, o Liverpool entrou em seu caminho. Em Trebizonda, Usta fez o solitário gol do triunfo heroico dos turcos. Na volta, os Reds se recuperaram e prosseguiram — eventualmente sendo campeões.


O bom desempenho do clube, como era esperado, ocasionou a saída de alguns atletas. Por melhor que fosse o ambiente de camaradagem vivido no clube, o Trabzonspor não tinha condições de competir financeiramente com os clubes istambulitas, e Trebizonda também não era um lugar tão atraente como a cidade-sede de Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş. Ali Kemal, Barçın e Çinar seriam alguns dos transferidos. E nada disso parou o clube.

Quarta força?


Moralizado pelo título do ano anterior e a boa aparição na Copa dos Campeões, o Trabzonspor arrancou mais uma conquista nacional. Manteve a mesma pegada: dessa vez, sofreu apenas 12 gols, anotando 41. O time, uma máquina de rara eficiência, ainda venceria a Copa da Turquia. 

Até 1980-81, a única temporada de exceção para a Karadeniz Fırtınası seria a de 1977-78, quando Trebizonda viu seu representante ficar um mísero ponto atrás do Fenerbahçe — e mesmo assim outra conquista na copa serviria como consolo.

Nos demais anos, 1978-79, 79-80 e 80-81, o título turco seria renovado. Sempre baseado na solidez de uma defesa quase impossível de ser vazada. Güneş chegaria a permanecer mais de 18 horas sem sofrer um gol, um recorde. Assim, o time ganhou alcunha: Trabzonpor Efsanes, algo como “As lendas do Trabzonspor”. Durante o período, Ozyazici foi o principal treinador da equipe, embora tenha se ausentado por pequenos espaços de tempo. Nestes momentos, Özkan Sümer se mostraria o substituto perfeito.

Nenhuma outra campanha europeia seria tão boa quanto a primeira, mas as experiências foram positivas. O Trabzonspor enfrentou equipes como os dinamarqueses do Boldklubben 1903, os iugoslavos do Hajduk Split, os poloneses do Szombierki Bytom, e os soviéticos do Dynamo de Kiev. Exceto pelos escandinavos, os demais adversários eram poderosos, experientes e cediam jogadores para seleções fortes — coisa que a Turquia, recheada de atletas vindos de Trebizonda, não era.

Trabzonspor 1983-84
Foto: Trabzonspor/Arte: O Futebólogo

O canto do cisne para a geração viria em 1983-84, com o sexto título nacional e mais uma copa. Ao menos uma constante se verificava: a presença de Şenol Güneş, que em 1988 se tornaria auxiliar técnico do clube (e mais tarde, em 2002, lideraria a Turquia em outro sonho)

Não por acaso, anos depois, seria homenageado, com seu nome batizando o estádio do Trabzonspor. O fim da hegemonia istambulita não havia sido um acidente, como os anos reiteraram. E as dimensões do feito ficariam ainda maiores com o tempo. Apenas em 2009-10 um time de outra cidade venceria a competição, honra que coube ao Bursaspor.

A partir de sua chegada à elite, o Trabzonspor nunca mais deu sossego aos gigantes da Turquia. Apesar do amplo domínio do Trio de Ferro, há quem diga que o futebol do país tem uma quarta força. Se a sala de troféus da Karadeniz Fırtınası não precisou de uma grande expansão com o passar dos anos, os bons resultados seguiram acontecendo. Tudo começou com uma briga entre dois rivais. Eles podiam se odiar, mas sabiam o que Trebizonda significava e não mediram esforços para colocá-la no mapa do futebol. As intermináveis reuniões renderam frutos.

Comentários

  1. Senol gunes em sua epoca de goleiro ficou conhecido como zoff turco pelo tempo de clube e capacidade de levar poucos gols.lembrando que na copa 2002 rustu levou 06 gols em 07 jogos treinado por senol gunes.

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