As virtudes e loucuras do Foggia de Zdeněk Zeman

Quase todo treinador de futebol notável adquire status a partir de um primeiro grande trabalho. Poucos são os que se tornam relevantes apenas por seu ideário. Em ainda menor número estão os que deixam uma marca no esporte pela conjunção de resultados com uma proposta de jogo específica e marcante. Zdeněk Zeman não chegou a treinar clubes gigantes, mas as referências quando se ouve seu nome são óbvias. Primeiro, a ousadia de sua forma de enxergar o futebol; depois, o time que melhor traduziu esse entendimento com a bola no campo, o Foggia.

Zdenek Zeman Foggia
Foto: Calciopedia/Arte: O Futebólogo


Il Boemo chega à Itália


Zdeněk Zeman conheceu o mundo pela ótica do pós-guerra. Nasceu numa realidade de reconstrução e polarização. Tinha meses de vida quando, apoiado pela União Soviética, o Partido Comunista da Tchecoslováquia tomou o controle do país. Os eventos de fevereiro de 1948 inauguraram um período que perduraria até o esfacelamento do Bloco do Leste, no apagar das luzes da década de 1980, com a Revolução de Veludo.

Entre os lugares liderados por comunistas, a nação seria uma das mais resistentes, entretanto. Passados 20 anos de governo vermelho e superado um inicial período de ventura, Alexander Dubček, um eslovaco, assumiu a secretaria geral de um partido já rachado, substituindo um estalinista. Então, iniciou-se um processo, ainda que cauteloso, de abertura. Economicamente, o país ia mal. Intelectuais socialistas, que em grande parte tinham origem em Praga, viam com descrença a realidade daquilo que, no papel, idealizavam.

A Primavera de Praga surgiu como um movimento inescapável, apoiado pelo Marechal Tito, da Iugoslávia, que já rompera com a direção soviética e liderava um regime comunista independente. E, diante da influência tcheca na região, a resposta foi dura. “Moscou, embora não sem hesitações e divisões, decidiu derrubar o regime de Praga pela força militar [...] manteve o bloco soviético unido por mais vinte anos, mas daí em diante só pela ameaça de intervenção militar soviética”, narra Eric Hobsbawm, em Era dos Extremos.

Primavera de Praga
Foto: picture alliance/Arte: O Futebólogo

A Invasão da Tchecoslováquia aconteceria em agosto de 1968, apoiada por tropas dos países governados com as mãos mais fortes — URSS, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia e Bulgária. Logo, as reformas socialistas foram interrompidas, vigiadas de perto por militares que só deixariam o país, definitivamente, nos anos 1990. Quando aquilo aconteceu, todavia, já era previsível a ocorrência de conflitos. Quem pôde correr do banho de sangue iminente, correu.

Depois de encerrar a carreira de atleta, o ponta direita tcheco Čestmír Vycpálek permanecera na Itália, onde representara Juventus, Palermo e Parma e dava prosseguimento a uma carreira de treinador. E foi para a Sicília que ele moveu parte de sua família quando as tensões em seu país começaram a escalar. Entre os migrantes estava Zeman, seu sobrinho. Este não tinha uma história particular com o futebol. Na juventude, praticava vôlei, hóquei e handball. Porém, não tardaria a treinar times de futebol amador na região, até receber sua primeira grande oportunidade.

Passos lentos rumo ao topo


As conexões de Vycpálek permitiram a Zeman uma abertura importante: em 1974, passou a trabalhar nas categorias de base do Palermo. Seria nesse período, inclusive, que conseguiria mais uma chance crucial para o seu desenvolvimento como treinador. Depois de se destacar academicamente em Palermo, seguiu para o Centro Técnico de Coverciano, a escola de formação que acolhia os melhores treinadores da Itália.

Em 1979, o tcheco receberia o patentino, a licença mais nobre para um treinador no Bel Paese. Além disso, durante o estágio de estudos, ficaria ombro a ombro com Arrigo Sacchi, uma das mentes mais brilhantes da história do jogo. Já cidadão italiano, Zeman permaneceria no Palermo até 1983, quando, enfim, começou sua carreira de treinador em times profissionais. Ele foi de uma ponta a outra da Sicília, rodando cerca de 180km até Licata, onde treinaria o time homônimo.

Em três anos, o jovem treinador conseguiria um feito. Estar no futebol profissional já era algo grandioso para o clube nanico. A Serie C2, que correspondia ao quarto escalão do futebol italiano, era um torneio duro e o Licata somente podia contar com uma base de atletas locais. Em 1984-85, evidenciando o que viria a marcar seu nome na história do futebol, Zeman conseguiu levar o clube à Serie C1.

Zdenek Zeman
Foto: La Goleada/Arte: O Futebólogo

O Licata foi o campeão do Grupo D, somando impressionantes 58 gols, em 34 jogos. Foram 30 os tentos de superioridade em relação ao Sorrento, vice. Por outro lado, os comandados do tcheco concederam 30 vezes, 14 a mais do que o segundo colocado. O saldo era, evidentemente, positivo, mas deixava claro que Zeman estava disposto a atacar, sem se importar com os efeitos colaterais da adoção de uma proposta positiva em relação ao jogo.

