Fim de jejum e título europeu: o início dos anos 1980 do Aston Villa

Em 1981, registrava-se a cidade de Birmingham como a segunda mais populosa da Inglaterra. O número rondava o milhão. Embora tivesse quase sete vezes menos pessoas do que a capital, Londres, a urbe das West Midlands também possuía aproximadamente o dobro de residentes quando comparada a Liverpool, a terceira colocada. Futebolisticamente, esses dados não importavam nada. A Copa dos Campeões da Europa transitava por mãos inglesas, mas entre os vermelhos Liverpool e Nottingham Forest. O Aston Villa, clube mais bem-sucedido d’A Segunda Cidade, vivia somente um jejum infeliz.

Foto: AVFC.co.uk/Arte: O Futebólogo


Era um trabalho de continuidade


Os Villans entraram na década de 1980 sem grandes novidades. O treinador Ron Saunders liderava o clube desde 1974. Tratava-se de um nome em ascensão à época, mas que fracassara ao dar um passo mais ousado. Comandando o Norwich City, vencera a segunda divisão, em 1971-72. Pela primeira vez, os Canários ascendiam à elite inglesa. Melhor ainda: asseguraram a permanência no ano seguinte. Obviamente, isso chamava a atenção de outras equipes. Entre elas, o Manchester City, que vivia um período de transição.

Nos anos 1960, os Citizens foram protagonistas em solo britânico. Comandando uma geração talentosa, representada por nomes como os de Alan Oakes, Colin Bell, Neil Young, Mike Summerbee, Francis Lee e Tony Book, os treinadores Joe Mercer e Malcolm Allison tiraram os mancunianos da segunda divisão e os levaram ao título inglês — além de conquistas da FA Cup, da Copa da Liga e da Recopa Europeia. Eventualmente, o sucesso rareou e o comando mudou de mãos.

Johnny Hart, antiga glória do City, seria o primeiro sucessor, mas duraria menos de um ano, aposentando-se com problemas de saúde. O citado Tony Book o substituiria, interinamente. Então, em 1973-74, viria o chamado para Saunders. Com resultados medíocres, não duraria uma temporada completa. Book, que ocupara vaga de auxiliar, reassumiria o time, definitivamente. Quanto a Ron Saunders, restava-lhe a possibilidade, um tanto compulsória, de regredir para tentar se recolocar na elite.

Ron Saunders Aston Villa
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O Aston Villa desconhecia o sabor do futebol de elite desde 1966-67. Chegara, até mesmo, a descer às profundezas da terceira divisão. Na altura, quem representava a cidade no primeiro escalão era o rival, Birmingham City — a duras penas, mas contando com a estrela de Trevor Francis. Já em 1974-75, Saunders conduziria os brummies ao acesso. No mesmo ano, venceria a Copa da Liga; o adversário seria o clube que ele mais conhecia, o Norwich.

Diante desse cenário, era natural que, no início da década seguinte, Ron tivesse tudo sob controle. Aos poucos, montara o time como queria. Em 1975-76, por exemplo, contratara seu futuro capitão. Dennis Mortimer se formara no Coventry City e apenas chegava ao que viriam a ser os seus melhores anos. Outra aposta feita naquele ano seria no atacante Andy Gray, ex-Dundee United. O impacto viria imediatamente, com a dupla sendo titular nas finais, vitoriosas, de mais uma Copa da Liga, agora contra o Everton.

As categorias de base também seriam exploradas. Forjariam Gordon Cowans, Gary Williams, Gary Shaw e Colin Gibson. A zaga escocesa, com Allan Evans e Ken McNaught, chegaria em 1977-78, assim como o goleiro Jimmy Rimmer, este mais experiente, formado no Manchester United e com passagem pelo Arsenal. Pouco mais tarde, seria a vez de convencer o meio-campista Des Bremner a trocar Edimburgo, onde representava o Hibernian, por Birmingham, e o ponta Tony Morley, então no Burnley.

Era possível substituir Andy Gray?


Apesar de ser um time azeitado, que embora não fosse dado a encantos ficava na parte de cima da tabela e beliscava copas, o Aston Villa não se permitia luxos. O elenco era enxuto e o clube não fechava os olhos para ofertas vantajosas.