Após uma temporada na terceirona, Zeman assumiu o Foggia pela primeira vez. Seria um período breve. Duraria as primeiras 27 rodadas da C1, até o boêmio ser substituído por Roberto Balestri. O comandante passaria, também rapidamente, por Parma e Messina, até retornar ao lugar que estava destinado a marcar sua carreira.

No retorno à Sicília, entretanto, ele recuperara prestígio. É bem verdade que o Messina somente se manteve na Serie B, mas Zdeněk ajudou Salvatore Schillaci a alcançar notoriedade. Il Totò foi o artilheiro da competição, com 23 gols, e carimbou uma transferência importante para a Juventus. Em 1990, seria o principal goleador e o melhor jogador da Copa do Mundo.

Salvatore Schillaci Messina
Foto: La Reppublica/Arte: O Futebólogo

Antes de tudo o espetáculo


Depois da passagem pelo Messina, outra vez, Zeman seguiu para a Apúlia. Pasquale Casillo, mandatário do Foggia, não abria mão de contar com os préstimos do tcheco. Em 1989-90, o clube estava na Serie B e buscava seu primeiro acesso desde o rebaixamento de 1977-78. Surgia, ali, o Foggia dei miracoli. Era um time extremamente jovem, do jeito que o comandante gostava. Entre os garotos que se destacariam estavam renegados por equipes maiores.

Baixinho, o atacante Giuseppe Signori fora descartado pela Inter antes do fim de sua formação, mesmo destino do meio-campista Antonio Manicone. Por sua vez, o também atacante Roberto Rambaudi surgira no Torino. Dentro de pouco tempo, todos chegariam à seleção italiana. No clube, Zeman ainda reencontrou o meia Onofrio Barone, que formara na base do Palermo, no princípio da década.

Havia condições para o tcheco colocar em prática o que sabia de melhor. A Zemanlandia começava a ser construída. Em um país que insistia em repetir a tradição, com o Gioco all'italiana, que nada mais era do que uma releitura do Catenaccio dos anos 1960 e 70, o comandante apostou suas fichas em um esquema tático 4-3-3 extremamente ofensivo. Nem mesmo Sacchi, com o poderoso Milan, apostava tão alto. Era moderníssimo, marcava por zona, mas em 4-4-2.

Francesco Baiano Giuseppe Signori Roberto Rambaudi Foggia
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Zeman dizia que não se importava em perder, desde que sua proposta fosse executada a contento. Isso porque, neste caso, ele teria entregado ao público, ao menos, um bom espetáculo. Semelhantemente, insistia que a vitória pelo mero propósito de vencer nada valia. Há quem diga que o boêmio pode ser classificado como o treinador mais ofensivo da história. Foi no Foggia que essa fama se forjou, aplicando o citado 4-3-3, marcando por zona e sufocando os adversários na pressão, além de apostar em uma linha de impedimento muito alta — que nem sempre funcionava bem.

Sua base teórica vinha da Holanda de 1974. Ele queria um jogo total. Seu goleiro jogava adiantado e precisava ter o mínimo de conforto para trabalhar com os pés. No meio-campo, garantia não ter muito apreço nem por volantes limitados a marcar nem a meias determinados a ser apenas criativos. Queria jogadores híbridos, capazes de destruir e construir e, sobretudo, que pudessem correr e imprimir um ritmo alucinante às partidas. No ataque, não abria mão de pontas e os estimulava a sair do corredor, abrindo espaço para a ultrapassagem dos laterais e os estimulando a se aproximar do centroavante.

A primeira temporada de Zeman no retorno à Apúlia não teria nada de extraordinário. Os Satanelli terminariam a Serie B em oitavo lugar. No entanto, registrando a quinta melhor marca artilheira da competição, somando 45 gols, em 38 rodadas. Porém, só quatro equipes sofreram mais gols do que o Foggia — até mesmo os rebaixados alcançaram desempenho igual ou superior nesse quesito. Não foi nada surpreendente o fato de os pugliese terminarem o certame como o time que menos empatou.

Para o ano seguinte, Zeman recebeu uma aquisição que seria determinante para o sucesso de seu projeto. Depois de rodar por diversos clubes, emprestado pelo Napoli, o centroavante Francesco Baiano chegou para ser a referência ofensiva da equipe. E ele seria o responsável pelos gols que faltaram ao Foggia na temporada anterior.

A defesa seguiu hesitante, mas o ataque somou 22 bolas nas redes adversárias a mais, relativamente à temporada anterior — exatamente o número de tentos creditados a Baiano, artilheiro máximo do certame, ao lado de nada menos do que Abel Balbo, da Udinese, e Walter Casagrande, do Ascoli. O título da Serie B veio com seis pontos de vantagem para o vice-campeão Verona.