Fazia meses que os ingleses gastaram seu primeiro milhão de libras na contratação de um jogador. Era fevereiro de 1979 quando Trevor Francis trocou o Birmingham pelo Forest. Já em setembro, o Wolverhampton, que vendera Steve Daley ao Manchester City por £1,4 milhão, ofertaria quase £1,5 por Andy Gray. Um novo recorde se estabeleceria e não havia nada que os Villans pudessem fazer. Para se ter uma ideia do que a venda representava, basta dizer que o escocês marcara 54 gols, em 113 jogos de Campeonato Inglês, pelo Clarets. Encontrar substituto não seria fácil.

O peso da missão caiu, primeiramente, nas costas de Gary Shaw, aos 19 anos. Ele não foi mal, confirmou-se o artilheiro do time na temporada com 13 gols, mas não era o ideal. Com o clube registrando apenas 51 tentos, em 42 jogos na temporada 1979-80, estava claro que Saunders precisava achar um novo 9. Só que, desde que o futebol envolve dinheiro, essa é a posição mais valorizada no mercado. A tacada do clube demandava precisão cirúrgica.

Andy Gray Aston Villa
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Andy Gray era um menino quando foi descoberto, uma contratação de risco que rendeu bons frutos. Peter Withe não era jovem e estava longe de ser um nome consensual. É verdade que sua carreira tinha lastro, inclusive sendo campeão inglês com o Forest, mas ele andava na segundona, no Newcastle. Com 1,88m, era o que se convencionou chamar de um centroavante típico — sem distinção técnica, mas imponente fisicamente e preparado para o jogo aéreo. Os Villans pagaram £500 mil, seu recorde até então, para contar com o goleador de 29 anos. Não era óbvio, mas Withe seria, exatamente, o que Shaw precisava. E vice-versa.

O artilheiro foi a única contratação feita por Saunders para a temporada 1980-81. O time já estava pronto, faltava só o ajuste fino do ataque. “Com a experiência e a juventude, penso que há uma boa mescla. Nós temos alguns caras experientes, todos pelo centro, Jimmy Rimmer, Ken McNaught, Dennis Mortimer e eu [...] essa foi uma das razões que me instigou a assinar pelo Aston Villa, senti que com o elenco e os jogadores que eles têm, podem alcançar coisas importantes”, falou Withe, em outubro de 1980.


A batalha com o Ipswich Town


O Campeonato Inglês ainda tinha um formato inchado. Eram 22 equipes disputando a glória maior da nação. O sétimo lugar da temporada anterior não credenciava o Aston Villa à luta pelas primeiras posições. Ainda assim, os jogos iniciais sugeriam que o time daria trabalho. Na estreia, o Villa foi a Elland Road enfrentar o Leeds United. Os Peacocks tinham um time mediano, com o comando do ataque cabendo ao argentino Alejandro Sabella. Os brummies não deram sopa para o azar e, de virada, venceram por 2 a 1.

O encontro evidenciaria a formação elementar de Ron Saunders. O esquema tático 4-4-2 era habitual entre os ingleses, desde o título mundial de 1966. O Aston Villa não fugia ao padrão, mas tinha particularidades. A dupla de ataque teria Withe na referência, mas Shaw atuaria ao seu redor, não ao lado. Além disso, pela esquerda, o lateral seria uma figura mais contida, dando ao ponta Morley mais liberdade para se insinuar no ataque. Na direita, o ala Kenny Swain seria uma flecha, enquanto Bremner apenas fecharia a linha de meio, sem atacar tanto. Este, aliás, seria descrito pelo Guardian como uma espécie de Forrest Gump.

“Não me preocupo muito com o que dizem sobre mim, me preocupo com o que dizem dos jogadores, porque eu tenho um elenco aqui e ele é capaz de enfrentar qualquer elenco do país”, garantiria Saunders, logo no começo da temporada.


O início da campanha seria inconsistente. Depois de superar o Leeds, o Villa ganharia do Norwich, empataria com o Manchester City, voltaria a triunfar, agora ante o Coventry City, mas logo seria freado. O Ipswich Town, treinado por Bobby Robson, era o líder e estava muito ajustado. A margem foi mínima, 1 a 0, mas os Villans perderam. E, logo depois, caíram também diante do Everton.

Depois dessa oscilação, o time emplacaria 12 rodadas de invencibilidade, com nove vitórias e três empates. Na 15ª rodada, pela primeira vez, assumiria a liderança da competição. O problema foi que, com o fim da boa sequência, viria nova instabilidade. Kenny Dalglish daria a vitória ao Liverpool, na 19ª rodada. A seguir, empate com o Arsenal, somado a derrotas perante Middlesbrough e Brighton, forçaria os homens de Birmingham a colocar os pés no chão.

Em pouco tempo, o time também não estaria mais no páreo pelas copas. Precisaria subir a serra outra vez. Com a sequência ruim, caíra posições. Mas, já no Natal, as coisas voltariam para o prumo, com vitória ante o Stoke. Dali em diante, quase não perderia mais. O problema foi a derrota que veio. Na 30ª rodada, o Villa, vice, recebeu o líder, Ipswich. Quatro pontos separavam as equipes. Alan Brazil e Eric Gates garantiram o triunfo dos homens de Robson. Parecia o fim da linha.

Há 71 anos afastado do título nacional, o Aston Villa não dependia de si. Precisava tirar seis pontos, em uma época em que a vitória somava dois. Restavam 12 jogos.

Surpreendentemente, depois de superar Wolves e Coventry, o Ipswich foi ladeira abaixo. Focado na disputa da Copa da Uefa, que venceria, acumulou sete derrotas e um empate. Venceu só duas das últimas partidas. Enquanto isso, os Villans fizeram o percurso quase inverso. Triunfaram em nove ocasiões, ficaram na igualdade ante o Stoke e perderam para Tottenham e Arsenal, na rodada fatal, quando já eram campeões.

Dennis Mortimer Aston Villa
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Saunders acreditava piamente no esforço extremo e isso ficou sublinhado no 1980-81 do Villa. Como fazia questão de constar no programa do jogo que era entregue aos torcedores: “Com seu habitual apoio vocal e 110 por cento de esforço de cada um dos jogadores, tenho certeza de que obteremos o resultado certo”. Era indubitável a dedicação dos jogadores. Apenas 14 atuaram nas 42 partidas. Sete deles, Rimmer, Swain, McNaught, Mortimer, Bremner, Cowans e Tony Morley jogaram todos os minutos.

O capitão Mortimer confirmaria que a entrega total foi o fiel da balança: “Ron nunca levantou a voz e, se você continuasse trabalhando duro e fazendo o trabalho que ele pedia, ele sempre manteria a fé em você [...] Éramos apenas um grupo que queria alcançar tudo o que era capaz. Éramos um time de desconhecidos que se tornou conhecido”.

Withe seria o artilheiro do time na temporada, com 21 gols; Saunders receberia o prêmio de melhor treinador do ano.

Vencendo com turbulência


O título inglês trouxe consequências para o Aston Villa. Boas e ruins. Por um lado, classificou o time para a Copa dos Campeões de 1981-82. Por outro, aumentou as expectativas e os atritos. Saunders ficou insatisfeito por receber apenas a contratação de Andy Blair, meio-campista ex-Coventry. Além disso, o time estava visivelmente desgastado. Nas primeiras nove rodadas do Campeonato Inglês, venceu apenas uma partida. Foram seis empates e duas derrotas.

Além disso, Saunders estava em rota de colisão com o presidente Ronald Brendall, que não atendia suas demandas salariais para uma renovação e discordava das ideias do comandante para os rumos de todo o clube. A paz demoraria a retornar.

No início de fevereiro de 1982, o Aston Villa ocupava a 14ª colocação no nacional. Estava eliminado nas copas inglesas. A situação só não era pior porque, ao menos na Copa dos Campeões, o time vinha se saindo bem. Sem dificuldades, eliminara os islandeses do Valur. O 7 a 0, no agregado, todavia, contrastaria com os rumos da eliminatória seguinte. Ante o Dynamo Berlim, sobraria sorte e faltaria juízo. A soma dos marcadores indicaria um 2 a 2 e os ingleses só avançaram porque Rimmer fez um grande jogo e o regulamento previa os gols marcados fora de casa como critério de desempate.


Portanto, quando a corda se rompeu, os homens das West Midlands ainda estavam vivos na competição continental. No dia 10 de fevereiro, Saunders teve o contrato rescindido. “Penso que não devo nada a eles [a diretoria]”, garantiria o treinador. O substituto já estava na comissão técnica, seria Tony Barton, que até então trabalhava na captação de novos jogadores.