Um sonho de três temporadas


Em 1991-92, o Foggia retornou à elite do futebol italiano. E se engana quem pensa que, ao subir de patamar, Zeman mudou sua abordagem. Cinco pontos separaram o time do que seria uma inédita classificação para a Copa da Uefa. E, claro, um detalhe não passou despercebido: apenas o campeão Milan anotou mais tentos do que os Satanelli. Foram 58 gols favoráveis.

Trágico foi o fato de o time só ter sofrido menos tentos do que o lanterna, Ascoli. Não é difícil entender isso. Resultados como as derrotas por 8 a 2, frente ao Milan; 4 a 1, diante da Juventus; ou 5 a 2, perante a Lazio, evidenciavam os problemas defensivos do clube.


Para o ano, Zeman recebeu reforços cruciais. Os mais relevantes, como ele, vieram do Leste Europeu. Na Romênia, os representantes da Apúlia encontraram o lateral Dan Petrescu, então no Steaua. Da Rússia, vieram os meias Igor Shalimov e Igor Kolyvanov, provenientes de Spartak e Dinamo de Moscou, respectivamente. Todos jovens, na faixa dos 22 aos 23 anos. Apesar disso, os grandes destaques seguiram sendo os atacantes. Baiano, Signori e Rambaudi somaram 39 gols.

Para o ano seguinte, entretanto, o clube sofreu baixas mais do que dolorosas. Shalimov se mudou para a Internazionale, Signori para a Lazio, Rambaudi para a Udinese e Baiano para a Fiorentina. A reposição não foi ruim, mas não esteve à altura. Vindo do Monza, Luigi Di Biagio reforçou a meia-cancha pugliese. Desde o Rayo Vallecano, foi contratado o costarriquenho Hernán Medford, que se destacara na Copa do Mundo de 1990 e os italianos conheciam bem. E, um pouco mais tarde, do Ajax, chegaria a nova estrela do time: Bryan Roy, selecionável holandês.

Não foi suficiente para manter o nível. Em 1992-93, o Foggia caiu para o 12º lugar, com um saldo de gols negativo de -16. A temporada seguiu toada semelhante, em relação à anterior. Os Satanelli fecharam a campanha sendo demolidos pela Fiorentina: 6 a 2. Ironicamente, sofrendo dois gols de Baiano. E o pior foi ver Signori terminar a campanha como artilheiro máximo do certame, autor de 26 gols.

“Aprendi muito com Zdeněk Zeman nas minhas duas temporadas no clube e também marquei muitos gols, dando um salto na minha carreira. Como ponta, não marcava muitos gols no Ajax, era mais sobre o desempenho da equipe e respeitar sua posição, mas com Zeman você tem que marcar como ponta e ele tinha táticas fantásticas para que isso acontecesse, foi muito bem-sucedido [...] O Foggia é realmente romantizado na Itália, é amado por todos como clube de futebol e isso também se deve a Zdeněk Zeman, que garantiu uma cultura de futebol ofensivo e futebol espetacular”, comentou Roy, em entrevista ao portal Secret Footballer.

Bryan Roy Foggia
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Para 1993-94, novas trocas ocorreram. Medford, que fracassou, voltou à Costa Rica e Petrescu foi vendido ao Genoa. Por outro lado, o argentino José Chamot e o italiano Giovanni Stroppa, ex-Milan e Lazio, reforçaram a equipe. A fórmula de Zeman foi repetida e o Foggia voltou a sonhar com o futebol europeu. Sempre com a carteira de cigarros devidamente preenchida, o treinador levou o clube ao céu e ao inferno.

O time era capaz de perder por 5 a 4 para o Piacenza, golear a Lazio por 4 a 1 e o Lecce por 5 a 0, e de apanhar da Sampdoria, 6 a 0. No ano, somou 46 gols e concedeu os mesmos 46. Terminou a Serie A na nona colocação, apenas três pontos distante da sonhada classificação à Copa da Uefa. Alucinante. Ou alucinado. A conclusão fica a cargo de cada um.


Em 1994-95, Zeman deu o salto de qualidade. Encerrou sua passagem pelo Foggia, firmando com a Lazio e reencontrando Signori. O boêmio levaria os laziali ao vice-campeonato (com o melhor ataque da competição) e, depois, ao terceiro lugar (outra vez com a linha de frente mais eficiente da Itália). No entanto, encerraria sua passagem pelo clube em 1997. Nunca chegaria aos gigantes nacionais, Juventus, Inter e Milan.

Por sua vez, o Foggia foi ladeira abaixo sem seu mentor. Na primeira temporada sem Zdeněk, o clube caiu para a segunda divisão. Em 1997-98, seguiria para a Serie C1 e, logo no ano seguinte, para a C2. O clube nunca se recuperou, chegou a falir e precisou ser refundado. Zeman voltaria a se encontrar com a agremiação em outras duas ocasiões, sem o frescor de antes. O que aconteceu na Apúlia entre 1989 e 94 acabou se confirmando uma dessas histórias inexoravelmente irrepetíveis.

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