“Tony não chegou e deu ultimatos ou coisas assim. Todos conhecíamos o Tony. Ele não precisava dizer nada a nós, precisava apenas nos liderar. Éramos capazes de cuidar de nós mesmos, nossos destinos estavam nas nossas mãos”, diria Mortimer, 40 anos mais tarde, ao podcast Claret & Blue.


As coisas melhoraram sensivelmente após a troca de comando. É verdade que o Campeonato Inglês estava perdido. A insossa 11ª colocação na tabela seria um destino inevitável. Acima de tudo, porque o time se focou no que era factível, a disputa europeia. Até mesmo o histórico recente dizia isso. Nos últimos cinco anos, o torneio continental terminara em mãos inglesas — três vezes com o Liverpool e duas com o Nottingham.

O desafiante seguinte era duro, outro Dynamo. O de Kiev, que era treinado por ninguém menos do que Valeriy Lobanovskyi e tinha Oleg Blokhin, o Ballon d’Or de 1975, no ataque. As condições climáticas também não ajudavam. A situação kievana era tão extrema que o jogo precisou ser disputado em Simferopol. Em solo soviético, o placar não foi alterado. A decisão ficou para o jogo de volta. Em meio a um lamaçal terrível, os brummies triunfaram: 2 a 0. Gols de Shaw e McNaught.

Nas semifinais, o adversário era o Anderlecht, do craque Frank Vercauteren. Mais uma vez, o Villa fez apenas o necessário. Em casa, um gol de Morley deu a vantagem na eliminatória. Em Bruxelas, Rimmer salvou a pele dos britânicos outra vez e o jogo foi mais marcante por cenas de hooliganismo — dos visitantes — do que pelo futebol praticado. A cidade de Birmingham tinha um representante na final da principal competição europeia de clubes de futebol.


“Lembro-me como se tivesse acontecido ontem. Tony Morley driblou um defensor para um lado e depois para o outro. Klaus Augenthaler estava me marcando, mas percebeu o perigo e se moveu para cobrir, o que me deixou sozinho quando alcancei a pequena área. Tony cruzou a bola com força pela boca do gol, mas pareceu acontecer em câmera lenta e eu disse a mim mesmo: ‘Concentre-se!’. Estou convencido de que se eu tivesse chutado bem, o goleiro teria defendido!”, garantiu Withe, ao site oficial do Villa.

Vamos por partes. Finalista, o Aston Villa era aguardado pelo tradicional Bayern de Munique, que tinha Karl-Heinz Rummenigge e Dieter Hoeness no ataque e era favorito. Os bávaros tinham jogadores melhores e muito mais cacife. O Villa seguia sendo pernas, pulmões e corações. Entendia que precisaria suportar muita pressão e torcer por uma jogada ou outra, concedida pelos alemães. Como Withe antecipou, ela viria.

Houve drama. Um dos destaques dos Clarets até a viagem a Roterdã para a disputa da decisão, Rimmer seria escalado, mas se lesionaria com menos de 10 minutos da etapa inicial. Nigel Spink, o reserva, tinha apenas um jogo pelo clube. “Fiquei me perguntando quem iria entrar. Logo percebi. Foi muito rápido. Para o meu estado de espírito, foi bom que eu não tivesse a menor ideia”, falaria ao Daily Mail. Mesmo alvejado pelos ataques germânicos, o arqueiro de 23 anos deixaria a meta imaculada. Ou quase isso, já que Hoeness chegaria a balançar as redes, mas impedido.

A jogada narrada por Withe confirmaria o título do Aston Villa, o sexto dos ingleses em sequência.


No futuro imediato, os Villans venceriam o Barcelona, na Supercopa Europeia, e perderiam para o Peñarol, no Mundial de Clubes. Withe, pela Inglaterra, e Evans, pela Escócia, jogariam o Mundial de 1982; Morley e Cowans ficariam decepcionados com as omissões. Tristemente, Shaw sofreria uma grave lesão em 1983 e nunca mais seria o mesmo. No porvir mais distante, o clube viveria uma decadência que culminaria com o rebaixamento na temporada 1986-87.

Barton era a resposta para os problemas do clube em 1982, mas não estava preparado para um trabalho mais longo. Ainda assim, a imortalidade foi o destino da equipe do início da década de 1980. Não há forma mais eficaz de constatar isso do que ouvir os protagonistas. Como Mortimer: “O time de 1980, 81 e 82, sim, é uma verdadeira lenda no folclore do Aston Villa e, para mim, isso faz de nós, uh, história. Eu amo isso”.

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